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Malagueta, Perus e Bacanaço (Conto da obra Malagueta, Perus e Bacanaço), de João Antônio

by Lucas Gomes

O conto Malagueta, Perus e Bacanaço possui uma galeria de tipos que podemos
enquadrar na categoria dos malandros, dos que perambulam por diversos lugares, os
“muquinfos”, no anseio de suprir as necessidades básicas. Ou mesmo, na ânsia de
encontrar algum “otário” e dele tirar todo o seu dinheiro. As personagens Malagueta,
Perus e Bacanaço, os protagonistas da história, buscam, a todo o momento, a
sobrevivência, mesmo que para isso tenham que desconsiderar alguns valores morais,
já que fazem uso da trapaça, da sagacidade e da astúcia.

Os três “viradores” (termo que procede do “virar-se” e “arranjar-se”, atitudes
próprias aos malandros), citados acima, representam cada fase da vida de um ser
humano, com as características específicas que habitualmente as distinguem.

Eles são apresentados aos leitores por um narrador heterodiegético que, mesmo
culto, usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos
marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa cidade
documentariamente real, e que, no entanto, ganha uma segunda natureza no reino
da transfiguração criadora.

O narrador adota uma linguagem composta por gírias e locuções populares pois o uso
desse recurso narrativo é justamente para desfazer a imagem negativa da malandragem
que o leitor costuma ter. O narrador de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, tem a função
de criar outra representação do submundo, não só para inteirar o ouvinte, mas também
para fazer com que ele aceite essa imagem criada como verdadeira.

É através deste narrador adepto do linguajar malandro que as personagens são
expostas aos leitores. O velho Malagueta, por exemplo, pela descrição,
apresenta-se como um malandro esperto e experiente na sinuca:

E Malagueta?
Em que presepada ter-se-ia enfiado o velho sem-vergonha, esmoleiro, cara de
pau? […].
“É – pensou – quando vocês iam no moinho buscar fubá, eu, cá no meu quieto,
já estava de volta com o bagulho empacotado”[…].

A personagem, ao contrário de Bacanaço, não se importa com a aparência, chegando
até mesmo a pedir esmolas. O velho não tem esperanças ou ilusões, como podemos
observar na descrição do próprio lenço “descorado” e gasto que traz no pescoço.
O acessório, como o restante das vestimentas, são os indícios do seu desencanto,
aniquilamento e conformismo frente à realidade:

Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu. No pescoço
imundo trazia amarrado um lenço de cores, descorado; da manga estropiada do
paletó balançavam-se algumas tiras escuras de pano […].

A desilusão é tão evidente que, em determinado momento da narrativa, o protagonista
chega a se comparar com um cão, à procura de comida:

O velho olhando o cachorro. Engraçado – também ele era um virador. Um sofredor,
um pé-de-chinelo, como o cachorro. Iguaizinhos […].

Em contrapartida, o cínico Bacanaço representa a idade adulta, o auge da malandragem
através da sua figura de gigolô meticuloso. Apesar de bem vestido, é tão pobre quanto
os outros malandros do texto e possuidor de um discurso persuasivo capaz de driblar
policiais ou malandros mais experientes:

Bacanaço sustentava o paletó no antebraço, seus sapatos brilhavam, engraxados
que foram outra vez, e a mão direita, manicurada, viajava para cima e para baixo,
levando e trazendo um cigarro americano […].

Com todos estes atributos, Bacanaço torna-se um mestre admirável para o jovem Perus,
o aprendiz aparentemente ingênuo e grande taco da sinuca. O representante da juventude,
com apenas dezenove anos de idade e morador do bairro de Perus é descrito da seguinte
forma pelo narrador:

O menino Perus tem seu lugar de taco, confiança de alguns patrões de jogo caro,
devido à habilidade que na sinuca logrou desenvolver nas difíceis bolas finas,
colocadas em diagonal na mesa. O menino Perus mal e mal se agüenta – fugido do
quartel, foge agora de duas polícias. A Polícia do Exército e a polícia dos
vadios.
Uma semana, muitas vezes, na Lapa. Nas bocas do inferno se defende, se arranja pelas
ruas, trabalha nas conduções cheias, surrupia carteiras. Deixa ficar e fica uma
semana. A mesma camisa, o mesmo sono, a fome de dias. A fome raiada […]

Diferentemente de seus companheiros de vadiagem, Malagueta e Bacanaço, Perus possui,
como marcas diferenciadoras, sonhos e ilusões, como no trecho em que observa,
secretamente, a beleza de um amanhecer. Mas o sentimento de admiração é considerado
pela personagem como algo estranho, descabido para sua dura vida e paradoxal ao
ambiente da malandragem:

Perus […] olhava o céu como um menino num quieto demorado e com aquela coisa
esquisita arranhando o peito. E que o menino Perus não dizia a ninguém. Contava muitas
coisas a outros vagabundos […]. Mas aquela não contava. Aquele sentir, àquela hora,
dia querendo nascer, era de um esquisito que arrepiava. E até julgava pela força
estranha, que aquele sentimento não era coisa máscula, de homem […].
Não queria perder o instante do nascimento daquele vermelho. E não podia explicar
aquele sentir aos companheiros. Seria zombado […].

No mesmo texto, a malandragem ainda encontra outros representantes, mesmo que
pertencentes ao mundo extra-textual, entre eles, o citado Carne Frita, “o maior
taco do Brasil”, segundo o narrador. João Antônio relata a importância do jogador
nos salões de bilhar e ainda expõe detalhes de sua vida, como o fato de andar
sempre “com dois guarda-costas”, o costume de nunca abotoar “o cordão dos sapatos”,
ou mesmo, a sua descrição física como um sujeito “magro, pequeno” que “fala baixo,
fino, firme, não ri, não canta” e que “fuma bastante”. A minuciosa observação do
escritor acerca da personalidade do jogador, reconhecido por ele mesmo como
“homem-lenda” resulta, certamente, da admiração pelo malandro, a ponto de
transformá-lo numa personagem quando o insere na sua ficção. Graças ao trabalho
artístico de João Antônio, Carne Frita, nas páginas da narrativa, se ficcionaliza
e passa a ser admirado pelos três protagonistas:

Quem entendia de sinuca era ele. Em cima dele foram e gramaram muitos e muitos
esperto perdeu o rebolado, e muito cobra ficou falando sozinho, esfacelado em volta
da mesa, como coruja cega […]. O homem ganhara tamanho, celebridade; uma
curiosidade que se exibiu ensinando até na televisão […]. Era Carne Frita.
Botassem respeito, sentido e distância com silêncio e consideração.
Moço baixinho, com uns olhos de menino, esguio como os malandros do joguinho que
andam quilômetros ao redor das mesas, ninguém daria nada àquele, parado, à esquina
da Santa Efigênia […].

Robertinho, mesmo não pertencendo ao mundo extra-textual como o renomado Carne
Frita, é outro experiente jogador, malandro esperto que também merece destaque ao
final da narrativa, já que engana Malagueta e Bacanaço numa partida, deixando-os
sem dinheiro, “lentos, murchos e sonados”.

Em determinadas situações as posições se alteram e o otário, ainda, pode ser
inclusive aquele mesmo malandro ou bandido, dependendo tudo de uma situação
contextual que só os textos vão definindo com maior clareza. Essa alternância
de posições faz com que malandros habilidosos como Bacanaço e Malagueta passem
à condição de “otários” frente a outros vadios mais talentosos, como Robertinho.

