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O desertor (Poema), de Manuel Inácio da Silva Alvaregnga

by Lucas Gomes

O desertor

, também conhecido como O desertor das letras,
foi escrito pelo poeta árcade Silva Alvarenga. É o primeiro poema
herói-cômico da literatura brasileira, feito em homenagem à
inauguração da estátua eqüestre de D. José
I. A construção da estátua fazia parte do projeto pombalino
para celebrar a reconstrução de Lisboa depois do desastroso terremoto
de 1755.

Publicado em 1774, O desertor faz uma crítica satírica
aos hábitos e comportamentos de parte da juventude do período,
firmando-se como um dos textos mais importantes para o estudo da ilustração
luso-americana no século XVIII. Revela o otimismo do autor em relação
à Reforma da Universidade de Coimbra como uma vitória das Luzes
e da Ciência contra a escolástica. Ressalta na intencionalidade
do autor, expressa na introdução teórica ao poema, que
ele tinha a intenção de fazer de seu poema uma arma estética
a favor da Reforma e isso se expressa na forma combativa como ele o estrutura.

É nesse poema que ficam claras as opções estéticas
do poeta. Observa-se uma afeição ao Arcadismo que tinha como princípio
a defesa da razão contra aos exageros das expressões vazias carregadas
de metáforas e paradoxos inócuos do Barroco. Como bom adepto da
Ilustração, Silva Alvarenga, em seus poemas, exalta o papel das
ciências. Caracteriza-se pelo entusiástico apoio dado ao Marquês
de Pombal pela civilização do ensino, revolucionária reforma
educacional feita na Universidade portuguesa que destituiu os jesuítas
das funções de administração e magistério
até então exercidas. Essas reformas visavam extirpar da educação
portuguesa as marcas deixadas pelo método peripatético utilizado
nas escolas da Companhia de Jesus, instituição que era, desde
meados do século XVI, a grande responsável pelo ensino português.

O desertor é um poema relativamente curto: narra, ao longo
de cinco cantos – compostos de decassílabos brancos.

Poema na íntegra:

DISCURSO SOBRE O POEMA HERÓI-CÔMICO

A imitação da Natureza, em que consiste toda a força
da Poesia, é o meio mais eficaz para mover, e deleitar os homens;
porque estes têm um inato amor à imitação,
harmonia, e ritmo. Aristóteles, que bem tinha estudado a origem
das paixões, assim o afirma no cap. 4° da Poética. Este
inato amor foi o que logo ao princípio ensinou a imitar o Canto
das Aves: ele depois foi o inventor da Flauta, e da Poesia, como felizmente
exprimiu Lucrécio no liv. 1°, v. 1378.

At liquidas avium voces imitarier ore
Ante fuit multo, quam levia carmina cantu
Concelebrare homines possent, aureisque juvare.
Et Zephyri cava per calamorum sibila primum
Agrestes docuere cavas inflare cicutas.

O prazer, que nos causam todas as artes imitadoras, é a mais segura
prova deste princípio. Mas assim como o sábio Pintor para
mover a compaixão não representa um quadro alegre, e risonho,
também o hábil Poeta deve escolher para a sua imitação
ações conducentes ao fim que se propõe: por isso
o Épico, que pertende inspirar a admiração, e o amor
da virtude, imita uma ação na qual possam aparecer brilhantes
o valor, a piedade, a constância, a prudência, o amor da Pátria,
a veneração dos Príncipes, o respeito das Leis, e
os sentimentos da humanidade. O Trágico, que por meio do terror,
e da compaixão deseja purgar o que há de mais violento em
as nossas paixões, escolhe ação, onde possa ver-se
o horror do crime acompanhado da infâmia, do temor, do remorso,
da desesperação, e do castigo: enquanto o Cômico acha
nas ações vulgares um dilatado campo à irrisão,
com que repreende os vícios.
Qual destas imitações consegue mais depressa o seu fim,
é difícil o julgar, sendo tão diferentes os caracteres,
como as inclinações; mas quase sempre o coração
humano, regido pelas leis do seu amor próprio, é mais fácil
em ouvir a censura dos vícios, do que o louvor das virtudes alheias.
O poema Chamado Herói-Cômico, porque abraça ao mesmo
tempo uma e outra espécie de poesia, é a imitação
de uma ação cômica heroicamente tratada. Este Poema
pareceu monstruoso aos Críticos mais escrupulosos; porque se não
pode (dizem eles) assinar o seu verdadeiro caráter. Isto é
mais uma nota pueril, do que bem fundada crítica; pois a mistura
do heróico, e do cômico não envolve a contradição,
que se acha na Tragicomédia, onde o terror, e o riso mutuamente
se destroem.
Não obsta a autoridade de Platão referida por muitos; porque
quando este Filósofo no Diálogo 3 da sua República
parece dizer que são incompatíveis duas diversas imitações,
fala expressamente dos Autores Trágicos, e Cômicos, que jamais
serão perfeitos em ambas.
Esta Poesia não foi desconhecida dos Antigos. Homero daria mais
de um modelo digno da sua mão, se o tempo, que respeitou a Batracomiomaquia,
deixasse chegar a nós o seu Margites, de que fala Aristóteles
no cap. 4 da Poética, dizendo que este poema tinha com a Comédia
a mesma relação que a Ilíada com a Tragédia.
O Culex, ou seja de Virgílio, ou de outro qualquer, não
contribui pouco para confirmar a sua antiguidade.
Muitos são os poemas herói-cômicos modernos. A Secchia
rapita de Tassoni é para os Italianos o mesmo que o Lutrin de Boileau
para os Franceses, e o Hudibraz de Butler, e o Rape of the lock de Pope
para os Ingleses.
Uns sujeitaram o poema herói-cômico a todos os preceitos
da Epopéia, e quiseram que só diferisse pelo cômico
da ação, e misturaram o ridículo, e o sublime de
tal sorte, que servindo um de realce a outro, fizeram aparecer novas belezas
em ambos os gêneros. Outros omitindo, ou talvez desprezando algumas
regras, abriram novos caminhos à sua engenhosa fantasia, e mostraram
disfarçada com inocentes graciosidades a crítica mais insinuante,
como M. Gresset no seu Ververt.
Não faltou quem tratasse comicamente uma ação heróica;
mas esta imitação não foi também recebida,
ainda que a Paródia da Eneida, de Scarron, possa servir de modelo.
É desnecessário trazer à memória a autoridade,
e o sucesso de tão ilustres Poetas para justificar o Poema Herói-cômico,
quando não há quem duvide que ele, porque imita, move, e
deleita: e porque mostra ridículo o vício, e amável
a Virtude, consegue o fim da verdadeira poesia.
Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci.
Horat. Poet. v. 342.

