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Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo

by Lucas Gomes

Análise da obra

Álvares de Azevedo é um dos vultos exponenciais do Romantismo. Embora tenha morrido aos vinte anos, produziu uma obra poética de alto nível.

A obra é fruto dos dramas de um adolescente que se vê entre desejos e frustrações, vontades e decepções constantes, o que corporifica as tendências psíquicas de uma geração já que o Romantismo pode ser considerado um movimento de adolescência, isto é, marca-se pela ambigüidade de uma vida ao mesmo tempo frágil e poderosa.

Incompreendido na morbidez e na valorização de aspectos decadentes (melancolia, tédio, pessimismo, vício) Álvares de Azevedo se encontrou cansado precocemente da vida e sentia um desejo de fuga que concretizou através de sua poesia que, embora marcada pela introspecção e individualismo, relata as correntes obscuras de seus desencantos e receios.

Já na Epígrafe de Bocage percebe-se a intuição antecipada da sua decadência. Daí, talvez, ter se atirado aos livros como quem tem pouco tempo para entender o que é a vida e adquirir uma lucidez intelectual que o faz se referir a épocas, autores e obras distantes e estranhas à sua realidade.

Mergulhado no spleen byraniano e conscientemente baseado na contradição, descrente e derrotado, escreveu na Lira dos Vinte Anos os poemas mas significativos de sua obra poética. A metrificação sempre variada, mas imperfeitas, ritmos alucinantes comprovam que a liberdade criativa baseada na emoção, característica do Romantismo, haveria de ser respeitada.

A Lira dos Vinte Anos compõe-se do que há de melhor na produção de Álvares de Azevedo: Idéias Íntimas, Spleen e Charutos, Lembranças de Morrer, Se Eu Morresse Amanhã, É Ela! É Ela! É Ela! É Ela!, são alguns dos poemas mais expressivos do Romantismo gótico.

Estruturalmente divide-se em três partes; mas do ponto de vista temático, em apenas duas, pois a primeira e terceira partes têm temas assemelhados: a morte, a família, os temas da adolescência, o sonho, a religiosidade, a forma feminina como obsessão; a segunda parte, no entanto, traz o irônico, o “satânico”, a mulher, ainda que em sonho, aproximada do erótico, carnal.

Primeira parte

É composta por 33 poemas, inicia-se por um prefácio que tem epíteto sugestivo de Bocage: Cantando a vida, como o cisne a morte. Contém poemas cuja temática é intimista: dores do coração, medo da morte, a mulher que ora se mostra, ora se esconde, a família, o sonho e a fantasia que se misturam principalmente através do jogo metafórico na erotização da mulher. Há nessa parte o aparecimento de símbolos que deixam entrever a sexualidade reprimida. O adolescente ingênuo inspira-se nos seus familiares, nas amadas virgens sonhadas e nunca reveladas exatamente, fazendo-se parecer sentimental e infeliz, sendo sua dor acalmada pela lembrança da mãe e irmã. Álvares de Azevedo é um anjo que chama seus versos de primeiros cantos de um pobre poeta: São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos seus cânticos de amor. É uma lira, mas sem cordas; uma primavera, mas sem flores; uma coroa de folhas, mas sem viço. Cantos espontâneos do coração, vibrações doridas da lira interna que agitava um sonho, notas que o vento levou, – como isso, dou a lume essas harmonias. São as páginas despedaçadas de um livro não lido… (…) que, logicamente vive num “mundo visionário e platônico”. Se a a face de Anel, personagem de Shakespeare, que representa o Bem, adolescente e casta.

Vejamos alguns poemas:

NO MAR

Les étoiles s’allument au ciel, et la brise du soir erre doucent parmi les fleurs: revez, chartez et soupirez.

George Sand

Em de noite — dormias,

Do sonho nas melodias,

Ao fresco da viração;

Em balada na falua,

Ao frio clarão da lua,

Aos ais do meu coração!

Ah! que véu de palidez

Da langue face na tez!

Como teus seios revoltos

Te palpitavam sonhando!