A personagem Robertinho é descrita, a princípio, pelo narrador como um malandro
incapaz de enfrentar o conluio formado por Malagueta, Perus e Bacanaço, mas, ao
contrário do que se pensa, toma força no decorrer do jogo e da narrativa ao vencer
os poderosos adversários, colocando-os no papel de “otários”. A esse respeito,
vale-nos a apresentação da personagem pelo narrador:

Foi quando surgiu no salão um tipo miúdo, lépido, baixinho, vestido à malandra,
terno preto, gravata estreita, sapatos pequenos de bicos quadradinhos. Desses
sujeitos que fazem suas coisas muito à pressa, passos curtos, rápidos, jeitosos,
com o bigodinho aparado que costumam pendurar na cara […]. O homem era
Robertinho, dos maiores tacos de Pinheiros, um embocador, fino dissimulador de
jogo […].

Todavia, Malagueta e Bacanaço não o conhecem e o julgam como um “tostãozinho de
gente […], otário oferecido” e, desavisados tornam-se presas fáceis do cauteloso
malandro. Perus, o único conhecedor das misteriosas jogadas de Robertinho, mas
impossibilitado de avisar aos companheiros, temendo ser tido como um “cagüeta,
que é o que mais dói para um malandro”, pois certamente “arrumaria briga séria”,
mesmo em pensamento:

Pedia a Bacanaço, não marcasse jogo. Robertinho, um bárbaro, piranha manhosa
e o pior – escondia jogo. Se quisesse, bolava um plano, passava duas três horas
perdendo, malandro de capital, que era. Depois, mordia, dobrava paradas, ia à
forra – largava o parceirinho falando sozinho, sem saber por que perdera […].

Em outros momentos da narrativa, identificamos a marca da reversibilidade, já que
Bacanaço também se coloca na posição de “otário” no instante em que encontra a
“invertida” Teleco, uma personagem feminina homossexual capaz de intimidar seu
devedor caso este se recusasse a pagar seu débito. A referida personagem, assim
como os protagonistas, também faz da noite seu “habitat”, da trapaça, da astúcia
e da força a sua maneira de sobreviver numa sociedade que exclui pessoas como ela:

Vulto magro, ô cadência de malandro, sapateia quando anda, pois, tem muito
rebolado, mãos nos bolsos, cigarro no bico, a Teleco na Avenida São João. Vestida
como homem, era mulher que gosta de mulher. Fina no carteado, muito firme na navalha,
até sinuca ela joga. Uma valente da maconha […]. A cabeça de mulata era e cabelos
lisos, amaciados à pasta. Pela sua panca resolvida de macho, numa briga corria o pé,
enganava e não dava o corpo e ali ninguém levava boa vida, o respeito que os
malandros davam à sua inversão […].
Buliu relando no braço de Bacanaço. Catou-o, puxou-o para debaixo do toldo. Teleco,
traquejada. O malandro lhe devia coisas não poucas e ela soltou a ladainha […].

Outras mulheres também fazem parte da paisagem humana que encontramos em “Malagueta,
Perus e Bacanaço”. Antagonicamente à homossexual Teleco, as prostitutas Marli e
Dorotéia sobrevivem usando os próprios corpos como fonte de renda. Marli, a “mina”
de Bacanaço, quando se encontra na posição de malandra, arranca dinheiro dos
“otários” (os seus fregueses) e entrega ao seu gigolô e amante, passando, então, à
condição de tola, espancada muitas vezes pelo rufião. Assim, mais uma vez, vemos a
alternância das posições no submundo da malandragem que, agora, atinge também o
meretrício ficcional do escritor:

A mina lhe dava uma diária exigida de mil quinhentos cruzeiros, que o malandro
esbagaçava todos os dias nas vaidades do vestir e do calçar, no jogo e em outras
virações. Quando lhe trazia menos dinheiro, Bacanaço a surrava, naturalmente como
fazem os rufiões. Tapas, pontapés, coisas leves. Apenas o natural de um cacete bem
dado para que houvesse respeito, para não andar com bobice na cabeça e para que
não se esquecesse preguiçando na rua, ou bebericando nos botecos, ou indo a
cinemas, em vez de trabalhar. Obrigação sua era ganhar – para não acostumá-la mal,
Bacanaço batia-lhe […].

Dorotéia, mais esperta que Marli, seleciona seus clientes entre políticos e
coronéis, abarcando mesadas graúdas sem ter que dividi-las com nenhum cafetão.
Possuidora desses atrativos, a prostituta Dorotéia torna-se o alvo da cobiça
de Bacanaço e de outros malandros, ansiosos por ocuparem a posição de amantes de
uma figura tão rentável:

Mulher com uma situação, um apartamento, fregueses de quilate, políticos e
outros bichos, vestida como madame. Arrisca como manhosa, gata, atraía otários
como só mulher que quer e sabe, consegue. Tivera vários coronéis, gente da alta,
que lhe davam mesadas de trinta, quarenta contos por mês. Era alta e loira e
Dorotéia e o seu dinheiro era muito. E sem amásio, que era mina exigente também.
Muito malandro tentara a conquista e ficara falando sozinho […].
Para a fantasia de Bacanaço, aquela mulher lhe daria por baixo, baixo, para
começo de boa conversa, um carro de passeio. E quatro mil cruzeiros por dia […].

Paralelamente ao mundo da malandragem, atuam outras figuras também pertencentes
à noite paulistana, entre elas o velho inspetor Lima. Freqüentador assíduo do
bar Joana D’Arc, em Água Branca, o policial aposentado conhece as manhas do jogo
e é classificado pelo narrador como não sendo nem “malandro”, nem um “velho coió”.
Apenas “um velho gordo e estranho, conselheiro dos mais moços, naquelas bocas do
inferno” e que usa “palavras desusadas de quando em quando”. Para a “curriola”
(sinônimo de malandros), o velho “tira” ainda possui influências e, por isso, não
pode ser alvo de zombaria:

Às vezes, do quarto da Água Branca onde morava só, saía mesmo de pijama ali
pelas duas da tarde e se enfiava no muquinfo. Ali jogava, ali jantava sanduíches,
ali mesmo ele ficava, plantado feio um dois de paus, os chinelos rodando, ganhando
as malícias das mesas, reaparecendo uma verdade – o joguinho se aprende jogando,
tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onda de otário […].

A personagem acima possui alguns hábitos semelhantes aos de outro representante da
ordem, mas que também trafega no ambiente da desordem.

A trajetória dos protagonistas pelos bairros da capital paulista é permeada de
constante exposição de outras personagens também marginalizadas, outros malandros,
jogadores, esmoleiros, prostitutas, surrupiadores de carteiras etc. Também
completam a narrativa outras figuras que, inicialmente, deveriam representar a
ordem social (policiais), mas aqui, inseridos no texto ficcional, adquirem uma
nova roupagem, mostrando que, para o contista, não há fronteiras entre o mundo
da ordem e o da desordem.

O conto Malagueta, Perus e Bacanaço revela então, três personagens que
oscilam divertidamente entre a paixão e a misogínia, um reflexo, provavelmente,
daquele fim da década de 50, em que a separação de sexos era bem mais acirrada.
É um conto eminentemente masculino, literatura de homem, ambiente de homem,
sinucas, ruas, engraxates, calçadas, bares enfumaçados. A postura é cobrada o
tempo todo, os homens se cumprimentam aos palavrões, os amigos se xingam, se
esbofeteiam ao menor sinal de fraqueza, a navalha anda no bolso de Bacanaço,
o jogo não tem graça se não for a dinheiro. A esperança é por dinheiro. A
dinâmica é a do remediado. “Estou rico novamente”, diz Arturo Bandini no romance
famoso do escritor ítalo-americano. “Meus, com uma quina…”, diz paulistanamente
o esperançoso Bacanaço, antevendo o valor a ser tirado de um otário na sinuca,
valor este que “resolveria todos os problemas”. Quem dá golpe neles, quem dá
golpe nos cínicos, não tem cinismo, tem “cinidez”. Esperança de malandro é
otário casar com otária e ter trigêmeos. A vida dos contraventores Malagueta,
Perus e Bacanaço é quase a de um road-movie mas pela já enorme capital paulista,
dispensando a aridez dos desertos desse tipo de filme em prol de um vazio
gigantesco nas almas dos coadjuvantes. São malandros tentando o empate em
um mundo de perdedores.

