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Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto

by Lucas Gomes

Lendas do Sul, é o terceiro livro do autor regionalista João Simões Lopes Neto, e foi publicado em 1913. Reúne 17 lendas recolhidas por Simões Lopes Neto, que, não se contentando com o registro puro e simples, deu-lhes forma de verdadeiras obras-primas do conto gaúcho, principalmente pensando no “Lunar do Sepé” (1902), “O negrinho do pastoreio” (1906), “Mboitatá” (1909) e “Salamanca do Jarau” (1913).

Estas são apenas algumas das lendas do Rio Grande do Sul que o livro narra. Lendas que outrora foram passadas de boca a boca, principalmente na região interiorana. Um dos contos apresentados, “A Salamanca do Jarau” inspirou Érico Veríssimo a escrever algumas partes de sua grande obra, O Tempo e o Vento.

A compilação de lendas efetuada pelo escritor foi de grande inspiração para os futuros escritores brasileiros do modernismo, mais especificamente do romance de 30, por se tratar da mais pura representação do homem brasileiro. Nas histórias, nada do homem é ignorado: sua linguagem seus hábitos e até reflexos do ambiente que o rodeia são descritos com uma linguagem despojada, porém de difícil compreensão para aqueles que não estão habituados ao vocabulário gaúcho. Por se encontrar em uma linha limite entre o realismo e o modernismo propriamente dito, as obras de João Simões Lopes Neto são agrupadas no perfil literário do pré-modernismo.

A obra Lendas do Sul apresenta, entre outras, e já citado, três das principais lendas de nossa cultura: “A Mboitatá”, “O Negrinho do Pastoreio” e “A Salamanca do Jarau”. Nas duas primeiras, temos o personagem Blau Nunes, típico crioulo, como narrador; já na terceira, temos o mesmo personagem como protagonista da história.

A lenda “O lunar de Sepé”, ouvida pelo autor através de “uma velhíssima mestiça – Maria Genória Alves – moradora na picada que atravessa o rio Camaquã, entre os municípios de Canguçu e Encruzilhada”, narra em versos as contendas guaraníticas das reduções das Missões, causadas pela assinatura do Tratado de Madri, em 1750, em que Portugal recebeu de Espanha essas possessões em troca da devolução da Colônia do Sacramento.

É sabido o quanto foi significativa a organização dos Sete Povos das Missões (São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Francisco Borja, São Luís Gonzaga, São João Batista, São Lourenço Martir e Santo Ângelo Custódio), comunidades com organização democrática socializante, em que todos produziam para o grupo, no qual a participação nas decisões era completamente ativa, sistema em que se desenvolveu um clima favorável à intensa produção cultural, principalmente na Arquitetura e na Música. Não foi de se estranhar que os índios e missionários lutassem para preservar as reduções. Sepé Tiaraju, corruptela de José, sábio para os charruas, ou chefe, da mesma etimologia de eçapé, que significa ‘ver caminho’, ‘alumiar’, era realmente um iluminado, marcado por um lunar na testa, insígnia de sua coragem para defender seu povo e suas conquistas.

Observem-se alguns versos da composição:

Do sangue dum grão-Cacique
Nasceu um dia um menino,
Trazendo um lunar na testa,
Que era bem pequenino:
Mas era um-cruzeiro-feito
Como um emblema divino
[…] Diferente em noite escura
Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visível
apenas o sol era posto;
assim era-Tiaraiú-,
Chamado -Sepé,-por gosto.
(LS, p. 103)

Na relação dos povos guaraníticos com a coroa de Castela e Portugal ficou alegorizada a exploração e opressão dos desvalidos que não podiam compreender o que não fazia parte de seu código ético de valores e talvez ainda a violência que representaram para os povos mais primitivos, os interesses dos civilizados. Observe:

E, de Castela, tampouco
Esperava tal furor;
Pois sendo seu soberano,
respeitava seu senhor;
Já lhe dera ouro e sangue,
E primazia e honor!

E Sepé Tiarajú foi vencido pelos poderosos e com ele todo o povo das Missões. Note:

Mas, o lunar de Sepé
era o rastro procurado
Pelos vassalos dos reis,
Que o haviam condenado…
ficando o povo, vencido…..
E seu haver…conquistado!
(LS, p.106)

Outra lenda, “O negrinho do pastoreio”, é considerada a mais genuinamente sul-riograndense, pois pontua o linguajar e ambiente típicos do gaúcho do interior do Rio Grande do Sul. Muito lida e contada, esta lenda reconstrói a trajetória do Negrinho a quem “não deram padrinho nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não tem.” Talvez a lenda tenha sua popularidade embasada no quanto chocante é uma alegoria dos maus tratos aos escravos num Estado onde a escravidão não foi enfática nem agressiva. Fala de um tempo em que as estâncias, como símbolo da propriedade privada, começavam a surgir, e do fazendeiro como um mau caráter, contraponto da heroicidade mitificadora com que o campeiro gaúcho era sempre configurado, na qual a generosidade e hospitalidade eram fundamentais. Observe-se um fragmento do texto:

Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.

Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era seu próprio couro que ele estava lonqueando […] (LS, p.79)

Um negrinho sem nome era empregado desse estancieiro que, irritado por perder uma carreira de cavalos em que esse era o ginete do baio, maltratou-o seguidas vezes obrigando-o a cuidar de tropilhas de animais que fogiam, ou porque ele se distraia dormindo, ou porque o filho do patrão, tão maleva como o pai, soltava os animais deixando-os fugir. O estigma de perder o gado passou a acompanhar o negrinho que de tantos maus tratos do estancieiro acabou morrendo jogado num formigueiro. E, como narra a lenda “nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno [..].” (LS, p.85), enfatizando-se o pouco valor dos bens materiais tão estimados pelo fazendeiro.