Como eu cismava beijando

Teus negros cabelos soltos!

Sonhavas? — eu não dormia;

A minh’alma se embebia

Em tua alma pensativa!

E tremias. bela amante.

A meus beijos, semelhante

As folhas da sensitiva!

E que noite! que luar!

E que ardentias no mar!

E que perfumes no vento!

Que vida que se bebia

Na noite que parecia

Suspirar de sentimento!

Minha rôla, ó minha flor,

Ó madressilva de amor!

Como eras saudosa então!

Como pálida sorrias

E no meu peito dormias

Aos ais do meu coração!

E que noite! que luar!

Como a brisa a soluçar

Se desmaiava de amor!

Como toda evaporava

Perfumes que respirava

Nas laranjeiras em flor!

Suspiravas? que suspiro!

Ai que ainda me deliro

Sonhando a imagem tua

Ao fresco da viração,

Aos ais do meu coração,

Embalada na falua!

Como virgem que desmaia,

Dormia a onda na praia!

Tua alma de sonhos cheia

Era tão pura, dormente,

Como a vaga transparente

Sobre seu leito de areia!

Era de noite dormias,

Do sonho nas melodias,

Ao fresco da viração;

Embalada na falua,

Ao frio clarão da lua,

Aos ais do meu coração!

Observa-se a presença da mulher dormindo e o poeta contemplando-a, deixando que permaneça em sua tranqüilidade. A ligação entre o sonho e o amor é constante no poeta que se apresenta dependente do embalo amoroso que imagina. A contraposição do ambiente noturno, e a palidez da mulher marcando seus estados emotivos dão uma tonalidade afetiva e até nebulizadora da paisagem na qual se encontra.

Descrença / Crença: a dualidade de Álvares de Azevedo:

Oh! se eu pudesse amar!… — E impossível! —

Mas fatal escreveu na minha vida:

A dor me envelheceu

O desespero pálido, impassível

Azoinou minha aurora entristecida,

De meu astro descreu!

(…)

Que vale a glória, a saudação que enleva

Dos hinos triunfais na ardente nota,

E as turbas devaneia?

Tudo isso é vão, e cala-se na treva

— Tudo é vão, como em lábios de idiota

Cantiga sem idéia.

(…)

Não chorem! que essa lágrima profunda

Ao cadáver sem luz não dá conforto…

Não o acorda num momento!

Quando a treva medonha o peito inunda,

Derrama-se nas pálpebras do morto

Luar de esquecimento!

(…)

Aqui dormem sagradas esperanças,

Almas sublimes que o amor erguia

E gelaram tão cedo!

Meu pobre sonhador! aí descansas,

Coração que a existência consumia

E roeu em segredo!…

(…)

Entre nuvem ardente e trovejada

Minh’alma se erguem, fria, sangrenta,

Ao trono de meu Deus…

Perdoa, meu Senhor! O errante crente

Nos desesperos em que a mente abrasas

Não o arrojes p’lo crime!

Se eu fui um anjo que descreu demente

E no oceano do mal rompe as asas,

Perdão! arrependi-me!

Percebe-se o drama que se origina dentro do próprio poeta devido a sua tendência contraditória que evidencia um gênio incompreendido e infeliz. A descrença e o derrotismo oscilam entre Deus e o nada. A dúvida marca a composição dos versos que acabam com um penhor esperançoso mesclado em grandes desesperos.

O dormir para o poeta:

“As ondas são anjos que dormem no mar,

Que tremem, palpitam, banhadas de luz…”

“Era uma noite — eu dormia

E nos meus sonhos revia

As ilusões que sonhei!”

“E é tão doce dormir! é tão suave

Da modorra no colo embalsamado

Um momento tranqüilo deslizar-se”

“Em um castelo dourado

Dorme encantada donzela:

Nasceu — e vive dormindo

— Dorme tudo junto dela.”