Assim faziam os homens da lei quando exigiam. Machucavam à vontade,
satisfaziam-se, as aporrinhações só vagabundo sabe. Sim. Se a gente sair por aí
contando como é o riscado da vida de um sofredor, os trouxas, com suas vidas
mansas, provavelmente dirão que é choradeira. Sim. E quando se manda um danado
e folgado daqueles para a casa do diabo, metendo-lhe com fé uma ferrada nos
cornos, uma cortada na cara ou um tiro no meio da caixa do pensamento, a coisa
enfeia muito, vai-se dar com o lombo na Casa de Detenção. E são abusados e
desbocados e têm apetite de aproveitadores. Piranhas esperando comida (…) Se
marchasse de navalha para cima de Silveirinha não seria a fim de fazer carinho
não. Iria solar com vontade. O bicho iria gemer, que ele poderia cortar de baixo
para cima, era professor da lâmina ligeira – ligeira varando o paletó de linho,
correndo direitinho. Haveria o grito, no começo; depois, o cachorro que rebolasse
feito minhoca ofendida no chão, onde agüentaria chutes na caixa do pensamento e
nas costelas e todo o acompanhamento que se deve dar a um safado. Bacanaço
imaginava-o de boca aberta, estirado naquele soalho, a língua de fora, se torcendo
feito minhoca partida em duas. Ou um rato abatido a ferro. Seria só dar à navalha.
Sangrar. E fim.

Como vimos, uma história que traz três vagabundos num conluio para o “joguinho”
não pareceria essencial não fosse a poesia das malhas do texto que desfila a triste
metáfora cadenciada da malandragem: o jogo de sinuca e o jogo de vida se entrelaçam
numa ginga em que a sobrevivência é a música de fundo. Esse ritmo, que se liga com
driblar a vida para sobreviver, já se evidencia na primeira frase da narrativa:
“O engraxate batucou na caixa mostrando que era o fim”. Os batuques na caixa
prenunciam de chofre o fim. A partir de um espaço inferior que é o do engraxate,
ascendem passando por várias localidades: Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade,
Pinheiros, terminando numa linha que descende ao ponto inicial, a própria Lapa.

O engraxate batucou na caixa mostrando que era o fim.
Bacanaço se levantou, estirou uma nota ao menino. Os olhos dançaram no brilho
dos sapatos, foram para as cortinas verdes.
Vestido de branco, com macio rebolado, Bacanaço se chegou:
— Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou está a passeio?

Com o diálogo escasso é o corpo que fala e canta e dança: “O menino Perus
encolheu-se no blusão de couro. Os dedos de Bacanaço indo, vindo, atiçando.
Desafiavam. / — Está a jogo ou a passeio?”. Perus se encontra fora
do ritmo da malandragem, porque não se sabe assim; encolhe-se diante do ir
e vir dos dedos de Bacanaço, que atiçam e desafiam. O menino, durante todo
o percurso dos três, é o que vai estar mais desconfortável na sua
sensibilidade em choque com um jogo que requer dissimulação, esperteza e
anulação das “frescuras do coração”. A pergunta insistente de Bacanaço denota
uma resposta que não vem, um silêncio, uma recusa sensível a uma vida que não
cabe nos seus modos, no seu sentimento do mundo.

O conluio dos três não é a passeio e daí todas as conseqüências de uma
empreitada comprida e custosa, cujo percurso bem desenhado pelos nomes dos
lugares e seus percalços dá a dimensão de uma vida inteira de exclusão. Como já
citado, os três têm as três idades: Perus, menino, Bacanaço, maduro e
Malagueta, velho. O percurso de idades nomeadas, a metáfora de todas as vidas
da “boca do lixo” trazem o nome de um caminho existencial falido, já na sua
gênese.

Perus é todo ele recusa. Seu corpo fala do seu sentimento oprimido, da
angustiada inércia:

Calado. O anelão luzia no dedo do outro e o apequenava, largava-o de olhos
baixos, desenxabido. O menino Perus chutou para longe uma ponta de cigarro,
arreou no banco lateral. Três dedos enfiaram-se nos cabelos.
— Quê nada! Tou quebrado, meu — os dedos voltaram a descansar nos joelhos.

Perus é a representação da inocência perdida por Malagueta e Bacanaço, pois
carrega um lirismo ingênuo.

Nessa narrativa, em que linguagem oral e escrita têm uma confluência levada às
últimas conseqüências, a poesia é inexorável, confirmando a visão joantoniana
de que a linguagem desse estrato da sociedade já é, no seu acontecimento, poética,
uma prática estilística. Nessa linha quase invisível entre a oralidade e a escrita,
a poesia é incontrolável.

O encontro de Perus e Bacanaço acaba num inevitável conluio, pois inexorável é a
vida, a fome, a sobrevivência. Para dar contorno à ética dessa relação tão
inusitada para o leitor, João Antônio dá ênfase à comparação:

Avistavam-se todas as tardes, acordados há pouco ou apenas mal dormidos.
Dois tacos conhecidos e um amigo do outro não pretendem desacato sério. Os desafios
goram, desembocam num bom entendimento. Perus e Bacanaço, de ordinário, acabavam
sócios e partiam. Então, conluiados, nem queriam saber se estavam certos ou errados.
Funcionavam como parelha fortíssima, como bárbaros, como relógios. Piranhas. Lapa,
Pompéia, Pinheiros, Água Branca… Ou em qualquer muquinfo por aí, porque todo
muquinfo é muquinfo, quando se joga o joguinho e se está com a fome. Negaça,
marmelo, trapaça, quando iam os dois. Um, o martelo; o outro era o cabo.

Também a metonímia, “dois tacos”, reafirma a identificação dos dois malandros e
estabelece o pacto narrativo da metáfora da vida destes a partir do jogo de
sinuca. A relação só existe por uma ambigüidade, que indistingue ofensas de
camaradagem, brigas de brincadeiras. Seja por malandragem, “negaça do joguinho”,
“picardia”, é com aparente iminência de lutas que eles se encontram e
cumprimentam, pressagiando um conluio que pode se quebrar. Tal comportamento
parece fazer deles camaleões, que nessa dubiedade da relação se camuflam em
prol da sobrevivência, determinada desde sempre por essa habilidade. Ao derrubar
o mito do “jeitinho” que tudo contorna, João Antônio apresenta-nos seres humanos
multifacetados e conseqüentemente sem saída. Não há jeitinho para os
marginalizados, que exaustivamente se camuflam, numa tentativa de esconder de
si a própria dor.

Num cenário em que os conceitos são subvertidos, brincadeira parecendo luta e
vice-versa, o sofrimento tem cara de malandragem, “risinho safado”. O aspecto
ambíguo da vida marginal é a base mesma da sobrevivência, de uma adequação cuja
educação sentimental ensina que é preciso não demonstrar para tentar não sentir
e é preciso não sentir para resistir.

Num mundo dividido entre os otários e os merdunchos, que à margem dependem da
trapaça em relação aos primeiros, o dinheiro é o personagem principal, pois é
animado pela importância que tem no desenrolar de toda a história: “Sem dinheiro,
o maior malandro cai do cavalo e sofredor algum sai do buraco”.

