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Felicidade clandestina (Livro), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Este livro nasceu de um convite feito a Clarice Lispector, em 1967, para escrever semanalmente no Jornal do Brasil. Seriam crônicas, mas ela mesma declarou: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gêneros. Gêneros não me interessam mais.”

No entanto, a obra é considerada como livro de contos. Além dos publicados no Jornal do Brasil, acrescentaram-se outros escritos em épocas diversas da vida da autora. Neles há muito de autobiográfico: recordações da infância (a filha do livreiro de “Felicidade Clandestina” existiu; o professor de “Desastres de Sofia” percebeu o tesouro da futura escritora.).

Escritas em primeira pessoa, neste que poderia ser considerado um dos livros de cunho mais autobiográfico da autora, as narrativas resgatam, de uma perspectiva memorialista da mulher adulta, a arguta ingenuidade de seus pensamentos e sentimentos aos oito e nove anos de idade, quando moradora da cidade do Recife, por cujas ruas perambulava, aos saltos, enchendo-as da memória da sua passagem. Esse material, buscado a uma época tenra de sua história pessoal, é utilizado para suas reflexões sobre a vida, a atividade literária e o exercício de um feminismo místico que se torna a marca de seu estilo.

Esta obra reúne 25 contos que tematizam a adolescência, a infância, e a família, sem deixar, em momento algum de se referir as angústias da alma, tal como é próprio da autora.

Os textos não diferem da orientação geral da ficção de Clarice Lispector. Ela pratica a exacerbação do momento interior dos personagens, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. O espírito deles viaja nas asas da memória e da auto-análise. Não se trata, porém, de sondagens psicológicas sentimentais egocêntricas. A inquietação íntima dos personagens se concentra na busca da própria identificação num cotidiano monótono e vazio. As camadas mais profundas da consciência humana são removidas pela autora em busca do significado da existência. Há portanto o encontro da psicologia com a metafísica: conhecer-se para ser.

Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das idéias, sem se basear numa estrutura seqüencial da narração.

Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.

Exemplos dessas situações epifânicas: a menina que se torna “amante” do livro; os dois amigos que se separam para avivarem a amizade sincera; o menino míope que descobre a paixão no amor; a menina que se sente valorizada quando o folião lhe entorna confete na cabeça; a mulher que percebe sua real situação pisando num rato morto; a menina ruiva que sente o peso da solidão quando o cachorro se vai; a contemplação de um ovo que faz a narrador refletir sobre o mistério profundo da vida; a menina formal que se vê criança diante de um pintinho e reage matando-o; a mulher que, olhando o dente quebrado, confirma a falta de sentido da vida; a visão do inseto esperança que leva a mulher a se questionar sobre o nada; a macaquinha que induz o filho a perceber seu amor pela mãe; a menina que faz o professor sorrir e, assim, descobre sua falta de importância; a criada que é oportunidade de a patroa entender um ser humano; os adolescentes que diante da casa velha concluem não serem pessoas especiais; o menino que se descobre homem ao “beijar” a estátua da mulher-chafariz…

Os vôos metafísicos de Clarice Lispector partem, geralmente, de cenas domésticas ou, na visão estereotipada masculina, sem importância. Sua condição de mulher a faz muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos sem relevância aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes) mas ricos em sua interioridade.

Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.

Toda essa exaustiva pequisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

ENREDOS

FELICIDADE CLANDESTINA

Neste conto a narradora recorda sua infância no Recife. Leia mais

UMA AMIZADE SINCERA

Neste conto, a história incomoda porque obriga ver a amizade como um desconforto: o cotidiano de dois amigos, as confidências, a partilha das coisas banais da convivência são um fardo que ambos suportam pela amizade. Leia mais

MIOPIA PROGRESSIVA

O narrador conta sobre um menino que usava óculos e sobre sua relação com os familiares, que agiam segundo suas falas mais ou menos originais.

O menino era tido como inteligente e astuto em casa. O que ele dizia provocava olhares mútuos de confirmação de sua superioridade. Então ele começou a compreender que dependia dele a boa convivência dos membros da família. Quando não era ele o centro das atenções, eles se desentendiam.