Discit enim citius, meminitque libentius illud,
Quod quis deridet, quam quod probat, ac veneratur.
Horat. Epist. I. 1. 2. v. 262.

 

CANTO I

Musas, cantai o Desertor das letras,
Que, depois dos estragos da Ignorância,
Por longos, e duríssimos trabalhos
Conduziu sempre firme os companheiros
Desde o loiro Mondego aos Pátrios montes.
Em vão se opõem as luzes da Verdade
Ao fim, que já na idéia tem proposto:
E em vão do Tio as iras o ameaçam.

E tu, que à sombra duma mão benigna,
Gênio da Lusitânia, no teu seio
De novo alentas as amáveis Artes;
Se ao surgir do letargo vergonhoso
Não receias pisar da Glória a estrada,
Dirige o meu batel, que as velas solta,
O porto deixa, e rompe os vastos mares
De perigosas Sirtes povoados.

Quais seriam as causas, quais os meios
Por que Gonçalo renuncia os livros?
Os conselhos, e indústrias da Ignorância
O fizeram curvar ao peso enorme
De tão difícil, e arriscada empresa.
E tanto pode a rústica progênie!

A vós, por quem a Pátria altiva enlaça
Entre as penas vermelhas, e amarelas
Honrosas palmas, e sagrados loiros,
Firme coluna, escudo impenetrável
Aos assaltos do Abuso, e da Ignorância,
A vós pertence o proteger meus versos.
Consenti que eles voem sem receio
Vaidosos de levar o vosso nome
Aos apartados climas, onde chegam
Os ecos imortais da Lusa glória.

Já o invicto Marquês com régia pompa
Da risonha Cidade avista os muros.
Já toca a larga ponte em áureo coche.
Ali junta a brilhante Infantaria;
Ao rouco som de música guerreira
Troveja por espaços: a justiça,
Fecunda mãe da Paz, e da Abundância,
Vem a seu lado: as Filhas da Memória
Digna imortal coroa lhe oferecem,
Prêmio de seus trabalhos: as Ciências
Tornam com ele aos ares do Mondego;
E a Verdade entre júbilos o aclama

Restaurador do seu Império antigo.
Brilhante luz, paterna liberdade,
Vós, que fostes num dia sepultadas
Co bravo Rei nos campos de Marrocos,
Quando traidoras, ímpias mãos o armaram
Vítima ilustre da ambição alheia,
Tornai, tornai a nós. Da régia stirpe
Renasce o vingador da antiga afronta.
Assim o novo Cipião crescia
Para terror da bárbara Cartago.
Possam meus olhos ver o Ismaelita
Nadar em sangue, e pálido de susto
fugir da morte, e mendigar cadeias;
E amontoando Luas sobre alfanges
Formar degraus ao Trono Lusitano.
Dissiparam-se as trevas horrorosas,
Que os belos horizontes assombravam,
E a suspirada luz nos aparece.
Tal depois que raivoso, e sibilante
Sobre o carro da Noite o Euro açoita
Os tardios cavalos do Bootes,
E insulta as terras, e revolve os mares,
Raia a manhã serena entre doiradas,
E brancas nuvens: ri-se o Céu, e a Terra:
Vento dorme, e as Horas vigilantes
Abrem ao claro Sol a azul campanha.

A soberba Ignorância entanto observa,
E se confunde ao ver o próprio trono
Abalar-se, e cair: o seu ruído
Redobra os ecos nos opostos vales,
E o Mondego feliz ao mar undoso
Leva alegre a notícia, porque chegue
Das suas praias aos confins da Terra.
Ela abatida, e só não acha abrigo,
E desta sorte em seu temor suspira.

Verei eu sepultar-se entre ruínas
O meu reino, o meu nome, e a minha glória;
Depois de ser temida, e respeitada?
Pobre resto de míseros vassalos
Não há mais que esperar. Já fui rainha:
Já fostes venturosos: não soframos
As injúrias, que o vulgo nos prepara:
Injúrias mais cruéis do que a desgraça.
Deixemos para sempre estes terríveis
Climas de mágoa, susto, horror, e estrago.
Mostrai-me algum lugar desconhecido,
Onde oculta repouse, até que possa
Tomar de quem me ofende alta vingança.
Mas onde, se um Prelado formidável,
Esse Argos, que me assusta, vigilante
Ao lugar mais remoto estende a vista?
Monstros do cego abismo, em meu socorro
Empenhai o poder do vosso braço;
Que se entre os homens me faltar asilo,
Ao triste vão dos ásperos rochedos,
Onde o Tenaro escuro, e cavernoso
Da morada sombria as portas abre,
Irei chorar meus dias sem ventura:
Irei… Assim falando misturava
Gemidos, e soluços, que sufocam
Dentro do peito a voz, e umedecia
Co pranto amargo a face descorada.
Mas logo, serenando o rosto aflito,
Corre por entre sustos, e esperanças
Ao caro abrigo do fiel Gonçalo.
A sonolenta, a pigra Ociosidade
Por esta vez deixou de acompanhá-la:
E a lânguida Perguiça forcejando
Pôde apenas segui-la com os olhos.