A presença do verbo “dormir” e suas variantes é constante nas poesias de Álvares de Azevedo. Em alguns textos pode-se ligá-lo à morte, uma obsessão por quase toda a obra e o tema de seus melhores versos. Em alguns momentos, os amantes efetivamente dormem, principalmente, a mulher, que é admirada pelo adolescente inconformado com sua condição. Observa-se também que a timidez sexual do jovem o coloca nessa condição receosa em relação ao amor, daí, no sonho, no sono, há uma realidade forte, o que torna e fantasia mais viva.

A sensualidade feminina através do poeta:

“Ah! que véu de palidez

Da langue face na tez! –

Como teus seios revoltos

Te palpitavam sonhando!”

“Que por um beijo perdido

Eu de gozo morreria

Em teus níveos seios nus?

Que no oceano dum gemido

Minh’alma se afogaria?

Ai Jesus!”

A presença de adjetivos e imagens que rodeiam a presença feminina partem de elementos comuns: seio palpitante, olhos, beijos perdidos, cabelos soltos. O sonho volta a ser a forma de prazer sem remorso para um poeta adolescente que tem medo diante do amor. O lirismo é visionário e decorrente da ‘fúria da solidão’ juvenil do poeta.

Autodestruição / crença / natureza: a existência

Amo a voz da tempestade.

Porque agita o coração,

E o espírito inflamado

Abre as asas no trovão!

A minh’alma se devora

Na vida morta e tranqüila…

Quero sentir emoções

Ver o raio que vacila!

Enquanto as raças medrosas

Banham de prantos o chão

Eu quero erguer-me na treva,

Saudar glorioso o trovão!

Jeová! derrama em chuva

Os teus raios incendiados.

Tua voz na tempestade

Ressoa nos meus ouvidos!

E quando as nuvens ribombam

E a selva medonha está,

Que no relâmpago surge

A face de Jeová!

A tinta da tempestade

Rouqueja nos longos céus,

De joelhos na montanha

Espero agora meu Deus!

LEMBRANÇA DE MORRER

No more! o never more!

Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a fibra

Que o espírito enlaça à dor vivente,

Não derramem por mim nem uma lágrima

Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura

A flor do vale que adormece ao vento:

Não quero que uma nota de alegria

Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro

— Como as horas de um longo pesadelo

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh’alma errante,

Onde fogo insensato a consumia;

Só levo uma saudade — é desses tempos

Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade — é dessas sombras

Que eu sentia velar nas noites minhas

De ti, á minha mãe, pobre coitada

Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai … de meus únicos amigos,

Poucos — bem poucos — e que não zombavam

Quando, em noite de febre endoudecido.

Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,

Se um suspiro nos seios treme ainda?

É pela virgem que sonhei… que nunca

Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora

Do pálido poeta deste flores…

Se viveu, foi por ti! e de esperança

De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,

Verei cristalizar-se o sonho antigo…

Ó minha virgem dos errantes sonhos,

Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário

Na floresta dos homens esquecida.

À sombra de uma cruz, e escrevam nela:

— Foi poeta — sonhou — e amou a vida. —

Sombras do vale, noites de montanha

Que minh’alma cantou e amava tanto,

Protegei o meu corpo abandonado,

E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d’aurora

E quando à meia-noite o céu repousa.

Arvoredos do bosque, abri os ramos…

Deixai a lua prantear-me a lousa!

Segunda parte

A segunda parte da Lira dos Vinte Anos é composta por 14 poemas e não se identifica tematicamente com a primeira e a terceira. Inicia-se também por um prefácio:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página!

Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei; (…) Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.

A pureza abre espaço para um porte demoníaco, macabro, irônico, amargo, sarcástico e cruel: a unidade do livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro, verdadeira medalha de duas faces. Humor negro que valoriza a decadência e a morte e a fuga através da dispersão cultivando o SPLEEN. O poeta é um moço que envelheceu precocemente e entra em conflito com a realidade. E importante notar a proximidade com a prosa em algumas poesias dessa parte onde teríamos Caliban, personagem de Shakespeare, que representa o mal, o lado escuro dos seres, a desordem, o desequilíbrio, a face do próprio Álvares de Azevedo, segundo ele mesmo, tragado pelos vícios e amadurecido antes do tempo.