Ao final da narrativa, o negrinho ressucita, salvo por Nossa Senhora, sua madrinha, e passou a ser considerado como aquele que tem o poder de achar perdidos. Veja: “daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela , cuja luz ele levava para pagar a do altar …da Virgem, …que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém vêr”. (LS, p.86). Então, “quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo – Foi por aí que eu perdi… Foi por aí que eu perdi… Foi por aí que eu perdi!… Se ele não achar… ninguém mais”. (LS, p.87)

Ainda uma outra lenda, “Mboitatá” é uma lenda guarani que, para explicar as fantasias criadas pela aparição dos fogos-fátuos no campo, produzidos pela fosforescência de restos de ossadas, conta a história de uma interminável noite em que houve uma enchente tão grande que alagando a cova da cobra boiguaçu fê-la sair para fora e comer todos os olhos dos animais e homens mortos transformando-se numa serpente luminosa. Observe:

E vai,
como a boiguaçu não tinha pelos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos.
(LS, p.28)

E é interessante que os olhos comidos são metonímicas representações da essência de cada ser. Daí, sua potencialidade virtual de alimentar a cobra. Veja:

Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue tem cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor dos seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão- aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados baços![…]
(LS, p. 227)

E o narrador explica porque a cobra, assim mesmo, cheia de olhos, morreu ao cabo de um tempo: “[…] a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos […]” (LS, p.29)

É procedimento habitual em Simões Lopes Neto a universalização de um tema regional dando-lhe caráter de alegoria filosófica. Nota-se que, nessa lenda, se discute a essência do ser e sua impossibilidade de transferência e apropriação.

Isso se repete, na mais significativa lenda desse grupo, “A salamanca do Jarau,” introduzida pelas palavras que explicitam sua origem: “Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que esses viram![…]“ (LS, p.29)

Aqui, se conta um fato ocorrido com Blau Nunes, o gaúcho campeiro contador de causos, antigo furriel da Revolução farroupilha, que é o narrador revivido de Contos gauchecos, outra obra de Simões Lopes Neto. O personagem vive um momento de crise e sem sorte, pois, sendo pobre, ainda perdeu a força, a coragem e o poder de cultivar. Chamado à aventura, saiu à procura do boi barroso, elemento mágico capaz de lhe trazer felicidade. Essa busca tem as características de uma viagem mítica que alegorizou também as inquirições do homem sobre o sentido de sua existência. Observe a lenda:

Era um dia…
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas-a carqueja é sinal de campo bom-, por isso o campeiro às vezes alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia campeando, campeando […]
(LS, p.35)

Blau Nunes, campeiro de cepa, vivia um momento de crise, pois

gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava…

Domador destorcido e parador, que só por pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas quando gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado…

De mão feliz para plantar, que não lhe chochava semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia…; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e azeda…

E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau de nome, ia ao tranquito, campeando, sem topar coo boi barroso. (LS, p.37)

Na sua viagem de busca, encontrou a Caverna do Jarau, daí, o título da lenda, onde ficou sabendo da história de um sacristão encantado e perdido por uma salamanca, lagartixa mágica, a Teiniaguá, que o seduziu metamorfoseada numa princesa lindíssima e o prendeu para sempre. Entrou, então, nesse espaço mágico, onde passou por sete provas que enfrentou: as espadas, os jaguanés e pumas, ossamentas de criaturas, as línguas de fogo, a boicininga, as lindas mulheres, os anões cabeçudos. Chegou então à presença da encantada que lhe falou oferecendo prêmios, representados pela sorte, poder de sedução, sabedoria, coragem, autoridade, riqueza e sensibilidade artística, mas o campeiro se deu conta que ele queria muito mais. Disse o narrador:

Blau nem se moveu; e, carpindo dentro de si a própria rudeza, pensou no que queria dizer e não podia e que era assim:
– Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo! …És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim…Eu te queria a ti, teiniaguá encantada! […]
(LS, p.63)

Observa-se que, mais uma vez, o reaproveitamento da lenda assumiu dimensões alegóricas de reflexão sobre o sentido da existência e a miséria humana diante da inexorabilidade de alcance do absoluto.

Continuando a narrativa, Blau resolveu então voltar ao mundo real levando uma moeda mágica que quanto mais pagava suas compras mais se multiplicava. No entanto, quem era pago por ele perdia em seguida a mesma quantia em algum novo negócio. E assim, todos começaram a olhar desconfiados para ele que foi, pouco a pouco, enriquecendo mas perdendo os amigos e ficando muito rico, mas infeliz.

Desatinado, Blau voltou para a caverna, devolveu a moeda e retornou para casa de posse de uma grande descoberta: a importância da amizade e da paz de viver. Veja-se as últimas palavras que dão fechamento à lenda: “E agora estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco…; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida! “ (LS, p.63)

Simões Lopes Neto não imaginaria o quanto sua mão poderia abrir perspectivas de interpretação amplas para o leitor que, a partir de um universo configurado regionalmente, pode alçar-se ao universal.

Fonte parcial: Lisana Bertussi, Professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras e Cultura Regional da Universidade de Caxias do Sul, Doutora e Pós-Doutorada em Letras.

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