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Muitas vozes, de Ferreira Gullar

by Lucas Gomes

Muitas Vozes

, obra publicada em 1999, apresenta um Ferreira Gullar
ainda consciente da necessidade de renovação, e capaz para tanto,
fundindo diversos recursos estéticos que podem ser lidos esparsamente
desde os primeiros passos do que viria a ser Toda Poesia. Pode-se afirmar,
por esse prisma, que as “muitas vozes” a que se refere o título
são as muitas vozes que Gullar usou durante sua vida para construir-se
poeta:

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido

E o leitor, de ouvidos apurados, poderá distinguir em Muitas Vozes
a passagem inconfundível de ritmos e quebras, formas e deformações,
que mais de uma vez incidiram no que se poderia, com algum receio, chamar de
“poética gullariana”, e que tem deixado na poesia brasileira
seus epígonos.

A poesia de Gullar equilibra, de forma muito peculiar, a racionalidade e os
vôos imaginativos do autor, pois, por mais que a imagem do poema seja
“desregrada”, vem sempre à tona uma espécie de raciocínio
sobressaído da disposição organizada das idéias,
e a seqüência que constituem aponta para uma clareza que o tempo
todo é traída pelo escorregadio movimento da imagem central, como
no poema “Thereza”, em que a maneira como são cortadas as linhas
multiplica seu objeto.

Repare-se que Gullar deixa em aberto as linhas de como se indicando que a
partir dali surge um outro espaço interpretativo. E é nesse esforço
para harmonizar raciocínio e imaginação que os poemas de
Gullar assentam as inquietantes marcas que o distinguem da poesia parnasianamente
previsível com que têm surpreendido alguns autores de sua geração.

O livro Muitas Vozes, de Ferreira Gullar, considerado o poeta vivo
mais importante no Brasil, reúne 54 poemas sobre morte, vida, infância
e sexo.

Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar
70 anos, Muitas vozes, revela uma mudança de tom na obra de
Gullar. Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de
questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é
a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores.
Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a
temática da morte está muito presente, não como medo mas
como reflexão, comenta.

Muitas vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor
que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira.

Na obra ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de
quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em
“Sob a espada” até a política expressa em versos de
“Queda de Allende”, o novo livro apresenta um Gullar continuamente
renovado.

Gullar volta a nos oferecer a melhor poesia do Brasil, num estilo transparente
e despido de qualquer pedantismo universitário, fruto da cristalização
de suas experiências e linguagens. Na obra, Gullar explora elementos do
concretismo, de versos espalhados e sem pontuação. Os poemas giram
muito em torno da morte. É que neste espaço de tempo Gullar perdeu
a mulher, Thereza, e um dos filhos, Marcos. No livro Muitas Vozes,
são feitas referências claras a essas perdas em dois poemas em
especial.

No curto poema “Thereza”, Gullar expressa a perda da mãe de
seus filhos.

A morte aparece sempre como reflexão. Ele traça um paralelo
entre a vida e a morte. E quando fala sobre a vida, sempre faz referência
ao sexo. Esta observação pode ser conferida no poema “Definição
da Moça”, no qual Gullar faz indagações a respeito
da personagem declamada: Como desnudá-la quando está vestida se
está mais despida do que quando nua?

Muitas vozes poucas vezes consegue manter o nível de radicalidade
que é tudo o que se esperaria de mais um trabalho de Ferreira Gullar.
Mas há momentos em que ainda vislumbramos o Gullar vertiginoso e veloz.

Os poemas de Gullar, em Muitas vozes, possuem, como principal obsessão,
atrair o leitor para a dualidade entre o barulho e o silêncio. Como centro
dessa dualidade, o poeta injeta o tema mais recorrente em suas últimas
obras: a morte. Para comprovar isso, basta ir direto à primeira parte
do livro, “Muitas vozes”. Na sequência 8 de o poema “Nasce
o poeta”, em que há uma espécie de história sobre
a formação do poeta e de si mesmo, Gullar escreve:

No princípio
era o verso
alheio

Disperso
em meio
às vozes
e às coisas
o poeta dorme
sem se saber

ignora o poema
que não tem nada a dizer

Na segunda parte do livro, “Ao rés da fala”, o poeta volta-se
para temas do dia-a-dia, uma vez que sua poesia está sempre num impasse
entre a narrativa e a prosa, perceptível já na seleção
de poemas “As revelações espúrias” de A
luta corporal
. É, certamente, o momento mais fraco de Muitas
vozes
, uma vez que o poeta não soluciona a mistura entre a linguagem
e a o cotidiano, preferindo se referir a parentes (pais, filhos), a figuras
políticas (Allende) e literárias (Mallarmé). O melhor poema
desta parte é “Lição de um gato siamês”,
tendo como tema a morte, com bons versos:

O tempo fora
de mim
            é
relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
            –
dura eternamente
            enquanto
vivo

E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo).

É, no entanto, na seção “Poemas recentes”
em que Gullar tem seus melhores momentos como poeta em muito tempo. Há
poemas de uma concisão raramente encontrada na poesia dita moderna, cujo
encadeamento de versos mostra o talento do poeta para o artesanato, tão
visado:

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invandindo-te inteiro
tal dum mar um marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho.

Outro poema excepcional é “Nova concepção da morte”,
uma espécie de hino de Gullar ao tema da morte, que o persegue. Seus
versos iniciais mostram bem isso:

Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso
na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;

um aviso, um sinal que não lhe veio de fora,
mas do fundo do corpo, onde a morte mora,

ou dizendo melhor, onde ela circula
como a eletricidade ou o medo, na medula

dos ossos e em cada enzima, que veicula,
no processo da vida, esse contrário: a morte.

“Manhã de novembro” é outro bom poema:

Meu gato siamês

(de veludo e garras,
cheio de sons)

deita-se
ao sol
(da morte,
sabemos nós)
disciplicente
e eterno.

“Coito”, por sua vez, é um poema erótico agressivo,
com versos fortes, quase catulianos. É um poema em que os movimentos
do amor, tão prosaicos e conhecidos, se tornam supervisíveis num
“bicho” que se desenrola, desliza, envolve, beija, fende e se desenfia.

Vem de ti o sinal
no cheiro ou no tato
que faz acordar o bicho
em seu fosso:

na treva, lento,
se desenrola
e desliza
em direção a teu sorriso.

O poema “Infinito silêncio” mostra um Gullar ungarettiano:

houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas

antes da luz

a matéria da matéria

de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga

eternamente

esse silêncio
grita sob nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente.

Um poema que merece consideração à parte é “Morrer
no Rio de Janeiro”, uma espécie de prosa em versos, extraordinário
em sua concisão temática, com versos de rara sensibilidade, sobre
a relação entre o poeta, mais velho, e sua amada:

Se for março
quando o verão esmerila a grossa luz
nas montanhas do Rio
teu coração estará funcionando normalmente
entre tantas outras coisas que pulsam na manhã
ainda que possam de repente enguiçar.

Na última seção de Muitas vozes, “Poemas
resgatados”, Gullar prefere se ater ao imaginário referencial de
seus poemas de A luta corporal. “O poema na rua” lembra
os poemas iniciais de Gullar:

coisa clara
fruta
ata
polpa

como palavra

ou lavoura

ou toalha
que esvoaça

o poema
na mente do poeta
a caminhar
na rua Duvivier.

Outro poema, “Nova concepção da morte”, são
dísticos formados por alexandrinos escandidos e rimados com talento singular,
domínio perfeito da técnica, espontaneidade adquirida, naturalidade
conquistada com a prática.

“Nasce o poeta” é outro bom momento, uma poética em
que No princípio / era o verso / alheio, e em que o poema não
diz / o que a coisa é // mas diz outra coisa / que a coisa quer ser
.

“Cantiga para não morrer”, um dos belos exemplos do lirismo
depurado aliado à solidariedade e empatia para o social, que estão
sempre presentes na obra de Gullar.

Em Muitas Vozes ouve-se o eco de toda a experiência acumulada
pelo poeta ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com
a palavra presente em “Sob a espada” até a política
expressa em versos de “Queda de Allende”, o livro apresenta um Gullar
continuamente renovado.

Créditos parciais: Glória Goetten

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