Ironicamente a navalha em punho significa uma briga iminente ou um brincar, como
se a vida brincasse com eles, lhes lançando num limiar entre o que é real e o que
é aparente. A vida lhes conduz por uma brincadeira sarcástica na qual vence quem
sobrevive melhor aos perigos da malandragem, é premiado quem sabe melhor rir
safadamente da própria desgraça:

Com a boca e com as pernas, indo e vindo e requebrando, se fazendo de difíceis,
brincaram.
[…] Do bolso traseiro da calça já veio aberta a navalha.
— Entra, safado.
Perus estatelou, guardou-se no blusão de couro. O antebraço cobriu a cara, os olhos
firmaram.
A curriola calada.
Mas Bacanaço sorriu, que aquilo era brincar.
[…] E brincaram mais um tanto, que a vontade não passara.

Quando se aquietam, enquanto os otários não surgem para o jogo bom, a curriola
conversa, trazendo à tona um universo tão outro de acontecimentos, que parecem
fabulações de uma vida impossível, onde moralismos e facilidades não cabem:

Duma feita se aquietaram, já não querendo mais nada. Suados, procuraram o banco
lateral, ajeitaram-se de pernas abertas. Jogar palitinho, contar façanha ou casos
com nomes de parceiros, conluios, atrapalhadas, tramóias, brigas, fugas, prisões…
Lembraram Sorocabana.

O espaço marginal, no qual os personagens da obra se movimentam, sofre um tipo de
enquadramento, que os captura num zoom. Nesse trecho, por exemplo, a idéia de
“pingente” se acirra num afunilamento absurdo, pois dentro da margem, lhes cabe
um espaço ainda mais limitado: uma margem dentro da margem.

Lembrada a ética da sinuca num longo flash-back, sobre parcerias, dissimulações e
respeito, o presente aparece-lhes como numa constatação assustada:

Mas a façanha se acabou e Sorocabana sumiu-lhes do pensamento. Também o jogo
de palitinho e os brinquedos de boca se sumiram. E falaram deles mesmos,
paroleiros, exagerando-se em vantagens; mas uma realidade boiou e ficaram
pequenos. O que lhes adiantava serem dois tacos, afiados para partidas caras?
Estavam quebrados, quebradinhos.

Além de fazer ver o espaço margeado, o estilo de João Antônio consegue também dar
a dimensão apequenada dos seres que ali vivem. A realidade lhes seqüestra a
grandeza das suas lembranças e lhes traz à tona a pequenez do seu presente.

João Antônio vai revelando uma faixa da população pelo seu cotidiano contrastante,
suas experiências são um tatear na escuridão, que conjugam ironicamente
dissimulações externas e principalmente internas, de uma vida que se segura nesse
laivo de possibilidade.

Não é à toa que Malagueta, Perus e Bacanaço teria outro nome: “Aluados e
cinzentos”. Parceiros tingidos pela cor negra da noite seriam suavizados, num
cinza, pela luz da lua. Do título anterior restou, então, apenas o tom lúgubre,
pictórico. Apesar de cinzento, Bacanaço vê toda aquela chateação de fora, não se
considera um “coió” e por isso ri daquilo:

Bacanaço foi para a porta do bar.
[…] Bacanaço sorri. O pedido gritado da cega que pede esmolas. Gritado,
exigindo. A menina chora, quer sorvete de palito, não quer saber se a mãe
ofega entre pacotes. Bacanaço sorri.
[…] Alguns estenderam seus panos ordinários no chão, onde um mundão de
quinquilharias se amontoam. E preços, ofertas, pedidos sobem numa voz só.
Bacanaço sorri.
[…] A moça novinha aperta um guarda-chuva, esfrega qualquer coisa com os
pés, os olhos nos sapatos, encabulados. Bacanaço sorri.

Esse sorriso que tudo atravessa, numa resistência imprescindível é por outro
lado a alegria de estar livre, longe da máquina capitalista que fatiga quem
participa dela. O sorriso de Bacanaço é, ao mesmo tempo, sua glória e o seu
despeito, ser marginalizado o liberta na mesma medida em que o aprisiona em
precariedades:

Há espaços em que o grito da cega esmoleira domina. Aquela, no entanto,
se defende com inteligência, como fazem os meninos jornaleiros, os
engraxates e os mascates. Com inteligência. Não andam como coiós
apertando-se nas ruas por causa de dinheiro…

Essa certeza não dura muito tempo e o sorriso dá lugar à tristeza: “Perus e Bacanaço
entristeciam no banco lateral. Quebrados, quebradinhos. O menino Perus repetia cigarros
fornecidos por Bacanaço e o mulato espiando mesas, abespinhado”. Onde andariam os
trouxas, os coiós sem sorte, que o salão não tinha jogo? Por que era assim, assim,
sempre? Uma oportunidade não vinha, demorava, chateava, aborrecia. Os castigos
vinham depressinha, não demoravam não, arrasavam, vinham montados a cavalo”. É nesse
cenário de fome (a comida depende da sinuca), desânimo e indignação que aparece
Malagueta figurando em escombros, pressagiando o destino dos outros dois, visto
que era o mais velho:

Sete horas.
Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu. No pescoço imundo
trazia amarrado um lenço de cores, descorado; da manga estropiada do paletó
balançavam-se algumas tiras escuras de pano.

A descrição eloqüente da imagem de Bacanaço se desconstrói com chegada de Malagueta,
pois revela o destino a que está fadado o malandro. Comprova-se, então, que não se
chega à velhice sem perder as roupas branquíssimas, os cabelos engomados, os sapatos
brilhantes, o anelão que impõe respeito, enfim, a dignidade. Malagueta é só farrapos.
Completa-se, assim, a tríade: em Malagueta, o desamparo da velhice, em Bacanaço, a
arrogância da experiência, em Perus, o exílio uterino. Esse degredo é intensificado
por uma imagem recorrente: “O menino Perus encolheu-se no blusão de couro”; “Perus
estatelou, guardou-se no blusão de couro”; “A anuência de Perus foi choca,
encolheu-se timidamente no blusão de couro”. Ele encolher-se sob uma pele que o
protege por momentos fugazes. É um abrigo necessário para não expor tanto sua
sensibilidade imanente.

O ritmo da narrativa vai dando as notas do sensível da malandragem: de alegria em
tom menor, cantada pelas fantasias, empolgações passageiras e de fome, desolação num
grave-agudo que toma todo o espaço como o grito da esmoleira cega. Rarefeitos e fugidios
são os prazeres da curriola:

Malagueta propunha-lhes o conluio fantasiando grandezas. Claro que se
arrumariam, eram firmes nas tacadas e davam muito juízo. Se Bacanaço os
chefiasse…
O malandro limpou o paletó. Ouvira os gabos sem interesse. Mas aquela
conversa de os conduzir, dando cartas e jogando de mão, era conversa da
boa. Na mão bem manicurada, que viajava do queixo ao bolso, luzia o
chuveiro, anelão de ouro branco e pedras para mais de trinta contos, que só
rufião pode usar.

O movimento do pensamento e das ações de Bacanaço segue um mesmo compasso,
mas essa harmonia imediatamente destoa:

Aquela conversa era da boa. Mas não se entreteve. Cortou:
— Pé-pé-pé… pé-ré-pé-pé não interessa, velho, Cadê a grana?
Malagueta esfriou, perdeu num átimo o alegre rebolado. Andava tudo ruim
e ele com a fome.

Agora realidade e fantasia carregam respectivamente frustração e realidade,
num mesmo período e em toda narrativa como a estrutura mesma da história,
empreende a crítica de que aquela vida só é possível em pensamento.