Dito isso, está claro que o Álvares de Azevedo quer fazer ressaltar algo: na Parte II estão contidos os poemas irônicos, as paródias, um suposto “satanismo” somente encontrado em Noite na Taverna.

A pureza do poeta

“Morrer! e resvalar na sepultura,

Irias na fronte as ilusões no peito

Quebrado o coração!

Nem saudades levar da vida impura

Onde arquejou de fome… sem um leito!

Em treva e solidão!”

“Oh! ter vinte anos sem gozar de leve

A ventura de uma alma de donzela!

E sem na vida ter sentido nunca

Na suave atração de um róseo corpo

Meus olhos turvos se fechar de gozo!”

O jovem adolescente sente-se amedrontado diante do sentimento amoroso que se lhe apresenta. A pureza e a castidade dele são notáveis nos versos acima já que nega qualquer tipo de envolvimento com a mulher, mas não recusa a atração física que sente por ela.

O humor

(Spleen e Charutos)

SOLIDÃO

Nas nuvens cor de cinza do horizonte

A lua amarelada a face embuça;

Parece que tem frio, e no seu leito

Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se, vem da noite a vagabunda

Sem chale, sem camisa e sem mantilha,

Vem nua e bela procurar amantes;

É dorida por amor da noite a filha.

As nuvens são uns frades de joelhos,

Rezam adormecendo no oratório:

Todos têm o capuz e bons narizes.

E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam-se na praia.

Qual de uma fada os mágicos retiros –

Ó lua, as doces brisas que sussurram

Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração que nota aérea

Deste céu, destas águas se desata?

Canta a mim algum gênio adormecido

Das ondas monas no lençol de prata?

Minh’alma tenebrosa se entristece.

É muda como sala mortuária

Deito-me só e triste, e sem ter tome

Vejo na mesa a ceia solitária.

Ó lua, ó lua bela dos amores,

Se tu és moça e tens um peito amigo,

Não me deixes assim dormir solteiro,

À meia-noite vem cear comigo!

A presença do humor está em Solidão juntamente com o toque gracioso da necessidade sexual. A mulher não tem, a principio, os escrúpulos das virgens idealizadas de outros textos, dai não haver o mistério, o vulto feminino e sim uma mulher pálida, bela, um anjo ao avesso que ele pode possuir ou suspirar como o sussurro da brisa. Devido à subjetividade exagerada da 2ª Geração, o poeta degradado pelas imposições do mundo, vê na mulher um anjo, ser superior.

Morrer e dormir

“Morreu um trovador — morreu de fome.

Acharam-no deitado no caminho:

Tão doce era o semblante! Sobre os lábios

Flutuava-lhe um riso esperançoso

E o morto parecia adormecido”

Nota-se aqui a idéia que dá ao verbo “dormir” mais que o significado apenas de descansar temporariamente, e sim, a morte, o dormir para sempre que, para o poeta traz a esperança e a doçura do novo caminho que se abre.

A Presença do Solfier

“—  Ó minha Elfrida,

Voltemos desse lado: outro caminho

Se dirige ao castelo. É mau agouro

Por um mono passar em noites destas”.

Solfier é nome de personagem da Noite na Taverna. Ele e seus amigos narram as histórias de orgias, assassinatos e passados amorosos discutíveis frente a uma vida que para esses jovens parecia vazia.

O Poeta o os Vícios

Eat, drink and iove; what can lhe rest avail us?

Byron

“Oh! não proíbam pois ao meu retiro

Do pensamento ao merencório luto

A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d’alma escuto…

Um aroma balsâmico respiro,

Oh! deixa-me fumar o meu charuto!”

“Além um Espanhol eu vi sorrindo

Saboreando um cigarro feiticeiro,

Enchia de fumaça o quarto inteiro,

Parecia de gosto se esvaindo!”

