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Menino de Engenho, de José Lins do Rego

by Lucas Gomes

Análise da obra

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.

Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época.

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.

É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe, que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região – coronel José Paulino.

Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram “proibidos”, mas inevitáveis de serem adquiridos.

Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade. Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.

Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível. O engenho é o mundo, um império, de onde o coronel José Paulino dirige e guia os destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser rigorosamente realizadas.

Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do “tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.

Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas populares, como a do “lobisomem”.

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.

Personagens

Carlinhos – É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada, mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-mundo” – a popular gonorréia.

Coronel Zé Paulino – É o todo-poderoso senhor de engenho – o patriarca absoluto da região. Era uma espécie de prefeito – administrava pessoalmente, dando ordens e fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.

Tia Maria – Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada carinhosamente de Maria Menina.

Velha Totonha – É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore ambulante dos contadores de histórias.

Antônio Silvino – Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos. Compõe bem a paisagem nordestina.

Tio Juca – Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.

Lula de Holanda – Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a fachada aristocrática.

Sinhazinha – Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.

Negras – Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.

Enredo

O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.

A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir. “Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.

O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.

Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.

No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.

Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez – “já estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria, vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”. Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela como de um castigo”.

A prima Lili – “magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia, amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as aves de arribação.

O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de mal-assombrados.

O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”

A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na casa grande. Os prejuízos eram enormes .

As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.

Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.

Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.

A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria, sempre preocupada com rezas e orações, não era de freqüentar igreja e comungar. Na semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural em obediência à tradição.

O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito: A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.

Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e, num gesto heróico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.

Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.

A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava pelo engenho era um festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos (…) Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.

Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as queixas e pedidos dos seus súditos. 

Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi. Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa, retribui a tudo com simpatia.

A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a solidão.

Contadores de histórias — os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.

Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria. Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.

Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente – O Coronel Lula de Holanda, surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.

A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado, “uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias de solidão e de cama.

O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.

A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.

Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.

Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.

O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida.

A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”. Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das “minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”

O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros, aos inúmeros convidados.

“— Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho (cerca de doze anos) e não sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.

Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.

Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando pelo engenho sob a forma de assombração.

“Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela, apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.

Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia começar para mim “. Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.

Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que “entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade.”

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