Na Água Branca começa o jogo de sinuca ou de vida, onde “Um homem quebra o
outro comendo-o pela perna, correndo por dentro dele”. Essa imagem antropofágica
dá a dimensão da luta naquele território, em que um adversário pode afetar o
outro nas suas entranhas. Não poderia ser mais irônico o nome do lugar onde tudo
isso acontece, onde a vida ferve:

Corria no Joana d’Arc a roda do jogo de vida…
[…] Fervia na Joana d’Arc o jogo triste de vida.
[…] Corria no Joana d’Arc o triste jogo de vida.

É possível ouvir as vozes, os xingamentos, as trapaças. Um bolo onde tudo se
mistura e o refrão é a sua forma final, o resumo de tudo, que entrecorta a
narrativa com uma voz que organiza o caos numa constatação: Esse é “triste jogo
de vida”.

São oito páginas de narrativa sobre o jogo, amarrando esperanças e dissimulações:
“E os olhos malandros dos três se encontraram, se riram, se ajustaram,
gozosamente, na sintonia de um conluio que nasceu dissimulado”.

A obra tem uma linguagem que “negaceia” com o leitor, fisgando-o para dentro
de uma “charla” que tem um ritmo de frases puxando outra, num arranjo ágil:
“Bacanaço sorria. Funcionavam direitinho, sem supetões, eram tacos de verdade,
nascidos para trapacear. Arranjo bom. Malagueta defendendo, o menino Perus se
atirando, o entendimento se afinando, certo como um relógio”.

Desconfiado do conluio, Bacanaço dissimula: “— Velho, o jogo é jogado.
Calhou. O menino é um atirador e está com a mala da sorte – sua palavra valia,
que vinha de fora, como torcedor. O menino emboca, emboca, manda tudo pras
cabeceiras. Inspiração. Se daqui a pouco ele tropica: fica torto, tortinho.”
(p.121) A “safadeza” funciona e Perus “trabalhou,embocou, quebrou a bola do
próprio Malagueta”. Aqui, como em todo o texto, as imagens são vivas como no
impressionismo.

Na medida em que os personagens se afundam na noite, a rispidez e a hostilidade
do espaço se avultam, com isso tem-se, então, a inserção dos protagonistas em
uma animalização absurda, pois, por meio da violência espacial, o conluio,
instância até então indiscutível, passa a se fragilizar. Sendo assim, a partir
do embate que se dá entre os personagens e o espaço, agora, por meio de uma
internalização da luta, o inimigo se materializa no outro, se manifestando numa
metáfora antropofágica. Na medida em que os três caminham noite adentro, o espaço
no qual transitam se torna mais ríspido, se avultando num crescente absoluto.
Em contrapartida, os personagens são relegados a uma categoria inferior, pois,
em conseqüência do embate, até o conluio que se estabeleceu entre eles é colocado
à prova. Dessa forma, o autor desconstrói a temática desenvolvida: há o conluio
depois a rivalidade. É o universo e a ética da malandragem, onde se encerra
sobrevivência e contestação dessa convivência. O conflito está tanto no grupo
quanto fora dele:

Mas era uma noite de sábado e houve outros lados por onde passaram,
apequenados e tristes.
Vai-e-vem gostoso dos chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas
calçadas, descansando.
Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e namorados namorando-se,
roupas todo-dia domingueiras — aquela gente bem dormida, bem vestida e
tranquila dos lados bons das residências da Água Branca e dos começos das
Perdizes. Moços passavam sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite
quente. Quando em quando, saltitava o bulício dos meninos com patins,
bicicletas, brinquedos caros e coloridos.
Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e
o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e
distraída, ali se embaraçavam. Eram três vagabundos, viradores, sem eira,
nem beira. Sofredores. Se gramassem atrás do dinheiro, indo e vindo e
rebolando, se enfrentassem o fogo do joguinho, se evoluíssem malandragens,
se encarassem a polícia e a abastecessem, se se atilassem teriam o de comer
e o de vestir no dia seguinte; se dessem azar, se tropicassem nas virações
ninguém lhes daria a mínima colher de chá — curtissem sono e fome e cadeia.
Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali. Deviam andar.
Tocassem.

Em contrapartida ao espaço do qual são oriundos, o ambiente dos mais abastados
é descrito de forma extremamente antagônica. A fraseologia usada é harmoniosa
e tranqüila, explicitando uma visão clara e positiva. Nesse trecho, o tom
lúgubre e a necessidade de movimentação são substituídos por um colorido ameno
no qual as pessoas se fixam, já que a busca, característica preponderante dos
merdunchos não é necessária. Os ricos não precisam se movimentar para subsistir.

João Antônio, por meio de descrições impressionistas, que não objetivam a
fotografia do real, recria o olhar do personagem a partir de um mapeamento
disforme do todo imprimido por este, ou seja, o olhar do seu personagem recria
o mundo. Ele não trabalha na representação da realidade, mas na construção
lingüística e expressiva da realidade a partir da sua subjetividade.

Na obra de João Antônio, a cor e o volume das pequenas coisas só chegam ao texto
pelo esforço da atenção sensível que se transforma nas mãos do escritor num desafio de
expressão, impulsionado por uma ambição legítima de querer trazer para o texto uma
palpitação emprestada da realidade:

Uma, duas, três, mil luzes na Avenida São João!
[…] Perus nem falava, nem ouvia, nem pensava nos joguinhos de Vila Alpina;
longe estava a contar as luzes da avenida, onde bondes passavam rangendo
e autos cortavam firmes como tiros. Era costume do menino enumerar
coisas. Sabia, por exemplo, quantas bolas cinco fulano embocou em tal
partida, quantos bondes Casa Verde passaram em meia hora. Os luminosos
se apagavam, se acendiam, se apagavam, um, dois, um… Aquele exercício
o distraía.

Os contrastes que a luz pode oferecer à noite se dão num chiaro-escuro, que
capta nuances de um interno-externo encobertos e descobertos por um foco
luminoso profícuo. Ao contrário do sentido positivo que a luz detém, João
Antônio faz vir à tona a tonalidade negativa que aquela paradoxalmente conserva,
pois lançar luz nesse caso, é desmistificar a figura do malandro e, assim,
descortinar sua fragilidade:

Malagueta, Perus e Bacanaço faziam roda à porta do Jeca, boteco da
concentração maior de toda a malandragem, à esquina da Ipiranga, fechanunca,
boca do inferno. Olho aceso por toda a madrugada. Lá em cima, seu
luminoso apagava e acendia um caipira cachimbando.
Ali tudo ia bem, por fora. Ponto que vibrava e quem visse e não soubesse,
diria que eram, honestamente, um grupo de boêmios folgados, ajeitados em
boa paz. Mas o misticismo da luz elétrica, de um mistério como o deles, só
cobria solidões constantes, vergonhas, carga represada de humilhação,
homens pálidos se arrastando, pouco interessava se eram sapatos de quatro
contos, cada um com seu problema e sem sua solução e com chope, batepapo,
xícara retinindo café, iam todos juntos, mas ilhados, recolhidos, como
martelo sem cabo. Nem era à toa que aquela dona, criaturinha magra, mina
bem nova ainda, se apagou no tamborete do canto e trazia nos olhos uma
tristeza de cadela mansa… Quando a justa, perua preta-e-branca dos homens
da polícia roncava no asfalto, a verdade geral se punha na maioria dos
olhos. Lugar de vagabundo é a Casa de Detenção.

