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Nove Noites, de Bernardo Carvalho

by Lucas Gomes

Nove Noites

, sexto livro de Bernardo Carvalho, narra uma investigação sobre a misteriosa morte de
um antropólogo americano, Buell Quain, que aos 27 anos, em 1939, se suicida após uma estada em uma aldeia
indígena situada no Tocantins, no Brasil, quando subitamente regressava à civilização. No meio da
floresta, Quain, sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios horrorizados
que o acompanhavam na volta para a cidade da Carolina.

Este é o ponto de partida da narrativa de Bernardo Carvalho: um caso trágico, senão mórbido, perdido nos
anos e na memória. Bernardo decidiu, a partir de tão poucas informações, tecer um romance utilizando a
história fatídica de Buell Quain como base, entrelaçando história e ficção, texto jornalístico e um
estranho narrador que entrecorta todo o livro.

O narrador / confessor do antropólogo responde pela parte ficcional de Nove Noites, ao passo que
o próprio Bernardo Carvalho encarna e responde pelo lado jornalístico, do levantamento de dados que
indiquem os reais motivos que levaram Buell Quain a dar cabo de sua existência. Não se sabe quem
investiga, até porque ninguém nunca lhe perguntou a razão da sua curiosidade. Há a desculpa de querer
escrever um livro, que vai adiantando para não levantar suspeitas. A mistura que o autor tenta levar a
termo é extremamente interessante como recurso literário: insere fotos e personagens da década de 1930
na história, como pessoas reais ou imaginárias, o leitor nunca sabe exatamente onde está pisando. Pela
sua mão somos guiados por entrevistas com pessoas que privaram com Quain, arquivos públicos, e memórias
deixadas em cartas, escritas pelo suicida antes de morrer, e por um seu amigo, com quem partilhou nove
noites de conversas e revelações.

São vários mistérios que se interligam, e adensam a narrativa, em que o leitor partilha a claustrofobia
e evasão de identidade das personagens. Da mesma forma, Bernardo Carvalho abre um campo de especulação
na mente do leitor, não somente sobre os motivos que ocasionaram a morte de Buell Quain, mas
principalmente sobre o significado e as conseqüências da transferência de um jovem norte-americano para
o interior das florestas brasileiras. O autor junta habilmente a realidade e a ficção, o romance e a
investigação que desenvolveu sobre os índios e sobre o antropólogo. Como nos diz o próprio autor nos
agradecimentos é uma combinação de memória e imaginação, – como todo o romance, em maior ou menor
grau, de forma mais ou menos direta
.

Em outras palavras, Nove Noites é um excelente exemplo do nem sempre salutar choque cultural.

Nove Noites desconstrói as estratégias da narrativa realista e propõe um jogo com o real, jogo no
qual, além de desconstruir as estratégias da narrativa realista, este romance desafia os modos nos quais
a cultura de massas “consome” realidade.

A história de Quain é verdadeira. O autor soube dela por um artigo no “Jornal de Resenhas”, da “Folha de
S. Paulo”, escrito pela antropóloga Mariza Corrêa, em que o caso era citado de passagem.

A história do escritor, ao menos em parte, também procede: na orelha do livro há uma foto de Carvalho,
aos seis anos, ao lado de um índio do Xingu, região onde seu pai de fato fora proprietário de terras. O
resto permanece em suspense – e nem o próprio autor parece disposto a separar fato de ficção.

Enredo

O antropólogo americano Buell Quain suicidou-se em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar uma aldeia
indígena no interior do Brasil. No fim dos anos 60, um menino de seis anos de idade, contrariado,
freqüenta a região do Xingu, onde o pai comprou uma fazenda. Mais de 30 anos depois, o menino se
transformou num escritor empenhado em reconstruir a trajetória de Quain e, por conseqüência, passagens
da própria infância.

Em Nove Noites, o personagem histórico “biografado” – o Bell Quain – e o narrador “biógrafo” não
se relacionam alegoricamente, mas sim metonimicamente. A obsessão pelo suicídio do antropólogo no Xingu
revela um trauma do próprio narrador, que teria convivido na infância com os índios: a representação
do inferno (…) fica no Xingu da minha infância
(p. 60). Na busca de dados sobre Quain, o narrador
volta ao Xingu para ouvir o que os índios lembram do Quain. Mas não consegue nenhuma informação, e em
troca é ele quem lembra da infância, quando acompanhava o pai nas viagens pelas suas fazendas de Mato
Grosso e Goiás.

Alegórica ou metonimicamente, a subjetividade do autor-narrador se coloca no texto através de um mergulho
numa outra subjetividade com a qual o narrador estabelece um jogo. E em ambos os casos o que relaciona
essas duas subjetividades é um trauma: o trauma dos intelectuais na ditadura, num caso, e o trauma da
morte no outro.

