Em Invenção de Orfeu,
último livro que Jorge de Lima publicou em vida, o autor combina
o catolicismo, o elemento onírico e o surrealismo. É o documento literário
da natureza barroca do Brasil.
A obra não nasceu na planificação da brasilidade; por isso mesmo,
na sua força caótica e dispersa, é uma poderosa imagem deste país afro-europeu
que carreia uma antiga cultura para enriquecer suas nascentes bárbaras.
O texto
de Invenção de Orfeu é extremamente complexo e erudito. Apresenta
diversas técnicas e faturas: poesias metrificadas e rimadas, outras em metro
livre e verso branco, sonetos, canções, baladas, poemas épicos, líricos, poesias
de carne e de sangue, poesias de infância, episódios surrealistas, esboços de
dramas e de farsas. Propõe uma espécie de teodisséia (= odisséia para Deus) centrada na busca, pelo homem, de uma plenitude sensível e espiritual. ressalta a complexidade do estilo vazado num imenso leque de metros, ritmos e estrofações e em formas de difícil elaboração: oitavas clássicas, tercetos, sextinas etc.
Poema épico e
subjetivo, longo em dez cantos fragmentários, Invenção de Orfeu une
fragmentos de epopéias clássicas, como a Divina comédia, Eneida,
Os Lusíadas e a própria Bíblia a elementos sociais nacionais. O autor
constrói uma epopéia moderna e brasileira ao criar uma viagem na qual se depara
com o Inferno, o Paraíso e algumas musas.
O próprio poeta nos revela seus propósitos, na introdução do poema: – “Eu pretendi com este livro, que é um poema só, único, dividido em 10 cantos, fazer a modernização da epopéia. Uma epopéia moderna não teria mais um conteúdo novelesco. Não dependeria mais de uma história geográfica, nem, dos modelos, clássicos da epopéia. Verifiquei, depois da obra pronta e escrita, que quase inconscientemente, devido à minha entrega completa ao poema, que não só o Tempo como o Espaço estavam ausentes deste meu longo poema e que eu tinha assentado as suas fundações nas tradições gratas a uma epopéia brasileira, principalmente , as tradições remotamente lusas e camonianas.”
SONETO DIDÁTICO
Nem tudo é épico e oitava rima.
(Jorge de Lima. Invenção de Orfeu)
Nem tudo conta em doze ou conta em dez
a despeito do gênio desta língua.
Usar lira na 4ª, e tambores na 6ª
não preenche no amor a sua míngua.
Nem tudo se descreve arte maior
no decassílabo, que, mais se evita,
impõe-se em privação à nossa sede
aqui vou, ali vais, gaita galega.
Penetra numa terra sem fronteiras
(sem armaduras e sem rimas raras)
e repousa naquelas altas leiras
a ouvir os imortais sussurros, fartos,
que sequer chegam à escrita em seus perjúrios
abafados no horror dos
sons espúrios.
CANTO PRIMEIRO (fragmento)
FUNDAÇÃO DA ILHA
II
A ilha ninguém achou
porque todos a sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.
Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim
mesmo sem terra e sem mim
Mesmo sem naus e sem
rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar……..