Para apoderar-se da chave de sua inteligência, o menino costumava repetir seus ditos; mas ninguém prestava mais atenção. Essa instabilidade dos familiares passou para ele, que adquiriu, então, um hábito mantido o resto da vida: pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia esse cacoete, era sinal de que estava interiormente tendo noção de sua instabilidade.

Iria passar uma semana na casa de uma prima que não tinha filhos e que adorava crianças. Passou os dias preparando-se, criando expectativas, imaginando o “dia inteiro” que passaria com ela e o amor inteiro que receberia. Na semana que antecedeu a esperada visita, a cabeça do menino ferveu: como se apresentaria diante da prima? Inteligente? Bem comportado? Quem sabe até como palhaço? Triste talvez? Sentia até aperto no estômago quando antecipava a situação de que ia ser amado sem seleção, sem escolha, o que representava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas preocupações passaram a ser outras: que elementos ele daria à prima para ela ter certeza de quem ele era? Como encararia o amor que ela nutria por ele?

Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): a prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo.

Já que suas previsões foram por terra, resolveu brincar de não ser nada. No entanto, à medida que o dia avançava, o amor da prima se evidenciou. Era um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía paixão, a paixão pelo impossível.

Quando o menino descobriu o ingrediente da paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a própria miopia o fizesse enxergar.

Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.”

A forma de amá-lo era deixá-lo viver e ele sentiu-se amado, e “foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo”, ou “a miopia mesmo é que o fizesse enxergar”.

RESTOS DO CARNAVAL

Em “Restos do Carnaval” o procedimento narrativo é o mesmo que em “Felicidade Clandestina”: a escritora adulta rememora um episódio da sua infância passada nas ruas e praças de Recife, que encontravam “sua razão de ser” no Carnaval. Leia mais

O GRANDE PASSEIO

Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois filhos: todos morreram e ela ficou sozinha.

Depois de dormir em vários lugares, Mocinha acabou, não se sabia por que, passando a dormir sempre nos fundos de uma casa grande no bairro Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela.

Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis, entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um fim-de-semana lá e levou Mocinha.

Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem flashes descontínuos, vinham-lhe à cabeça pedaços de recordações de sua vida no Maranhão: a morte do filho Rafael atropelado por um bonde; a morte da filha Maria Rosa, de parto; o marido, contínuo de uma repartição, sempre em manga de camisa, ela não conseguia se lembrar do paletó… Só conseguiu dormir de madrugada. Acordaram-na cedo e a acomodaram no carro.

A viagem transcorreu para Mocinha entre cochilos e novos flashes de memória com cenas entrecortadas da vida passada. Foi deixada perto da casa do irmão do rapaz que dirigia, Arnaldo; indicaram-lhe o caminho e recomendaram que dissesse que não podia mais ficar na outra casa, que Arnaldo a recebesse, que ela poderia até tomar conta do filho.

A alemã, mulher de Arnaldo, estava dando comida ao filho; deixou Mocinha sentada sem lhe oferecer alimento, aguardando o marido. Este veio, confabulou com a mulher e disse a Mocinha que não poderia ficar com ela. Deu-lhe um pouco de dinheiro para que tomasse um trem e voltasse para a casa de Botafogo. Ela agradeceu e saiu pela rua. Parou para tomar um pouco de água num chafariz e continuou andando, sentindo um peso no estômago e alguns reflexos pelo corpo, como se fossem luzes. A estrada subia muito. “A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco de árvore e morreu.”

COME, MEU FILHO

A mãe dá comida ao filho Paulinho e ele fica puxando conversa para evitar ter que comer. Os assuntos que ele traz são desconexos, simples pretextos para não comer. Por exemplo: o mundo é chato e não redondo; o pepino parece “inreal”, faz barulho de vidro quando a gente mastiga; quem teria inventado o feijão com arroz; o sorvete é bom quando o gosto é igual à cor… A mãe, paciente, vai respondendo laconicamente e insistindo em que Paulinho não converse tanto e coma.

No fim, ele pergunta se é verdade que adivinhou que ela o olha daquele jeito não é para ele comer, mas porque gosta dele. A mãe diz que ele adivinhou sim, mas torna a insistir em que ele coma. Paulinho retruca: “ – Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece”.

PERDOANDO DEUS

Este texto de Clarice externa, com sua peculiaridade de expressão, uma experiência interior de grande impacto à protagonista. Leia mais

TENTAÇÃO

É uma cena lírica. Uma menina ruiva estava sentada na calçada, triste e soluçante.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão de Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset ruivo.