A antítese do claro e do escuro encerra o choque entre o ser e o estar, entre o
julgamento e a realidade íntima e acaba por se configurar na estrutura mesma da
narrativa, que lança os três nas veias noturnas, salpicadas de luzes adulteradas.
Assim, o conluio, que pode parecer formar uma força una, esconde um exílio. Quando
o autor utiliza a metáfora do martelo sem cabo para matizar tanto a fragilidade
do malandro em grupo quanto sozinho, tem-se então uma angústia imanente, um
“espinho na carne”. O trecho revela um ser encurralado entre a “boca do inferno”,
o bar e a “Casa de Detenção”, ou seja, entre as privações da noite e a punição.
A visão da sociedade é de tornar invisível tudo que a agride, ou seja, punir o ser
que está aquém da produção ou aceitá-lo apenas como jocoso.

O campo de ação dos malandros está demarcado por uma tênue linha entre o claro e o
escuro, que os circunscreve numa obscuridade, relacionada a um “lá”, que os mantém
longe do “aqui”, o espaço dos que produzem:

Os três sabiam que depois dos luminosos a cidade lhes daria restos e lixos.
Só. E em pensamento divisavam as probabilidades em três-quatro
muquinfos onde se arrumariam ou se entortariam — o Americano da Rua
Amador Bueno, o Paratodos do Largo Santa Efigênia, o Martinelli, o Ideal,
talvez o Taco de Ouro…
Travessia da Avenida São João, seguimento da Avenida Ipiranga. Entraram
pela Amador Bueno.
A rua estreita, escura. De um lado e do outro, falhas no calçamento,
basbaques espiavam e malandros iam a perambular.

Eles sobrevivem nas fissuras do espaço noturno, margeando seus próprios restos,
o que lhes sobra da sua humanidade.

O pano verde da mesa de sinuca também acolhe essa noção contextual de
selvageria:
— Vem cá, moleque!
Piranha esperava comida.
Mal entraram no Paratodos, deram com a voz do negro intimando Perus e o
brinquedo acabou-se, e tudo o mais se confundiu, ficou cinzento.
Escuro nas mesas, salão silente, tacos jogados, pontas de cigarros no chão.
Luz só no balcão do Paratodos vaziinho, sem jogo, sem parceirinhos.
Aquele silêncio esquisito de esporro que vai se dar.
Piranha esperava comida.
— Vem cá, moleque!
Piranha esperava.

Revelada a densidade do sofrimento de Perus, a metáfora que permeia toda a narrativa
reincide e deságua na metonímia da bola que cai. As reticências que ampliam a metonímia e
configuram de sua fala e de sua movimentação frente a uma iminente derrocada. A imagem
“boca do inferno” evolui para “purgação do capeta” inserindo-os definitivamente no embate.
Esse se dá em dois pólos, concomitantemente, pois a estrutura narrativa promove um trânsito
livre da sinuca para vida e vice-versa.

Uma carga humilhada nos corpos, uma raiva trancada, a moral abaixo de
zero. Secos, apenas se olhavam, quando em quando, sem reclamações.
Fazer o quê? Eram três vagabundos e iam.
Uma porrada, fora uma porrada. O velho se adiantou, olhou os dois.
Emparelharam-se. Os olhares dos três se acharam e Malagueta, Perus e
Bacanaço pararam minutos. O silêncio agora pesava, os três olhavam-se,
com pena, palavra nenhuma.
Lá embaixo, no Vale, um auto roncou, firme, aproveitando a hora.
Havia um padecimento, doía, arrasava.

Perdido o jogo, eles apenas iam, impossibilitados de qualquer expressão de revolta,
num aprisionamento pessoal. Em contraposição à falência inerte dos
personagens figura-se o “ronco” de uma máquina, que acaba por expressar o não dito, pela
personificação desta. A versatilidade do conluio se firma num vai-e-vem de intenções
individuais e de grupo. Numa cumplicidade necessária, nivelam-se, são iguais e se
“emparelham” para suportar o jogo de vida.

Machucados pelo silêncio, Malagueta é o que mais sente a necessidade de verbalizar,
como uma forma de retirar de si o “estrepe”: “— A gente fica até coisa, meus. Aquilo nem é
cinismo; é cinidez”. À moda de Guimarães Rosa, João Antônio cria um neologismo
para nomear uma atitude que a língua padrão não prevê, pois diante de tamanho sarcasmo do
qual Perus foi vítima, o substantivo “cinismo” não daria conta das múltiplas subjetividades
contidas na derivação adverbial “cinidez”. Além de abarcar todo o processo de causa e
conseqüência, essa nova palavra confere ao trecho uma plasticidade que traz à tona toda a
gama oral de Malagueta, o mais velho dos três.

João Antônio apresenta uma literatura que se assemelha a posição do diretor no Cinema Novo, cujo
olhar se mistura e protagoniza o fato. Não é mais da “Torre de Marfim” que se olha o mundo,
mas de dentro dele, comprometendo-se com um ideário coletivo: “Só vagabundo entende
aquele espeto. Mocorongo, trouxa, pixote, cavalo-de-têta, otário, vida mansa algum nunca
perceberia o que se passava com Malagueta, Perus e Bacanaço. Só um vagabundo”. É
num contra-senso perspicaz entre conteúdo e forma que João Antônio coloca um personagem
a reclamar de um sentimento estratificado, quando na verdade já fisgou o leitor pelo trabalho
com a linguagem e este já é cúmplice da malandragem. É por meio dessa linguagem aberta e
específica, que o autor, através do personagem, faz com que o leitor recrie e se comprometa
com o espaço de ação dos seres descritos, mudando a posição daquele e transportando-o para
dentro da narrativa.

O leitor é capturado para a imobilidade íntima dos personagens, por meio de uma
descrição impressionista, cuja feitura relaciona símbolos para dar forma a uma sensação de
abandono:

Só Perus não falou, inteiro no seu quieto.
Angústia parada nos passos lerdos. Marchavam, pálidos, meio cansados. O
relógio do Mosteiro de São Bento mostrava quase três horas. Poucos
vagabundos deitados nos cantos dos portões, cobertos mal, eram
amontoados escuros e confusos de panos e folhas de jornal.
Ao Martinelli, sem entusiasmo. Tomaram a Libero Badaró.
O velho salão do Martinelli com seus grandes espelhos laterais do tamanho
de um homem, refletindo as luzes brancas, brancas; as paredes trabalhadas à
antiga, o ar úmido, o mofo do maior bilhar da cidade. E como o jogo
minguasse, o abandono das mesas, dos marcadores e dos tacos alinhados a
seus cantos, constrangia. Era um silêncio grande de muitas mesas vazias e
de giz esquecido.

A sincronicidade de significado entre a descrição da rua e do Martinelli faz casa para a
desolação de Perus, aconchegando sua angústia numa profusão lúgubre de homens e coisas,
num ambiente mortuário, cuja coloração branca e o cheiro mórbido remonta à idéia de semimortos.
Durante toda a narrativa os personagens perseguem uma luminosidade qualquer, ora
personificada, tirando-lhes a força, ora dando força à escuridão. Essas vidas apagadas seguem
lampejos de luz, o que poderia significar uma saída, reafirma, na verdade, a idéia de vigilância
daquela decreptude:

Saíram do mictório, mudos, crispados, andaram, ganharam o Vale do
Anhangabaú, onde tudo era dormido e só se via um olho aceso no
alinhamento dos prédios da Rua Formosa — sozinha, a janela maior do
Salão Ideal. Caminharam para ela.
A madrugada geral esfriara, pelas ruas de São Paulo corria um vento úmido,
aquele vento das madrugadas…
Os luminosos ainda resistiam, os postes de iluminação com seus três globos
ovalados eram agora de todo silentes, e atiravam sobre a cidade um tom
amarelo, desmaiado, místico no sossego geral da hora. Para os lados do
Viaduto do Chá e do Teatro Municipal, os luminosos, em profusão,
jogavam cores, faziam truques, acendiam e apagavam uma repetida festa
muda.