Toma a forma dum célebre Antiquário
Sebastianista acérrimo, incansável,
Libertino com capa de devoto.
Tem macilento o rosto, os olhos vivos,
Pesado o ventre, o passo vagaroso.
Nunca trajou à moda: uma casaca
Da cor da noite o veste, e traz pendentes
Largos canhões do tempo dos Afonsos.
Dizem que o tempo da mais bela idade
Consagrou às questões do Peripato.
Já viu passar dez lustros, e experiente
Sabe enredos urdir, e pôr-se em salvo.
Entra por toda a parte, e em toda a parte
É conhecido o nome de Tibúrcio.

Gonçalo, que foi sempre desejoso
Da mais bela instrução, lia, e relia
Ora os longos acasos de Rosaura,
Ora as tristes desgraças de Florinda,
E sempre se detinha com mais gosto
Na cova Tristiféia, e na passagem
Da perigosa ponte de Mantible.
Repetia de cor de Albano as queixas
Chamando a Damiana injusta, ingrata;
Quando Tibúrcio apaixonado, e triste
Ralhando entrou. Que esperas tu dos livros?
Crês que ainda apareçam grandes homens
Por estas invenções, com que se apartam
Da profunda ciência dos antigos?
Morreram as postilas, e os Cadernos:
Caiu de todo a Ponte, e se acabaram
As distinções, que tudo defendiam,
E o ergo, que fará saudade a muitos!
Noutro tempo dos Sábios era a língua
Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba,
Ou se muda em pior. Que alegres dias
Não foram os de Maio, quando a estrada
Se enchia de Arrieiros, e Estudantes!
Ó tempo alegre, e bem-aventurado!
Que fácil era então o azul Capelo
Adornado de franjas, e alamares,
O rico anel, e a flutuante borla,
Honra, e fortuna, que chegava a todos!
Hoje é grande a carreira, e serão raros
Os que se atrevam a tocar a meta.
Ah Gonçalo! Gonçalo! que mais vale
Tirar coa própria mão no fértil Souto
Moles castanhas do espinhoso ouriço!
Quanto é doce ao voltar da Primavera
O saboroso mel no loiro favo!
Ó alegre, e famosa Mioselha
Fértil em queijos, fértil em tramoços!
Só lá de romaria em romaria
Podes viver feliz, e descansado:
Quem te obriga a levar sobre os teus ombros
O desmedido peso, que te espera?

 

Não tenhas do bom Tio algum receio:
Comigo irás: bem sabes quanto posso.
Se te envergonhas de ser só, descansa;
Fiel parente, amigo inseparável,
Eu farei que abraçando o mesmo exemplo
Muitos se apressem a seguir teus passos.
Assim falava: quando um ar de riso
Apareceu no rosto de Gonçalo.
Tudo o que se deseja se acredita;
Nem há quem o seu gosto desaprove.
Ele porque já traz no pensamento
Poupar-se dos estudos à fadiga
Não vacila na escolha, e se aproveita
Da feliz ocasião, que lhe assegura
O meditado fim de seus desejos.

Convocam-se os heróis, e deliberam
Em pleno consistório, onde Gonçalo
Silêncio pede, e assim a todos fala.
Heróis, a quem uma alma livre anima,
Que desprezando as Artes, e as Ciências,
Ides buscar da Pátria no regaço,
Longe da sujeição, e da fadiga
Doce descanso, amável liberdade:
Se algum de vós (o que eu não creio) ainda
Tem na alma o vão desejo dos estudos,
Levante o dedo ao alto. Uns para os outros
olharam de repente, e de repente
Rouco, e brando sussurro ao ar se espalha:
Qual nos bosques de Tempe, ou nas frondosas
Margens, que banha o plácido Mondego,
Costuma ouvir-se o Zéfiro suave,
Quando meneia os álamos sombrios.
Nenhum alçou a mão, e a Ignorância
Pareceu consolar-se, imaginando
Sonhadas glórias de futuro império.

Dispõe-se a companhia, e se aparelha
Para partir antes que o Sol desate
Sobre a Terra orvalhada as tranças d’oiro.
Tibúrcio tudo apronta. Mas Janeiro
Loquaz, traidor, doméstico inimigo
Voa de casa em casa publicando
Da forte esquadra a próxima partida.

Guiomar, velha que há muito que insensível
Às delícias do amor, aferrolhando
Emagrece nos míseros cuidados
Da faminta ambição, e é na Cidade
Uma ave de rapina, que entre as unhas
Leva tudo o que encontra aos ermos cumes
Da escalvada montanha, onde a festejam
Coa boca aberta os ávidos filhinhos:
Triste agora, e infeliz ouve, e se assusta
Das notícias cruéis, que o Moço espalha.
Ó Ama desgraçada! Ó dia infausto!
Agora que esperava mais sossego
Principiam de novo os meus trabalhos!
Estas, e outras palavras arrancava
Do peito descontente, enquanto a Filha
Amorosa, e sagaz estuda os meios,
Com que possa deter o ingrato amante:
Faz ajuntar de partes mil à pressa
Cordões, e anéis, e a pedra reluzente,
Que os olhos desafia: os seus cabelos,
Que desconhecem o toucado, empasta
Coa cheirosa pomada: a Mãe se lembra
Da própria mocidade, e lhe vai pondo
Com a trêmula mão vermelhas fitas.
Simples noiva da aldeia, que ao mover-se
Teme perder o desusado adorno,
Nunca formou mais vagarosa os passos.
Narcisa chega entre raivosa, e triste,
E fingindo esquecer-se da mantilha
Para mostrar-se irada, desta sorte
Em alta voz lhe fala. Será certo
Que pertendes fugir, e que me deixas
Infeliz, enganada, e descontente?
Assim faltas cruel, pérfido, ingrato
Dum longo amor aos ternos juramentos?
Não disseste mil vezes… mas que importa
Que os meus males recorde? enfim, perjuro,
As tuas vãs promessas me enganaram.
Justiça pedirei ao Céu, e ao Mundo:
O mundo tem prisões, o Céu tem raios.