Os jovens românticos que viviam na cidade de São Paulo levavam uma vida boêmia, repleta de orgias, atmosferas eróticas, adornadas por muita bebida alcoólica e rituais ligados à morte. A autodestruição e o desejo de fugir de uma realidade incômoda, o escapismo, configuram o estado SPLEEN do poeta, a mesma moléstia de Byron e que leva à inevitável destruição do ser espiritual e físico.

O Grotesco:

“Poetas! amanhã ao meu cadáver

Minha tripa cortai mais sonorosa!…

Façam dela uma corda, e cantem nela

Os amores da vida esperançosa

 (…)

Coração, por que tremes? Vejo a morte,

Ali vem lazarenta e desdentada…

Oue noiva! … E devo então dormir com ela?…

Se ela ao menos dormisse mascarada!”

Enfatizando-se o pessimismo de um poeta que se sentia precocemente velho, os versos acima comprovam seu inconformismo e rebeldia diante de um destino que lhe foi imposto. Num delírio febril arremete-se ao sarcasmo de Heine com força violenta, com traços de perversidade para amenizar seus dramas adolescentes, aspirações e desejos irrealizáveis.

O Poeta o o Dinheiro

DINHEIRO

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeure, adoré; on a consideration, honneurs, qualités, vertus. Quand on n’a point d’argent, on est dans la dependance de toutes cettes choses et de tout le monde.

Chateaubriand

Sem ele não há cova — quem enterra

Assim grátis, a Deo? O batizado

Também custa dinheiro. Quem namora

Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?

Demais, as Danai também o adoram.

Quem imprime seus versos, quem passeia,

Quem sobe a Deputado, até Ministro,

Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,

Embora gênio, talentosa fronte,

Alma romana, se não tem dinheiro?

Fora a canalha de vazios bolsos!

O mundo é para todos… Certamente,

Assim o disse Deus — mas esse texto

Explica-se melhor e doutro modo.

Houve um erro de imprensa no Evangelho:

O mundo é um festim — concordo nisso,

Mas não entra ninguém sem ter as louras.

Em quase toda a obra podemos notar a presença de elementos constantes como a morte, o sonho, a donzela, a angústia. a sexualidade mal resolvida. A critica não é uma marca da Lira dos Vinte Anos, logo, em Dinheiro há um inconformismo do poeta com a situação que o incomoda pessoalmente, embora Álvares de Azevedo tenha tido uma vida de regalias, e não uma preocupação social, levando-se em conta o individualismo que marca suas poesias.

Proximidade Poesia/Prosa:

“Ia caindo o sol. Bem reclinado

No vagaroso coche madornado,

Depois de bem jantar fazendo a sesta,

Roncava um nédio, um barrigudo frade:

Bochechas e nariz, em cima uns óculos,

Vermelho solidéu… enfim um bispo,

E um bispo, senhor Deus! da idade média,

Em que os bispos — como hoje e mais ainda —

Sob o peso da cruz bem rubicundos,

Dormindo bem, e a regalar bebendo,

Sabiam engordar na sineura;

Papudos santarrões, depois da Missa

Lançando ao povo a benção — por dinheiro!”

(…)

E acorda o fradalhão…

“O que sucede”?

— Pergunta bocejando: — é algum bêbado?

Em que bicho pisaram?”

(…) 

Nota-se na poesia a ausência de rima e ritmo e a preocupação métrica. Além disso, há um trajeto narrativo envolvendo personagens e conflitos que dão feição de prosa ao texto.

A Família

“Aqui sobre esta mesa junto ao leito

Em caixa negra dous retratos guardo.

Não os profanem indiscretas vistas.

Eu beijo-os cada noite, neste exílio

Venero-os juntos e os prefiro unidos

— Meu pai e minha mãe.”

A Morte do Poeta

“De tanta inspiração e tanta vida

Que os nervos convulsivos inflamava

E ardia sem conforto…

O que resta? uma sombra esvaecida,

Um triste que sem mãe agonizava…

Resta um poeta morto!”