Ao tentar captar a fugacidade de uma madrugada envolta pela bruma, João Antônio
emoldura a fluidez da paisagem, num trabalho pictórico. A experiência é a modificação
estilística do real no texto, por isso o leitor não apenas observe o real, mas o experimenta. O
texto é sensorial, fisga-nos pelos sentidos. É também por meio do impressionismo que o autor
convida o leitor a participar. Tal o pintor impressionista que participa do cenário, aqui há uma
proposta de interatividade; o escritor sai do castelo de cristal e interage, mancha o figurativo,
a mimese, quando interpõe o seu olhar e introduz o leitor naquela vivência, transformando o
narrador e leitor numa simbiose de sensações.

A noção de luminosidade que atravessa toda a narrativa possui um caráter
multifacetado, ora positiva, ora negativa, ora delimitando o espaço, como no trecho anterior,
ora como aspecto abstrato: “Luz da esperança lhes brilhou. / E entenderam que a maré de sorte
lhes voltara, de repente, à grande, gorda e generosa. Pois, até a polícia mais perigosa e séria
não evitavam, sem querer?”. Nesse jogo de mudança rápida, essa nova expectativa
se fragiliza, imediatamente pela interrogativa, revelando, assim, um falso alerta. Por isso,
diante de tanta desolação, o mínimo se torna máximo. A ascensão interior também se
relaciona ao espaço externo, pois “…foram afoitos a rampa íngreme da Praça Ramos […] A
subida era dura, mas a marcha era batida e confiante. Iam a Pinheiros”.
É num ritmo lento, mas pungente, que a sua falência vai se delineando concomitante
ao percurso quase terminado.

Na rua comprida, parada, dormida – vento frio, cemitério, hospital, trilhos
de bonde; bar vazio, bar fechado, bar vazio…
Malagueta arriava a cabeça no peito, leso, mãos nos bolsos. Bacanaço à
frente, vestira o paletó e ia como esquecido dos companheiros. E nem o
menino Perus falava.
E caminhavam. Topavam cachorros silenciosos, chutavam gatos
quizilentos, urinavam nos tapumes, nos escuros.
Andaram muito, magros e pálidos. E sentiram-se cansados e com fome e
sonados. Não lhes acontecia nada. Nenhum boteco aberto. Como aquele
silêncio os calava… Não falavam, não assobiavam, um não olhava para o
outro.
Pinheiros dormia de todo; nem gente, nem carros, na Rua Teodoro Sampaio
nenhum bonde passava. Em pensamento, Malagueta, Perus e Bacanaço
xingavam Pinheiros.
Cães latiam na madrugada e um galo cantou.
Tinham pressa, mas iam lentos e até chutavam coisas do caminho. Bar
fechado, bar fechado e aquele mais adiante já também. Esta repetição os
desgostava, os encabulava, metia-lhes pensamentos bestas.
Silêncio os baixa a zero e cigarro nada resolve, só afunda o pensamento
errado, amargo, que embota a malandragem, numa onda de coió.

[…] Quase quatro horas da manhã. Terminaram a Teodoro Sampaio, com mais
um pouco, Malagueta, Perus e Bacanaço estariam no centro do bairro,
alcançariam o Largo de Pinheiros.
Havia em Pinheiros, junto ao posto maior de gasolina, a Pastelaria Chinesa,
fecha-nunca de rumor e movimento, que se plantava defronte aos pontos
iniciais dos bondes e ônibus, que dali seguiam para todos os cantos da
cidade. A Chinesa fervia, dia e noite sem parar, que ônibus expressos
vindos de longe, ou caminhões de romeiros de São Bom Jesus de Pirapora e
de Aparecida do Norte ali faziam escala para reabastecimento, paradas,
baldeações… Ali se promiscuiam tipos vadios, viradores, viajantes,
esmoleiros, operários, negociantes, romeiros, condutores, surrupiadores de
carteira, estudantes, mulheres da vida, bêbados, tipos sonolentos e vindos da
gafieira famosa do bairro, o Tangará; apostadores chegados do hipódromo
de Cidade Jardim… Sobressaiam-se em número os japoneses, calados,
cordiais, laboriosos, em trânsito para o mercado de Pinheiros ou para a vida
do comércio nas lojas, nos armazéns, nos botequins. Os japoneses, com suas
caras redondas e seus modos de falar sorrindo e meneando a cabeça eram os
donos do bairro. A Chinesa, um ponto central, dia e noite. Movimentos
vibravam, vozerio, retinir de xícaras, buzinas. Corriam ali muitas
modalidades de negócio miúdo e graúdo. Tabacaria, prateleira de frutas,
engraxates, banca de jornais e livros e revistas e folhetos de modinhas e
histórias de Lampeão, de Dioguinho e revistas japonesas, restaurante
popular ao fundo, davam assuntos e oportunidades. E aproveitadores
proliferavam na confusão, desde o homem triste que vendia maçã de
brinquedo até o virador loquaz que aplicava engodos, contos aos caipiras,
aos pacatos, aos basbaques, vendendo-lhes terrenos imaginários ou
penduricalhos milagrosos, adornos Reluzentes ou falsas peças de tecidos
famosos com auréola inglesa. Chegado de outros cantos da cidade, dos
interiores de São Paulo e do norte do Paraná, o dinheiro ali corria.

Perus não consegue dissimular o sentir dos amigos e nem de si mesmo, sua afetividade
manifesta-se involuntariamente. Ele catalisa as dores que os outros personagens não devem
sentir, essa é sua grande chaga, sua angústia, sua crise. A sua dor é potencializada pelas dores
não vividas do mundo e de Malagueta e Bacanaço. Nesse jogo duro da sinuca da vida, Perus,
ironicamente, ainda encontra recursos para camuflar uma de suas maiores “malandragens”: a
poesia. Seu aprisionamento emocional apresentado em vários trechos da narrativa agora
explode numa poesia incontida:

Luzes se apagaram nas ruas. Uma palpitação diferente, um movimento que
acorda ia-se arrumando em Pinheiros.
Primeiros pardais passavam. Perus acompanhava os dois, mas olhava o céu
como um menino num quieto demorado e com aquela coisa esquisita
arranhando o peito. E que o menino Perus não dizia a ninguém. Contava
muitas coisas a outros vagabundos. Até a intimidade de outras coisas suas.
Mas aquela não contava. Aquele sentir, àquela hora, dia querendo nascer,
era de um esquisito que arrepiava. E até julgava pela força estranha, que
aquele sentimento não era coisa máscula, de homem.
Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu.
Marchava para o seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era
de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se enlaçava
e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco do
céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente. Parecia
um movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte, gritando de
cor naquele céu.
Entrou no salão, mal reparou nas coisas, foi para a janela. Uma vontade
besta. Não queria perder o instante do nascimento daquele vermelho. E não
podia explicar aquele sentir aos companheiros. Seria zombado, Malagueta
faria caretas, Bacanaço talvez lacrasse:
— Mas deixe de frescura, rapaz!
Foi para a janela, encostou-se ao peitoril, apoiou a cara nas mãos
espalmadas, botou os olhos no céu e esperou, amorosamente.
Veio o vermelho. E se fez, enfim, vermelho como só ele no céu. E gritou,
feriu, nascendo.
Já era um dia. O instante bulia nos pêlos do braço, doía na alma, passava
uma doçura naquele menino, àquela janela, grudado.
— Vamos brincar? — Bacanaço chamava.