Falava; e o herói, que arrasta ainda
Dum incômodo amor os duros ferros,
Parece vacilar; quando Tibúrcio
Dá conselhos a um, a outro ameaça
Pondo irados os olhos em Narcisa.
Diz-lhe que em vão suspira, que em vão chora
E que sempre tiveram as mulheres
Para enganar aos míseros amantes
As lágrimas no rosto, o riso na alma.
Gonçalo então, que o seu dever conhece,
Dá provas de valor, e de prudência.
Ouve Narcisa bela, (lhe dizia)
Serena a tua dor, e os teus queixumes:
O teu pranto me move, injusto pranto,
Que o meu constante amor de ingrato acusa:
Sossega: a nova herança dum morgado
É quem me chama, a ausência será breve.
Tempo depois virá que em doces laços
Eterno amor as nossas al mas prenda,
E então farás tibornas e magustos.
Nem sempre cobre o mar a longa praia:
Nem sempre o vento com furor raivoso
Do robusto pinheiro o tronco açoita.

Acaba de falar, e lhe oferece
A leve bolsa, que Narcisa aceita
Como penhor sincero de amizade,
Bolsa, que deve ser na dura ausência
Breve consolação de tristes mágoas.

O experto Amigo, que se mostra em tudo
Companheiro fiel, com os olhos tristes,
Pondera os longos, e ásperos caminhos:
Lembra funestas noites de estalagem,
E adverte em vão, que ao menos por cautela
Deve fazer-lhe a bolsa companhia.
Deixando enfim inúteis argumentos
Remete a decisão ao próprio braço.
Não se esquecem das unhas, nem dos dentes,
Armas, que a todos deu a Natureza.
Ouvem-se pela casa em som confuso
As troncadas injúrias, e os queixumes.
Assim dois cães, se o hóspede imprudente
Lança da mesa os ossos esburgados,
Prontos avançam; duma, e doutra parte
Se vê firme o valor: mordem-se, e rosnam;
Mas não cessa a contenda. Amigo, e amante,
Que farias, Gonçalo, em tanto aperto?
Concorre a plebe, e o férvido tumulto
Vai pelas negras Fúrias conduzido
Despertando nos peitos a desordem.
Ninguém sabe por quê, mas todos gritam.
Já voam as cadeiras pelos ares:
Pedras, e paus de longe se arremessam.
E se a cândida Paz com rosto alegre
Serenou as desgraças deste dia,
Os teus dentes, intrépido Gonçalo,
Viste voar em negro sangue envoltos.
Torna alegre Narcisa, e cinco vezes
Abriu a bolsa, e numerou a prata:
Fez diversas porções, que num momento
Tornou a confundir: não doutra sorte
O menino impaciente, e cobiçoso,
Quando alcança o que há muito lhe negavam,
Repara, volta, move, ajunta, espalha,
E neste giro o seu prazer sustenta.

Entanto a mãe, que já por experiência
Os enganos conhece mais ocultos,
Busca novos pretextos de vingança
Fingindo torpes, e horrorosos crimes,
E espera ouvir gemer em poucas horas
O mancebo infeliz em prisão dura.
Mas Rodrigo, que ouviu o rumor vago,
À pressa chega, e desta sorte fala.

Que desgraças te esperam! foge, foge
Gonçalo, enquanto há tempo: gente armada
Vem logo contra ti. Guiomar convoca
Todo o poder do mundo: um só momento
Não percas, caro amigo; os companheiros
Com alvoroço esperam. Ah deixemos,
Deixemos duma vez estas paredes,
Onde co próprio sangue escrita deixas
De teu trágico amor a breve história.
É já outro o Mondego: a liberdade
Destes campos fugiu, e só ficaram
A dura sujeição, e o triste estudo.
Enfim hei de apartar-me desta sorte?
Ó sempre tristes, sempre amargos sejam
Os teus últimos dias, velha infame.
Gonçalo, sim, chorando, monta, e parte.

CANTO II

Com largo passo longe do Mondego
Alegre a forte gente caminhava.
Gonçalo excede a todos na estatura,
Na força, no valor, e na destreza.
Sobre um magro jumento se escarrancha
Tibúrcio, e já dum ramo de salgueiro
Desata ao Norte fresco, que assobia,
Por vistoso estandarte um lenço pardo.
Cosme infeliz, e sempre namorado
Sem ser correspondido, vai saudoso,
Ama, e não sabe a quem: vive penando,
E se consola só porque imagina
Que tem de conseguir melhor ventura.
Rodrigo, que de todos desconfia,
É de índole grosseira, e gênio bruto,
Não conhece os perigos, nem os teme:
Melancólico sempre, vai por gosto
Viver na choça, aonde foi criado.
Qual o Tatu, que o destro Americano
Vivo prendeu, e em vão depois se cansa
Por fazê-lo doméstico, que sempre
Temeroso nas conchas se recolhe
E parece fugir à luz do dia.
Também vinha Bertoldo, e traz consigo
Carunchosos papéis por onde afirma
Vir do sétimo Rei dos Longobardos.
Grita contra as riquezas, a Fortuna,
Segundo o que ele diz, não muda o sangue:
Pisa com força o chão, e empavesado
De ações, que ele não pode chamar suas,
Aos outros trata com feroz desprezo.
Iracundo Gaspar, que te enfureces
No jogo, e quando perdes não duvidas
Meter a mão à ferrugenta espada,
Tu não ficaste: ‘as noites sobre os livros
Não queres suportar, porque não temes
Da já viúva mãe as frouxas iras.
Nem tu, Alberto alegre, e desejado
Das vistosas funções das romarias,
Que és vivo, pronto, e ágil, e nos bailes
Tens fama de engraçado, e garganteias
Coa viola na mão trocando as pernas.
Os que aprendem o nome dos autores,
Os que lêem só o prólogo dos livros,
E aqueles, cujo sono não perturba
O côncavo metal, que as horas conta,
Seguiram as bandeiras da ignorância
Nos incríveis trabalhos desta empresa.