Na obra de Bernardo Carvalho a figura do mártir está ausente, e o romance se desvia assim de uma trilha
traçada por toda uma tradição de romances que mostraram o índio como vítima: Quarup, Maíra,
entre outros. Pelo contrário, em Nove Noites os índios exercem uma certa “violência” (psicológica)
sobre os brancos, digamos que o encontro do branco com o índio constitui, no romance um trauma.

No livro uma experiência traumática se configura como uma máquina de tempo, que relaciona momentos da
história nacional. Assim, a história do suicídio de Bell Quain acaba mexendo com o trauma do próprio
narrador. Quando ele está no hospital acompanhando o pai no seu leito de morte, testemunha a última hora
de um velho desconhecido, que ocupa a cama do lado, e que está morrendo em solidão. O velho, no seu
delírio, chama o narrador de “Bill Cohen”, confundindo-o com um amigo de juventude. Muitos anos depois,
o nome de “Buell Quain”, mencionado num jornal, traz no narrador a reminiscência daquele outro nome que
ouvira pronunciado pelo velho. Mas não é o mesmo nome, o narrador o deixa bem claro: de repente me
lembrei de onde o tinha ouvido antes e, fazendo a devida correção ortográfica na minha cabeça, descobri
de quem falava o velho americano no hospital
(p. 147) (…)em momento nenhum deixei de desconfiar
da possibilidade, ainda que pequena, de uma confusão ou de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido
errado, os meses que precederam a morte do meu pai foram especialmente tensos, e eu não andava com a
cabeça no lugar
(p.153). Ou seja, a leitura do nome do antropólogo no jornal se torna disparador da
experiência traumática, entendendo por ela a resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou
arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas que retornam mais tarde em
flash- backs, pesadelos e outros fenômenos repetitivos.

A morte do pai, que ocorrera estando ele ausente, apenas é relatada: era o dia da minha partida. Minha
vida seguiu o seu rumo. Meu pai morreu três meses depois. Fiquei três anos fora.
Até a própria
sintaxe – seca, mínima – desloca a importância do fato da morte do pai. No entanto, se o narrador chega
– na imaginação do velho – como substituto de Quain; em troca o velho oferece a possibilidade de
testemunhar sua morte, em substituto da morte do pai, que ocorrera quando ele já tinha partido. Essa
troca de papéis (a morte do velho substituindo a do pai, a chegada do narrador substituindo a do velho
amigo Quain) funciona como um deslocamento, que pode explicar por que o mistério da morte de Quain
provoca uma obsessão, uma vez que ele remete à cena misteriosa de primeira vez que o narrador vira um
homem morrer e, é claro, ao mistério da morte silenciosa do pai. O narrador e sua irmã têm disputado a
herança do pai com a última mulher dele, que é quem acaba ficando com tudo: o pai só deixa aos filhos
seu silencio como herança. Como disse o testamento de Manoel Perna, único amigo de Quain no Brasil: o
segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que
ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar
morrendo de curiosidade
(p. 7).

Esse mistério (da morte de Quain e, segundo a nossa hipótese, também da morte do próprio pai) provoca uma
obsessão no narrador, mas não pode senão ficar como mistério, buraco negro da narrativa. Assim, o
testamento de Manoel Perna, o amigo que passara “nove noites” com Quain, que é um documento chave da
pesquisa, no entanto, é escrito – inventado – pelo próprio narrador (segundo ele próprio confessa, quase
no final do romance, desestabilizando completamente o estatuto de verdade dos fatos narrados). Ou seja,
a “prova” principal, o fio narrativo da historia de Quain, é declarada falsa “na cara” do leitor. E,
apesar da decepção, o interesse se mantém, e até aumenta depois dessa revelação, pois o que interessa é
mais a própria pesquisa do que alguma suposta verdade sobre Quain: interessa a relação do narrador com
essa história e aonde ela o conduzirá.

A pesquisa sobre a morte de Quain vai construindo uma trama pseudo-policial no romance, mas se revela
menos como caminho à verdade do que como elaboração do trauma, pois é o trauma da infância que aproxima
afetivamente ao narrador com Quain: Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens de negócios
(…) Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo associado a uma
espécie de paraíso (…) para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de mais nada uma visão e
uma consciência do exótico como parte do inferno
. (p.64) Quando retorna junto aos índios, como
exigência da sua pesquisa, esse encontro é descrito como infernal. Lacan considera que o real se
apresenta sob a forma do inassimilável do trauma; ele aporta a noção de “tyché” como uma forma de nomear
o real como encontro falido. Ao se tratar de um trauma (ou seja, aquilo que não pode ser narrado, nem
representado), é evidente por que cada um dos documentos que o narrador encontra ao mesmo tempo que
revelam, encobrem. As cartas que documentam aspectos da história teriam sido duvidosamente traduzidas,
sobre elas se constrói o testamento, que sabemos falso. O narrador vai em busca do filho do velho que
morrera no hospital, achando que esse velho poderia ter sido o fotografo amigo de Quain, mas quando o
encontra, acha que seus traços se parecem não aos do velho mas aos de Quain. Quer dizer, a escrita se
torna totalmente paranóica (e isto é típico dos romances de Carvalho), ao ponto que nada mais parece
confiável. A “realidade” da ficção se desmancha. As histórias dependem antes de tudo da confiança de
quem as ouve
(p. 8), diz o narrador. Mas as armadilhas do texto, que transita entre o documentário e
o ficcional, entre o subjetivo e o histórico, e mistura tudo, não oferecem ao leitor nenhuma
possibilidade de confiar.