A morte do irmão, dos colegas de faculdade, a presença da mãe e da irmã que acalmam as dores do poeta e por vezes conduzem-no a uma idealização, são freqüentes na Lira dos Vinte Anos.

Terceira parte

A terceira parte do livro, contém trinta poemas formado, ao todo, de 77 composições poéticas. Ressurge o casto e sentimental poeta que leva às últimas conseqüências seu anti-romantismo, constituindo-se da sua própria superação da idealização feminina e do amor platônico. Constata-se, portanto, que Álvares de Azevedo era um poeta em constante ebulição que, embora não tivesse sido adequadamente reconhecido em vida pelo que escrevia, conseguiu dar um tom forte aos preceitos da época, somando nele um senso crítico que não usava sempre, porém, ocupando com Lira dos Vinte Anos não apenas um lugar de destaque na literatura brasileira, mas a transposição para as palavras de seu consciente e inconsciente, de seu ponto de interrogação constante que ao leitor transforma-se em ponto de exclamação.

Não há nenhum prefácio, nenhuma indicação de abertura; mas sabemos que, tematicamente, encontraremos a mesma intenção da primeira parte: devaneios adolescentes, amor inacessível, erotização metaforizada, família, os temas da morte e do sofrimento, o poeta tão jovem… e o mesmo intimismo, o tom inquieto e confessional.

O Adolescente regressa

MEU DESEJO

Meu desejo? era ser a luva branca

Que essa tua gentil mãozinha aperta!

A camélia que murcha no teu seio,

O anjo que por te ver do céu deserta…

Meu desejo? em ser o sapatinho

Que teu mimoso pé no baile encerra…

A esperança que sonhas no futuro,

As saudades que tens aqui na terra…

Meu desejo? era ser o cortinado

Que não conta os mistérios do teu leito;

Era de teu colar de negra seda

Ser a cruz com que dormes sobre o peito

Meu desejo? era ser o teu espelho

Que mais bela te vê quando deslaças

Do baile as roupas de escomilha e flores

E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? em ser desse teu leito

De cambraia o lençol, o travesseiro

Com que velas o seio, onde repousas,

Solto o cabelo, o rosto feiticeiro…

Meu desejo? era ser a voz da terra

Que da estrela do céu ouvisse amor!

Ser o amante que sonhas, que desejas

Nas cismas encantadas de languor!

Observa-se aqui a volta do adolescente casto que sonda seu eu interior retomando o tema lírico do amor não correspondido, das virgens sonhadas e não encontradas, corporificando as tendências da geração ultra-romântica.

O Poeta e osonho

“A noite sonhei contigo.

E o sonho cruel maldigo

Que me deu tanta ventura.

Uma estrelinha que vaga

Em céu de inverno e se apaga

Faz a noite mais escura!”

Eu sonhava que sentia

Tua voz que estremecia

Nos meus beijos se afogar!

Que teu rosto descorava.

E teu seio palpitava,

E eu te vira desmaiar!

Que eu te beijava tremendo,

Que teu rosto enfebrecendo

Desmaiava a palidez!

Tanto amor tua alma enchia

E tanto fogo morria

Dos olhos na languidez!

(…) 

O sós do harmonioso

Falava em noite de gozo

Como nunca eu a senti.

Tinha músicas suaves

Como no canto das aves

De manhã eu nunca ouvi!

(…) 

Eu dei-te um beijo, sorrindo

Tremeste os lábios abrindo,

Repousaste ao peito meu…

E senti nuvens cheirosas,

Ouvi liras suspirarem,

Rompeu-se a névoa… era o céu!…

Caía chuva de flores

E luminosos vapores

Davam azulada luz…

E eu acordei … que delírio!

Eu sonho findo o martírio

E acordo pregado à cruz!”

“Sou o sonho de tua esperança.

Tua febre que nunca descansa,

O delírio que te há de matar!…”

“Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!

Meu sonhos, consolai-me! distraí-me”

O drama adolescente, as frustrações, os desejos, mas, principalmente, a falta de segurança levam-no ao sonho, pois só através dele a realização sexual poderia se concretizar em um jovem tímido e palpitante.