O Sol já sobre os campos de Anfitrite
Inclina o carro, e as nuvens carregadas
Importunos chuveiros ameaçam;
Quando a velha estalagem os recebe.

Mesa de tosco pinho se povoa
De negras azeitonas, e salgado
Queijo, que estima a gente que mais bebe.
Dum lado, e doutro lado se levantam
Pichéis, e copos, em que o vinho abunda.
Corriam para aqui desafiados
Rodrigo, o triste, e o glutão Tibúrcio.
Este instante fatal é que decide
Da dúbia sorte dos heróis cobrindo
Um de eterna vergonha, outro de glória.

A feia Noite, que aborrece as luzes,
Desce dos altos montes com mais pressa
Por ver este combate, e afugentada
Pela sombria luz duma candeia
De longe observa o novo desafio.
Um, e outro ocupando as mãos, e a boca
Avidamente a devorar começa.
Assim esse animal grosseiro, e pingue,
Que de alpestres bolotas se sustenta,
À pressa come, e tendo uma nos dentes,
Noutra tem o desejo, e noutra a vista.
Rodrigo quase certo da vitória
Coas mãos ambas levanta um grande copo,
Copo digno de Alcides, e à saúde
De todos os famosos Desertores
De uma vez esgotou: então Tibúrcio
Cheio de nobre ardor, fechando os olhos
Toma um largo pichel, e assim lhe fala.

Vasilha da minha alma, tu que guardas
A alegria dos homens no teu seio,
E tu, filho da cepa generoso,
Se estimas, e recebes os meus votos,
Derrama sobre mim os teus encantos.
Já tinha dito muito: e enquanto bebe
Voa a cega Discórdia, que se nutre
De sangue, e de vingança, e sobre os copos
Três vezes sacudiu as negras asas.
Viam-se já nos lívidos semblantes
A raiva sanguinosa, a má tristeza.
A Noite, a quem o Acaso favorece,
Estende a fusca mão, e a luz abafa.
Veloz passa o furor de peito em peito,
Perturba os corações, e inspira o ódio.

Só tu, Gonçalo, descrever puderas
Os terríveis estragos desta noite,
Tu, que posto debaixo duma banca
(Por não manchar as mãos no sangue amigo)
Sentiste pela casa, e pelos ares
Rolar os pratos, e tinir os copos.
Range os dentes Gaspar, e pelo escuro
Não acerta coa espada, nem coa porta:
Quando Ambrósio, que tinha envelhecido
Da Estalagem na mísera oficina,
Coa candeia na mão assim falava.
É crível, que entre vós jamais se encontre
Um gênio dócil, sério, e moderado?
Isto deveis às letras? respondei-me,
Ou insultai também os meus cabelos

Da triste, e longa idade embranquecidos.
Julgais acaso, que o saber se infunde
Deixando o vosso nome assinalado
Pelos muros, e portas da Estalagem?
Ó néscia mocidade! é necessário
Muito tempo sofrer, gastando a vista
Na contínua lição, e sobre os livros
Passar do frio Inverno as longas noites.
E quando já tivésseis conseguido
De tão bela carreira os dignos prêmios,
Muito pouco sabeis, se inda vos falta
Essa grande Arte de viver no mundo,
Essa, que em todo o estado nos ensina
A ter moderação, honra, e prudência.
Eu também já na flor da mocidade
Varri coa minha capa o pó da sala:
Eu também fui do rancho da carqueja,
Digno de fama, e digno de castigo.
Era então como vós. Jamais os livros
Me deveram cuidado, e me alegrava
Das noturnas empresas, dos distúrbios:
Os dias se passavam quase inteiros
Nos jogos, nos passeios, nas intrigas,
Que fomentam os ódios, e as vinganças.
Por isso estou no seio da miséria:
Por isso arrasto uma infeliz velhice
Sem honra, sem proveito, sem abrigo.
Tempo feliz da alegre mocidade!
Hoje encurvado sobre a sepultura
Eu choro em vão de vos haver perdido!
Assim suspira, e geme, e continua:
Conservai sempre firme na memória
Dum velho desgraçado o triste exemplo,
E aprendei a ser bons, que a vossa idade
As indignas ações não justifica.
Mas se vós desprezais os meus conselhos,
Nunca gozeis o prêmio dos estudos:
Aflições, e trabalhos vos oprimam,
Enquanto o mar das índias vos espera.
Então Gaspar, tomando o caso em brio,
Aceso de ira com valor responde,
Traça o capote, e tira pela espada.
O velho grita, e foge: às suas vozes
De rústicos um povo se enfurece,
E toma as armas, e bradando avança.
Qual nos imensos, e profundos mares
O voraz Tubarão entre o cardume
De argentadas Sardinhas: elas fogem,
Deixam o campo, e nada lhe resiste;
Assim Gonçalo, a quem já todos temem,
Faz espalhar a turba, que o rodeia,
E só deixa a quem foge de encontrá-lo.

Gaspar, que o rosto nunca viu ao medo,
A todos desafia, e não perdoa
Duma oliveira ao carcomido tronco,
Que ele julga broquel impenetrável,
Vendo estalar da sua espada a folha.