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro.

Que foi que disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro de sua inocência que só se abriria quando ela fosse mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem só uma vez olhou para trás.

Leia o conto na íntegra:

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

O OVO E A GALINHA

O conto “O ovo e a Galinha” se parece mais com uma dissertação sobre o mistério do ovo. Mas sendo algo entre a crônica e o conto ou um simples texto sem classificação, pouco tem daquela organização que encontramos no poema “O Ovo da Galinha”, de João Cabral de Melo Neto. Leia mais

CEM ANOS DE PERDÃO

Neste breve conto, também passado nas ruas de Recife, Clarice Lispector aborda novamente o tema da rosa, que lhe é tão caro. Leia mais

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

O conto começa com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais que conhecera, mas há muito tempo não via mais. “Estou tentando falar daquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim”. Leia mais

OS OBEDIENTES

Neste conto é enfocada a vivência de um casal, e a voz narrativa tem papel preponderante para interpretar os “acontecimentos” sob uma ótica de ironia, que desmascara muitos valores da sociedade patriarcal.

Trata-se de um relato singular, que recria a rotina desmotivadora de um casal, que vai vivendo por viver, sem ter consciência nem de sua realidade medíocre, nem da realidade que os cerca. São pessoas anônimas, iguais a outras pessoas, que se submetiam ao irremediável da vida.

Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.

Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente.

Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro homem a salvaria.

Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente.

Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os própiros olhos…” Então, jogou-se pela janela.

O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”

A REPARTIÇÃO DOS PÃES

O assunto do texto é um almoço para participantes, como Clarice esclarece: ”Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo”. Trata-se de um almoço de obrigação oferecido num sábado, dia desejado por todos, e no entanto, era obrigação permanecer no almoço.

Clarice, para reforçar o estado de espírito dos convidados, usou como metáfora o trem descarrilado que obriga a todos os passageiros permanecerem em um lugar estranho, entre estrangeiros, desconhecidos que não conhecem o prazer de cada um que ali se encontra. O narrador, um dos convidados, foi narrando a insatisfação de perder o sábado com um almoço que poderia ter sido trocado por uma quinta-feira à noite. O narrador lamenta também que a dona da casa não se importava com o grupo heterogêneo: um sonhador outro resignado. Para justificar a longa espera pelo almoço, Clarice, continuou se utilizando da metáfora do trem: ”…Como pela hora da partida do primeiro trem, qualquer trem” ou a metáfora do cavalo: menos refrear o cavalo”. Finalmente o almoço.

Antes do almoço, a dona da casa, começou a lavar os pés dos estrangeiros. Com isso Clarice fez menção á última ceia quando Jesus lavou os pés de seus discípulos em sinal de Humildade. Já à mesa o narrador detalha a comida que estava sobre a mesma.

Começa dizendo que sobre a mesa se encontrava uma toalha branca, sobre a toalha amontoavam-se espigas de trigo. Descrita a mesa, o narrador começou a descrever todas as iguarias que estavam sobre ela além do trigo: “maçãs vermelhas, enormes cenouras, abacaxis malignos… Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para redondo ar”. Nas bilhas estava o leite, o vinho quase negro de tão pesado. Tudo diante de nós.

Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Não havia holocausto, tudo queria ser comido. O narrador continua descrevendo o almoço como dizendo estarem todos ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. “Comi aquela comida e não o seu nome”. Finaliza dizendo que: “Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos”.

UMA ESPERANÇA

Uma esperança, um inseto que se chama esperança, pousou na parede da casa da narradora. Ela e os filhos ficaram observando a esperança andar, sem voar (“Ela esqueceu que pode voar, mamãe.”)

Uma aranha saiu de trás do quadro e avançou em direção à esperança. Embora “dê azar” matar aranha, ela foi morta por um dos filhos.

A narradora se espanta de não ter pego a esperança, ela que gosta de pegar nas coisas. Lembrou-se de certa vez que uma esperança pousou no seu braço. “Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada”.

Leia o conto na íntegra:

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

– Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

– Ela quase não tem corpo, queixei-me.

– Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

– Ela é burrinha, comentou o menino.

– Sei disso, respondi um pouco trágica.

– Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

– Sei, é assim mesmo.

– Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

– Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

– Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar – estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

– É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte…

– Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

– Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

– Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.

MACACOS

Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um macacão ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora estava exausta.

Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o macaco.

Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette. Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.

Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela família. Ela encantava sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica.

No dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’, respondi.”

OS DESASTRES DE SOFIA

Este longo conto também alude, como no conto “Felicidade Clandestina”, a um livro infantil: Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na França e no Brasil até meados do século XX. Também neste caso a alusão não parece ser gratuita. Leia mais

A CRIADA

Descrição poética de Eremita, a criada que fazia os serviços domésticos como alguém talhado exatamente para aquilo. Parecia viver num mundo profundo e misterioso, mas sem a verdadeira consciência da profundidade da floresta em que mergulhava.

Eremita que nada mais apresentava a não ser o perfil de um criada: nem bonita nem feia, cumpria seus deveres sem competência e sem desleixo; mas, por trás da figura-padrão e das frases convencionais pronunciadas convencionalmente, escondia-se um mundo interior indecifrável para qualquer pessoa, inclusive para ela mesma.

De vez em quando, se interiorizava, se desligava; quando retornava desse passeio por sua floresta íntima, estava mais calma e ia consolidando a sua doçura próxima das lágrimas.

Nada em Eremita denunciava perigo, a não ser uma maneira rápida de comer pão. “No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecia sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.”

A MENSAGEM

Conto cujo tema é a dificuldades de relacionamento, sobre dois estudantes, que tentam não se ver como homem e mulher.

Um rapaz de dezesseis anos e uma moça de dezessete, colegas de escola sem amizade, um dia se sentiram ligados um ao outro porque ela disse que sentia angústia e ele também.

A partir de então se tornaram íntimos. Intimidade que não significava sexo nem amor. Eles se sentiram ligados porque ambos queriam ser autênticos, sinceros, diferentes dos outros. Não se viam como homem e mulher, mas como dois seres angustiados, à procura de algo que eles não sabiam o que fosse. Vagamente, confusamente, achavam-se portadores de uma mensagem. Mas o que era isso?

Saindo do colégio no último dia letivo, os dois caminhavam numa rua próxima do Cemitério S. João Batista, no Rio. A calçada era estreita e os ônibus passavam rentes. De repente, os dois se viram colados a uma casa velha. Pararam diante dela, olharam para a fachada. Em seu íntimo cada um foi se descobrindo ali, parados: ele era apenas um rapaz e ela, uma moça. Não tinham mais o que se dizer e por que continuarem juntos.

Ela despediu-se, correu para um ônibus que estava parado. Entrou subindo como se fosse um macaco, pensou ele, vendo-a acomodar-se lá dentro.

A moça saíra envergonhada por se sentir mulher; o rapaz tinha acabado de nascer homem. “Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? (…) para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne podre da qual, ao subir no ônibus, como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.” O que estava acontecendo a ele naquele momento em que viu a moça entrar no ônibus daquele jeito? Nada! Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Só que agora ele se sentia fraco para resistir ao que os outros tentavam ensinar-lhe para ser homem. “Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.”

MENINO A BICO DE PENA

Neste conto o adulto, ao escrever para a criança, desenha-a. A autora se dispõe a uma análise que visa “acompanhar no menino o nascimento da linguagem e do sujeito”.

O narrador busca a visão de criança (do bebê) reconhecendo o mundo e o mostra desse ângulo inusitado.

As experiências espaciais do bebê, a baba, o sono, a mãe, o aconchego, a solidão, a percepção das coisas, a segurança da mãe, a fralda seca.

É um conto sobre o qual é melhor não dizer, mas ler.

Um menino, que ainda não fala nem anda direito, está sentado no chão. Tenta dar alguns passos, cai; engatinha, baba. Depois a mãe o toma no colo, o faz dormir, troca a fralda dele e o ouve dar os primeiros sinais da fala.

UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR

Uma menina de Minas Gerais tinha duas galinhas, Pedrina e Petronilha. Cuidava delas como se fossem pessoas.

Certa vez, foi passar o dia fora e, quando voltou, Petronilha tinha sido comida pela família. Ficou contrariada. Mas a mãe lhe disse que foi pena as duas, ela e a filha, não terem comido algum pedaço de Petronilha, pois, quando a gente come os bichos, eles ficam parecidos com a gente, assim dentro de nós.