A tríade humana na qual se centra a obra focalizada abarca a possível evolução
humana: infância, idade adulta e velhice. Mas, no título da obra Perus é estrategicamente
colocado no meio de Malagueta e Bacanaço, transgredindo aquela evolução natural.
Esse recurso faz recair sobre Perus um significado de ligação emocional e subjetiva
da tríade, desempenhando, assim, o papel de ponte entre a emoção capturada de
Malagueta e a arrogância de Bacanaço. Perus carregaria toda angústia aprisionada
dos outros personagens, por isso ela transborda num estado de ânimo poético, considerado
naquele espaço uma instância feminina, que não poderia se revelar. Sua sensibilidade
está ligada à lua, que é uma representação feminina, às nuances da cor, à alvorada
ao invés do amanhecer, o que relaciona o personagem não à estética do feio, até
então explorada, mas ao belo. Isso traz à tona uma ambivalência sensível que quebra
o paralelismo semântico e o insere em uma humanidade especial, pois este se revela
num estado inter-gênero. Dessa forma, o jogo de vida para Perus era uma obrigação
contextual que se choca com sua plenitude humana. Assim, há um contraponto entre
o masculino individual que lateja sensibilidades e uma masculinidade social
racionalizante.

Esse descompasso se resolve pela prevalência do primeiro numa poesia que explode,
pois nem o cerceamento social é capaz de anular sua sensibilidade poética. A vitória
do humano sobre o contexto se encerrra na figura de Perus, que é a hiperbolização
da capacidade humanística de suplantar as imposições do meio. Assim, Perus é a
personificação da poesia e é por meio dele que os outros personagens reconstroem
a sua humanidade. Todas essas características de Perus vão se explicitar a partir
da sua capacidade de se emocionar frente a uma imagem deveras impressionista.

Toda emoção retesada nos personagem da obra explode em Perus, na sua relação com
a natureza, que remonta a mais antiga poesia. Seu estado anímico revela isso,
pois ele se transforma no próprio nascer do sol, como se necessitasse dessa luz,
não mais artificial, para continuar. O sol aparece como um recarregar de forças,
ele renova tudo, os personagens e o espaço percorrido. O autor escreve objetivando
pintar, por isso o nascer do sol não é para ser lido, mas sim visto. A linguagem
utilizada na construção dessa imagem está em consonância com as idéias de Perus,
que vê a insuficiência das palavras difíceis, ou escolhidas, ou modo arrumado
para reproduzir o colorido daquele momento. Esse trecho é o que agrega mais aspectos
impressionistas de toda a obra.

As pinceladas desse quadro acontecem no ritmo da confissão de uma intimidade emocional,
sempre cerceada. É por meio de uma gradação rítmica crescente, que a imagética
reproduz a força de um parto, o dar a luz a uma vida: “Uma palpitação diferente,
um movimento que acorda ia-se arrumando em Pinheiros”. Esse movimento se faz ver na
gradação de cores, bem como na imprecisão e na profusão destas:

Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu.
Marchava para o seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era
de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se
enlaçava e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco
do céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente.
Parecia um movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte,
gritando de cor naquele céu.
[…] Veio o vermelho. E se fez, enfim, vermelho como só ele no céu. E gritou,
feriu, nascendo.

Para instaurar a visão de um espectador que participa da imagem, burlando a
transitividade verbal de “olhar”, o narrador, como já salientado, segue um processo de
“disposição anímica”: o olhar poético de Perus transforma-o no próprio nascer do sol. Após
essa rebentação do dia, opressor para seres noturnos, se arma a última contenda, cujo desfecho
é captado pela sensibilidade de Perus:

Quinhentos cruzeiros. Perus suspirou fundo, ô buraco em que caíram, ô
estrepe inesperado! Não havia saída, era esperar sentado, arrasado.
Assistiria a Robertinho ganhar uma partida, duas, ou quarenta. Para o
malandro, bom realizador, o trabalho seria o mesmo. E Perus não poderia
dizer um a. Para começo, o dinheiro de Malagueta se esbagaçaria. Depois,
Robertinho morderia o de Bacanaço. E depois…

Robertinho, adversário ardiloso, age como uma serpente que hipnotiza sua presa, até
enrolá-lo todo, para então dar o “abraço mortal”: “Perus conhecia a malícia e apenas
olhava, esperava o rebote de Robertinho, que certeiro, quebrando tudo, viria quando
o malandro bem entendesse. Mas Robertinho, piranha, perdeu mais duas partidas. Bacanaço
bebia cerveja, fazia festas, dava estalos no ar”. No “fogo do jogo”, Malagueta, Perus e
Bacanaço se queimam:

— Vai pro fogo, velho! Tou mandando…
Bolas batucando. O jogo ia e vinha, vinha e ia e daquilo não saía. Perdia
Malagueta. Mais fumava Bacanaço.
Robertinho ganhava. Classe, jogo limpo. Respeito ao parceiro, era um taco.
Pouco falava, sério e firme nos seus passos pequenos, rápidos, em torno da
mesa. Olhava para as bolas, para o marcador, não motivava encabulações, desacatos,
perdas de atenção. Jogava para ele, não assobiava, não cantarolava, acatava
Malagueta. Jogava o jogo.

A fusão, até mesmo estrutural, entre o jogo de sinuca e o jogo de vida, chega nesse
momento da narrativa ao seu ápice, reforçando a metáfora do social que dilacera e incinera
sutilmente os personagens sem que estes percebam, com exceção de Perus, o círculo
vicioso, no qual estão imersos. Este círculo é representado pelo tempo circular, numa única
noite, desde o seu começo até o seu fim e pelo espaço também circular tendo, como ponto de
partida e de chegada dos malandros à Lapa. O desaparecimento “dos artistas do pano
verde”, na última parte da história, faz parte de uma estratégia perspicaz de
universalização desta, pois o narrador os retira do anomimato, dá-lhes status de
protagonista, para, então, devolvê-los a ele. Ao transformar os protagonistas em boatos,
usando para isso a indeterminação do sujeito, o narrador atemporaliza as vidas
representadas; seus comparsas, então, se multiplicam ad infinitum: essa história
falida é só mais uma entre tantas contadas pela “curriola”. Dessa forma, a primeira
história tanto poderia ser a última, como poderia iniciar-se ao nascer do sol.
Tal circularidade narrativa imprime definitivamente o poético do espaço, que
reverbera o círculo vicioso social e existencial de todo um povo, de toda a humanidade,
respectivamente. A procura incessante, de todos os personagens dessa obra, em suplantar a
marginalidade se desdobra na busca universal da essência do ser, sinaliza um tempo
angustiante, mas não de desalento, pois caminhar é urgente e resistir é uma sentença.

Percebemos, portanto que a linguagem escolhida e selecionada por João Antônio imita
as evoluções dos movimentos das personagens. E essas evoluções são como que uma
interpretação do próprio movimento do jogo. Existem os avanços e recuos, as paradas
bruscas, as esperas, o silêncio e a solidão de quem está criando o jogo e precisa de
concentração. Há tensão e distensão no jogo de corpo que precisa ser afiado diante daquele
joguinho ladrão. Assim, situações de fome, de esperança vaga, de desnorteamento, de tédio ou
de raiva encontraram uma expressão adequada em frases curtas, elípticas e no tom emocional
do monólogo interior. É, enfim, uma linguagem musical que acompanha o ritmo das bolas,
dos personagens e de seus sentimentos, apresentando ponto e contraponto e até refrão.

Texto proveniente de:
Jane Christina Pereira
– Doutoranda em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Luciana Cristina Corrêa – Pós-Graduada em Letras da Universidade Estadual
Paulista (UNESP)

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