Da noite a densa névoa favorece.
Receosos de nova tempestade,
Salvam as vidas os Heróis fugindo
Por entre o mato espesso. Ouvem ao longe
Da vingativa plebe a voz irada.
À clara luz das pinhas resinosas
Aparecem as foices, e aparecem
Chuços, cacheiras, trancas, e machados.
Levanta-se o clamor; e a crua guerra,
Que o sangue dos mortais derrama, e bebe,
Gira por toda a parte, e move as armas.
Entanto a valerosa companhia
Amparada da sombra feia, e triste
Voa por longo espaço sobre as asas
Do pálido terror. Não doutra sorte
Rasos xavecos de piratas Moiros,
Quando aos ecos do bronze fulminante
Vêem tremular as vencedoras Quinas
sobre a possante Nau, que oprime os mares,
Fogem à vela, e remo, e não descansam
Sem ter beijado as Argelinas praias.
Ouvem-se então diversos sentimentos.
Chora Gaspar de se não ter vingado,
E ainda aqui colérico assevera
Que a não faltar-lhe a espada não fugira.
Espada, que ao romper as linhas d’Elvas,
Se dos velhos Avós não mente a história,
Abriu de meio a meio um Castelhano.

Teme Bertoldo, que o encontre o Povo;
E no meio daquela escuridade
Chega-se aos mais com pânico receio.
Cosme quase insensível aos perigos,
E aos amargos momentos desta noite,
Aproveita o silêncio, o sítio, a hora
Para chorar saudades sem motivo.
Só Gonçalo pensava cuidadoso
Em salvar os aflitos companheiros.
Assim o astuto assolador de Tróia,
Quando os Gregos heróis ouviu cerdosos
Grunhir nos bosques da encantada Circe,
Ou quando viu a detestável mesa
Na vasta cova do Ciclope horrendo.
Onde estarás fiel, e caro amigo!
(Dizia o condutor da stulta gente)
Se tu me faltas como irei meter-me
Nas mãos dum Tio rústico, inflexível?
Voltarei? mas ó Céus! quem me assegura
Que essa velha cruel, nefanda harpia
Não tenha urdido algum funesto engano?
E se o Povo indignado, e ofendido
Nos vem seguindo, e ao surgir da Aurora
Neste inculto deserto… Céu piedoso,
Longe, longe de nós tão graves danos.

Gonçalo assim falava, e vigilante
Tristes horas passou, até que o dia
Apareceu entre rosadas nuvens
Sobre as altas montanhas do horizonte.

CANTO III

A Fama sobre o carro transparente,
Que arrastam ao través do espaço imenso
O sonoro Aquilon, e o veloz Austro,
Cantava o caro nome, a imortal glória
Do Augusto Pai do Povo. Entre milhares
De ações dignas dum Rei, Europa admira
O soberbo Edifício levantado,
Que o saudoso Mondego abraça, e adora:
Edifício, que o tempo doravante
Vê de longe, rodeia, teme, e foge:
Que sustenta em firmíssimas colunas
Da ciência imortal o Régio Trono.

Se longe da feroz barbaridade
Os olhos abre a forte Lusitânia,
Grande Rei, esta ação é toda vossa.
Entanto a Fama heróica vão seguindo
As velozes, e incógnitas notícias,
Que trazem, e que levam os sucessos
De país em país, de clima em clima.
Elas voam em turba, enchendo os ares
Dos ecos dissonantes, a que atendem
Crédulas velhas, e homens ociosos.
Qual no fértil Sertão da Ajuruoca
Vaga nuvem de verdes Papagaios,
Que encobre a luz do Sol, e que em seus gritos
É semelhante a um povo amotinado:
Assim vão as Notícias, e estas vozes
Pelo campo entre os rústicos semeiam.
Gente inexperta, alegre, e sem cuidados,
Fero esquadrão, que os vossos campos tala,
Vem destruindo as terras, e os lugares.
O povo indócil, cego e receoso,
Que as funestas palavras acredita,
Toma os caminhos, e os oiteiros cobre.
Por onde irás, intrépido Gonçalo,
Que escapes ao furor da plebe armada?
Mas já os desgraçados companheiros
Desciam por incógnitas veredas
Para o fundo dum vale cavernoso,
Que o Zêzere veloz lavando insulta
Coas turvas águas do gelado inverno.
Há um lugar nunca dos homens visto,
Na raiz de dois montes sobranceiros.
Suam as frias, e musgosas pedras,
Que dos altos cabeços penduradas
Ameaçam ruína há tempo imenso.
Jamais do Cão feroz o ardor maligno
Desfez a neve eterna destas grutas.
Árvores, que se firmam sobre a rocha,
Famintas de sustento à terra enviam
As tortas, e longuíssimas raízes.
Pendentes caracóis coa frágil concha
Adornam as abóbadas sombrias.
Neste lugar se esconde temerosa
A Noite envolta em longo, e negro manto
Ao ver do Sol os lúcidos cavalos:
Fúnebre, eterno abrigo aos tristes mochos,
Às velhas, às fatídicas corujas,
Que com medonha voz gemendo aumentam
O rouco som do rio alcantilado.