Pedrina morreu naturalmente. Morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num pano escuro, em cima de um fogão de tijolos.

Um pouco maiorzinha, a menina teve outra galinha, a Eponina. Esta foi comida ao molho pardo por toda a família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse nela e se tornasse mais dela morta do que em vida. “Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.”

Leia o conto na íntegra:

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longíquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia : “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café – e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

– Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

– Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:

– Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.

AS ÁGUAS DO MUNDO

O conto relata o banho matinal de uma mulher no mar. Este a mais ininteligível das existências não humanas; aquela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Este texto de Clarice Lispector mostra a integração de um no outro: ela dentro do mar, ele dentro delas aos goles.

Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar: este, o mais ininteligível das existências não humanas; ela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes. “E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.

Agora ela está toda igual a si mesma.”

Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, não recebe transmissões. Depois caminha na água e volta à praia. Agora, pisa na areia. “E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.”

Leia o conto na íntegra:

Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que se pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porquê ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação a vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não têm o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no amr em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta as coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transformou em frígido. Avançando, ela sobre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.

E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas – ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.

A QUINTA HISTÓRIA

Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense, experiências sobre o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato, o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão sobre o fazer literário que acompanha os contos de Clarice Lispector. Leia mais

ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA

A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.

Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma missão”.

A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações. Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa. “E quando o fantasma de mim mesmo me toma – então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”.

Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado. Então, a narradora fez o mesmo. “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”.

Leia o conto na íntegra:

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia no avião…ah, meu Deus – implorei – isso não, não quero ser essa missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já haviam me tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço- mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar o chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. Ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depudorado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma – então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava ficando hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance da minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais.

Falhou tudo.

DUAS HISTÓRIAS A MEU MODO

A narradora relembra duas histórias, que ela escrevera para se divertir, dando ao autor imaginário o nome de Marcel Aymé.

Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região, mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todos esse fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não bebia vinho.

Então o narrador imaginário, Aymé, pára essa história e em Paris conta sobre Etienne Duvilé.

Duvilé, funcionário público em Paris, pobre, que gosta de mesa farta e vinho, e não as tem.

Sua realidade era uma família grande que sonhava com mesa farta e ele, com vinho. Depois do sonho de uma noite de sábado, a sede de vinho piorou.

Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas beber todo o mundo.

Tinha uma sede tamanha que quase mata o sogro parasita. Duvilé enlouquece e no sanatório só bebe água. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com água mineral “que estanca sedes pequenas e não a grande”. Enquanto isso, Félicien pegou gosto pelo vinho.

O PRIMEIRO BEIJO

O texto se encontra na terceira pessoa, o autor narra a história do pequeno rapaz que havia tido sua primeira experiência com o sexo oposto, mesmo que de uma forma surreal.

O autor não se introduz na história, a narra analisando todos os acontecimentos como se estivesse ao lado do protagonista.

Podemos dizer que a realidade do conto consiste na paixão do rapaz por sua primeira namorada, e no ciúme dela. Podemos também entender como real, a dúvida que o menino tem quanto a sua experiência com a estátua.

A dúvida é o sentimento mais presente em toda a construção da narrativa. Talvez a necessidade que o menino estava de beber água o tenha feito sonhar um pouco mais. O encontro dos lábios do menino com os lábios da estátua da mulher nua, despertou sensações que até então não havia conhecido. O fazendo vivenciar experiências marcantes para sua vida como homem.

Neste conto de Clarice Lispector, ela evoluiu como elemento principal a estátua da mulher, que da base para todo o transcorrer do conto, para todo o contexto irreal do conto.

Em “O Primeiro beijo”, a autora apenas narra uma situação da qual não fez parte diretamente.

Um rapaz conta para sua namorada que já havia beijado outra mulher. Numa excursão de ônibus escolar, ele estava com muita sede. Quando houve uma parada perto de um chafariz, ele foi o primeiro a chegar para beber. Colou a boca no orifício de onde jorrava a água. Depois que se saciou, abriu os olhos e viu que o orifício era a boca de uma estátua de mulher nua. Afastou-se, ficou olhando para a estátua. Fora seu primeiro beijo. “Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva. (…) Ele se tornara um homem.”

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