 O Poeta, a vida, a mulher e a poesia:

TRINDADE

A vida é uma planta misteriosa

cheia d’espinhos, negra de amarguras,

Onde só abrem duas flores puras,

— Poesia e amor…

E a mulher… é a nota suspirosa

Que treme d’alma a corda estremecida,

—É fada que nos leva além da vida

Pálidas de languor!

A poesia da luz da mocidade —

O amor é o poema dos sentidos,

A febre dos momentos não dormidos

E o sonhar da ventura

Voltai, sonhos de amor e de saudade!

Quero ainda sentir arder-me o sangue,

Os olhos turvos, o meu peito languei

E morrer de ternura!

Reunindo aqui os elementos constantes em sua poesia, Álvares de Azevedo resume que o amor seria um sentimento que o levaria ao sonho e à fantasia de uma vida que só seria possível na poesia que ele construiria a partir de suas próprias reflexões, desejos e insatisfações.

  A Donzela do poeta:

  “Donzela, feliz do amante

Que teu seio palpitante

Seio d’esposa fizer!

Que dessa forma tão pura

Fizer com mais formosura

Seio de bela mulher!

Feliz de mim… porém não!

Repouse teu coração

Da pureza no rosal!

Tenho eu no peito um aroma

Que valha a rosa que assoma

No teu seio virginal?…”

  “Oh! virgem dos meus amores,

Dá-me essa folha singela!

Quero sentir teu perfume

Nos doces aromas dela…

E nessa malva-maçã

Sonhar teu seio, donzela!”

A mulher tem uma força surpreendentemente obsessiva no adolescente. Seus estados emotivos transparecem através de névoas e de uma palidez que chega a se chocar com a escuridão da noite novamente. O receio de amar traz a mulher entre veludos, aromas. devaneios que ele não ousa dispersar, pois assim ela sena sempre uma virgem idealizada e distante.

  A Minha morte

  “Morrerei, ó morena, em segredo!

Um perdido na terra sou eu!

Ai! teu sonho não morra tão cedo

Como a vida em meu perto morreu!”

  “Oh! Morte! a que mistério me destinas?

Esse átomo de luz que inda me alenta,

Quando o corpo morrer —

Voltará amanh㠗 aziagas sinas

Da terra sobre a face macilenta

Esperar e sofrer?”
 
A inspiração do momento fez com que Álvares de Azevedo transformasse suas poesias sempre em ponto de interrogação. A dúvida da vida e a certeza da morte punham-no numa situação de estranheza diante de si mesmo. A inquietação, influenciada por Shelley, o prazer no sofrimento, o pressentimento da morte, o amargor irônico de Byron, a melancolia de Shelley fizeram com que ele valorizasse a única coisa que certamente era dele: a morte.

  O Poeta e a confirmação

Meu pobre coração que estremecia,

Suspira a desmaiar no peito meu;

Para enchê-lo de amor, tu bem sabia.

Bastava um beijo teu!

Como o vale nas brisas se acalenta,

O triste coração no amor dormia:

Na saudade, na lua macilenta

Sequioso as bebia!

Se nos sonhos da noite se embalava

Sem um gemido. sem um si sequer,

E que o leite da vida ele sonhava

Num seio de mulher!

Se abriu temendo os últimos refolhos,

Se junto de teu seio ele tremia,

É que lia ventura nos teus olhos,

E que dele vivia!

Via o futuro em mágicos espelhos,

Tua bela visão o enfeitiçava.

Sonhava adormecer nos teus joelhos …

Tanto enlevo sonhava!

Via nos sonhos dele a tua imagem

Que de beijos de amor o recendia:

E de noite nos hábitos da aragem

Teu alento sentia!

Ó pálida mulher! se negra sina

Meu berço abandonado me embalou,

Não te rias da sede peregrina

Dessa alma que te amou.

Que sonhava em teus lábios de ternura

Das noites do passado se esquece;

Ter um leito suave de ventura…

E amor… onde morrer!

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