Rufino por seu mal sempre extremoso,
E sempre escarnecido, suspirando
Aqui se entrega ao pálido ciúme,
Dum puro amor ingrata recompensa.
Contam que nestas hórridas cavernas
De míseras angústias rodeado,
Vinha exalar os últimos suspiros
Queixando-se de Amor, e da Fortuna.
Entre os braços do sono repousava
Este infeliz já de chorar cansado;
Quando a inquieta Ignorância, que se aflige,
De ver nestas montanhas escabrosas
Os tímidos amigos, em que funda
De novo império a única esperança:
Por que Rufino os acompanhe, e guie
À pingue, e suspirada Mioselha,
Que é de tantos heróis Pátria famosa,
Finge o rosto da bela Dorotéia,
Dorotéia a mais nova, a mais humana
De quantas filhas teve o velho Amaro.
Ela a roca na cinta, as mãos no fuso
Em sonhos lhe aparece, e mais corada,
Que a rosa na manhã da Primavera,
A falar principia. Se até agora
Ingrata me mostrei a teus amores,
Se inconstante, e perjura me chamaste,
Dá-me nomes mais doces, e ouve atento
Duma alma amante a confissão sincera.
Sempre te amei, e espero ver unidos
Os nossos corações em fortes laços
Do casto amor, que o Céu não desaprova.
Mas eu sem nada mais, que a lã, que fio,
Tu rico só de afetos, e palavras,
Onde iremos, que a sórdida miséria
Não seja em nossos males companheira?
Vai-te, e longe de mim segue a ventura,
Que firme te hei de ser em toda a idade.
Do velho Afonso o triste, e pobre filho,
Pela dura madrasta afugentado,
Também deixou a suspirada Pátria,
E veio em poucos anos o mais rico
Dos bens imensos, que o Brasil encerra.
Vês tu quanto cresceu, que não cabendo
No paterno casal, ergue as paredes
Até chegar ao Céu, que testemunha

A ditosa união com que ele paga
O firme amor da venturosa Ulina?
Vai pois, Rufino meu, que muitas vezes
Muda-se a terra, e muda-se a Fortuna.
Assim falando os braços lhe oferece.
Ó que instante feliz,
se Amor perverso,
Dos últimos favores sempre avaro,
Não firmasse esta sombra de ventura
Sobre as asas de um sonho lisonjeiro!
Desperta o triste, e desgostoso amante,
Vós em mim achareis amigo, e guia:
Que pode dar alguma vez socorro
Um desgraçado a outro desgraçado.
Duros casos de amor me conduziram
A acabar nesta gruta os tristes dias;
Mas hoje volto por feliz presságio
A tentar noutra parte a desventura.
Acaba de falar movendo os passos
Pelo torcido vão das nuas pedras.
Todos o seguem com trabalho imenso. Depois que largo tempo caminharam
Por ásperas montanhas, aparecem
Ao longe a estrada, e o lugar vizinho.
Qual a nau sofredora das tormentas,
Que, depois de tocar o porto amigo,
Sente fugir-lhe as arenosas praias,
E dos hórridos ventos açoitada
Volta a lutar co pélago profundo:
Assim Gonçalo, quando ver espera
Tranqüilo fim de míseros trabalhos,

O povo o cerca, e dos confusos gritos
As montanhas ao longe retumbaram.
Vós ó Musas, dizei como a Discórdia
Com o negro tição, que acende os peitos,
Mostra o rosto de sangue, e pó coberto,
Seguindo os passos do homicida Marte.
Aqui não aparecem refulgentes
Escudos d’aço, e bronze triplicado:
Não assombram a testa dos guerreiros
Flutuantes penachos, que ameaçam,
Como tu viste, ó Tróia, ante os teus muros;
Mas o valor intrépido aparece
A peito descoberto. O povo armado
De choupas, longos paus, e curvas foices,
É semelhante a um bosque
de pinheiros,
Que o fogo devorou, deixando nuas
As elevadas pontas. Animoso Dispõe
Gonçalo a forma de batalha
Posto na frente: à sua voz a um tempo
Todos avançam, todos se aproveitam
Das perigosas, e terríveis armas,
Que o terreno oferece em larga cópia.
Voa a cega Desordem, e aparece
No meio do combate. Por um lado
Gaspar se opõe arremessando pedras
Com força tal, que atroam os ouvidos.
Gonçalo doutra parte invicto, e forte
Abre co ferro agudo amplo caminho.
Já pendia a balança da vitória
Contra a tímida gente, que se espalha;
Quando chega atrevido Brás, o forte.
(Gigante Ferrabrás lhe chama o povo
Pela enorme estatura, e força incrível)
Ergue a pesada maça sem trabalho,
Qual nos montes de Lerne o fero Alcides:
Gonçalo evita a morte com destreza:
Ele renova os formidáveis golpes;
Mas o irado mancebo ao desviar-se
Tropeça, e cai. Neste arriscado instante
Serias morto, intrépido Gonçalo,
Se Gaspar cum rochedo áspero, e rombo
Não atalhasse do inimigo a fúria,
Quebrando-lhe com golpe repentino
Ambas as canas do direito braço.
Rangem os ossos, e a terrível maça
Caindo sobre a terra ao longe soa.
Torna a juntar-se a fugitiva plebe,
E o prudente Gonçalo, que deseja
Mostrar o seu valor noutros perigos,
Finge-se morto: a turba irada o pisa,
Mas ele não se move. Contra todos
Então Gaspar em cólera se acende:
Ameaça, derriba, ataca, e fere;
Até que já sem forças, rodeado
Vê de seus companheiros os opróbrios.

Soa nas costas
dos heróis valentes
O duro azambujeiro, e são levados
Ao som terrível de insultantes gritos
Para a escura prisão, que os esperava.
Gonçalo, o bom Gonçalo as mãos atadas,
Os olhos para o chão, porque era terno
Não refreou o compassivo pranto.
A par dele Bertoldo em vão lamenta
A falta de respeito, que devia
Rústica plebe ao neto de Alarico.
Com vagaroso passo todos marcham,
Como as ovelhas por caminho estreito.
Tal depois da ruína de um Quilombo
Vem a indômita plebe da Etiópia,
Quando rico dos loiros da vitória
O velho Chagas sempre valeroso
Cobre o fuzil da pele da Guariba,
E forra o largo peito cos despojos
Da malhada Pantera, e do escamoso
Jacaré nadador, que infesta as águas.

 

CANTO IV

Tibúrcio, que nas guerras da estalagem
Soube abrandar os inimigos peitos,
Pondo-se como em êxtase profundo
Com os olhos no Céu, e as mãos no peito,
Vem a empenhar a força das intrigas.
Que não farás, intrépida Ignorância,
Por libertar os tristes prisioneiros!