Em Nove noites o passado não deixa de retornar (na estrutura em abismo, na qual um tempo contém o
passado e o futuro), retornam os rostos, as lembranças, as experiências.

Trecho do livro (páginas 114 a 117)

Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem sapatos. Queria passar o aniversário na cidade.
Naquela noite, me falou de outra ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado
antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os nativos do Pacífico, já fazia
quatro anos, do outro lado do mundo. Agora, já não falava da mesma.

Não era a ilha em que adormecera sob as estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do
crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas. Me lembro de vê-lo rindo pela primeira vez da
própria história, quando chegou a Carolina, quando me falou da ilha no Pacífico, ainda na primeira noite
em que bebemos juntos, fazia mais de dois meses, comentando as cutucadas que o nativo lhe dava em vão,
para mantê-lo acordado, e de como fiquei sem graça quando ele de repente parou de rir para assumir uma
expressão grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante da inutilidade das tentativas de
mantê-lo desperto, terminava por se deitar ao seu lado também.

Fiquei constrangido com a idéia de que pudesse pensar que eu estava cansado de suas histórias e de que,
sem perceber, ele insinuasse alguma coisa ao me contar aquela.

Quando o etnólogo acordava na sua ilha do Pacífico, o sol já estava alto e o contador de histórias tinha
ido embora. Quando voltou a Carolina no final de maio, me mostrou orgulhoso a foto e o desenho que
fizera de próprio punho, retratos de negros enormes e fortes, para que eu pudesse ter um a idéia do que
me dizia. Eu não podia ter imaginado que a aldeia não ficava na praia, mas morro acima, até ele me falar
da Floresta Interior, governada por um chefe que mantinha um dente de baleia pendurado no peito como
símbolo de poder.

Na ilha, os chefes eram sagrados, assim como tudo que eles tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas
pelos invasores de outras ilhas, que por sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os nativos do
interior mantinham intacto aquilo que ele procurava: uma sociedade em que, a despeito da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma estrutura fixa e de um repertório predeterminado.

Havia um leque de opções, embora restrito, e uma mobilidade interna. Foi o que ele me disse. sempre teve fascínio pelas ilhas. São universos isolados. Arrumou o primeiro emprego com apenas quinze anos e foi trabalhar, durante as férias de 1928, como ” controlador do tempo e das horas” – foi nesses termos canhestros que ele tentou me explicar, com o auxílio de gestos, a sua tarefa no canteiro de obras de uma estrada de ferro numa região inexplorada no coração do Canadá, com
a poesia involuntária dos que não conhecem a língua em que tentam se exprimir.

Aproveitava os dias de folga para explorar as ilhas da região, rascunhando mapas que mandava para casa no
lugar de cartas e que mostravam a sua posição no mundo. Avançava por rochedos e florestas de abetos,
horas a fio a desbravar regiões desérticas em sua fantasia de pioneiro solitário, a embrenhar-se na
natureza até não restar outra fronteira para sua liberdade além dos limites do próprio corpo, até nada
além do corpo impedir a fusão com a paisagem em que já se dissolvera em espírito.

Eram territórios que trilhava sozinho no verão ártico, infestado de mosquitos, e cujos mapas eram uma
indissociável combinação da sua experiência e da sua imaginação. Assim como o que tento lhe reproduzir
agora, e você terá que perdoar a precariedade das imagens de um humilde sertanejo que não conhecendo o
mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu. Mas não foi de
nenhuma dessas ilhas que ele me falou quando voltou a Carolina descalço e humilhado no final de maio.
Foi de uma outra, à qual se chegava de balsa, depois de duas horas de trem, vindo da cidade. Uma ilha
que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos, todos ocupados por amigos. Já não se
expressava com tristeza nem com alegria. E eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela
lembrança.

Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada solitária pela praia, onde abandonara os colegas,
deparou com a casa excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes de poder se
apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma máquina fotográfica e registrou para sempre o
espanto e o desconforto do antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido pelo
desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante a sua passagem por Carolina, no final de
maio, o dr. Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele
retrato.

Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmera. Não
podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do
desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo, antes de poder dizer qualquer coisa. E embora
depois tenham se tornado amigos, por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto dele. Até
irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de qualquer jeito, depois de ter
sabido que ele estava de partida para o Brasil.

Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse
estranho era você.

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