Tem o cuidado das ferradas portas
Amaro vigilante, inexorável;
Mas crédulo, e medroso; e tem ouvido
Não sem horror pela calada noite
Grasnar nos ares, e mugir nos campos
Feias bruxas, e vagos lobisomens.
Com ele o Antiquário se acredita
Por um devoto, e santo Anacoreta,
Que passa os breves dias deste mundo
Entre os rigores duma austera vida.
Amaro, que se fia de aparências,
Para nutrir o frágil penitente
Vai degolando os patos, e as galinhas.
Entanto (quem dissera!) a própria filha
Inocente era o móvel deste enredo,
Seu nome é Dorotéia, e no semblante
Gênio se lhe descobre inquieto, e leve.
E como estes momentos preciosos
Não se devem perder, depois que a fome
Afugentou do estômago vazio,
Com branda voz em tom de profecia
Humildade afetando assim começa.

Pois tanta caridade usais comigo,
O Senhor, que reparte os seus tesoiros,
Vos encherá de mil prosperidades.
A vossa filha… mas convém que eu cale
Os segredos, que o Céu me comunica,
Inda vereis nascer entre riquezas
Os venturosos netos, doce arrimo
Aos fracos dias da caduca idade.
O velho então coas lágrimas nos olhos
Assim falou: Ó filho abençoado,
Que pela débil voz já me pareces
Habitador do Céu, quanto consolas
As pecadoras cãs, que te estão vendo!
Assim talvez seria o meu Leandro,
Se as bexigas em flor o não roubassem!
Dez anos tinha, quando a morte avara
Cortou coa dura mão seus tenros dias.
Então suspira, e segue passo a passo
A longa enfermidade; e enquanto narra
Aparece Marcela, conhecida
Entre todas as velhas por mais sábia
Em penetrar olhando para os dedos
Tudo quanto já dantes lhe contaram.
Sobre pequeno pau, a que se encosta,
Ela vem debruçada pouco a pouco,
O semblante enrugado, os olhos fundos,
Contra o nariz oposta a barba aguda:
Os dous últimos dentes balanceiam
Co pestífero alento, que respira.
Em segredo lhe mostra Dorotéia
A esquerda mão por que ela decifrasse
As confusas palavras de Tibúrcio.
Ela observa, e depois de mil trejeitos
Franzindo a testa, arcando as sobrancelhas,
Com voz trêmula, e fraca assim dizia.

Ó que grande ventura o Céu te guarda!
Por esposo terás um cavalheiro
Que te ama, e te deseja. Mas ai triste!
Em vão chora infeliz o terno amante
Nessa escura prisão desconhecido
Por casos de fortuna. Criai filhos,
Ó desgraçadas mães, para que um dia
Longe de vós padeçam mil trabalhos!
Aqui suspira a boa velha, e chora.
Duas vezes começa, e depois fala.
O seu nome é Gonçalo: é rico, e nobre,
E mancebo gentil, robusto, e loiro.
Estas, e outras palavras lhe dizia,
E Dorotéia já se sente amante,
Excogitando os mais seguros meios
De abrir a porta, e dar-lhe a liberdade.
Na molesta prisão o novo engano,
De imperceptível arte pronto efeito,
Sabe o Herói, e assim consigo fala.
Ó amigo tão raro como a Fênix,
Que podendo deixar-me entre estes ferros,
Vens encher-me de alívios, e esperanças!
Valentes expressões em crespa frase,
Que ao Alívio de Tristes rouba a glória,
Pensando, felizmente ressuscita
Aquelas hiperbólicas finezas,
Que em seus escritos prodigou Gerardo.
Num pequeno papel como convinha
A triste, e desgraçado prisioneiro,
Viu Dorotéia as letras amorosas,
Que os ditos confirmaram de Marcela,
E dois grandes presuntos, que jaziam
Intactos na despensa do bom velho,
Vão levar a resposta acompanhados
Do roxo néctar, que dissipa os males.
Mensageira fiel então afirma,
Que virá Dorotéia abrir-lhe as portas
Nas horas, em que o plácido sossego
Dos cansados mortais os olhos cerra.
Gonçalo espera tímido, e confuso
Vem-lhe à memória o seu antigo afeto;
Qual leve sombra: escuta, arde, e deseja
Sentir no coração novas cadeias.

Já com a fria mão a noite escura
Entre o miúdo orvalho derramava
Papoilas soporíferas, que inspiram
O brando sono, e o doce esquecimento.
Reina o vago silêncio, que acompanha
De amor furtivo os trágicos transportes.
Gonçalo então, cansada a fantasia
Sobre os meios, e os fins de seus projetos,
Pouco a pouco se esquece, e pouco a pouco
Cerra os olhos, boceja, dorme, e sonha.
Quando voa do leito, onde deixava
Nos braços do Descanso ao Pai da Pátria
A brilhante Verdade, e lhe aparece
Numa nuvem azul bordada d’oiro.
A Deusa ocupa o meio, um lado, e outro
A severa justiça, a Paz ditosa.

Benignos Céus, enchei meus puros votos:
Fazei que esta celeste companhia,
Como do terno Avô rodeia o trono,
De seu Neto imortal orne a Coroa.

Gonçalo viu, e pondo as mãos nos olhos
Receia, e teme de encarar as luzes.
Abre os olhos, mortal, (assim lhe fala
Do claro Céu a preciosa filha)
Abre os olhos, verás como se eleva
Do meu nascente Império a nova glória.
Esses muros, que a pérfida Ignorância
Infamou temerária com seus erros,
Cobertos hão de ser em poucos dias
Com eternos sinais de meus triunfos.
Eu sou quem de intrincados labirintos
Pôs em salvo a Razão ilesa, e pura.
Eu abri aos mortais os meus tesoiros:
Fiz chegar aos seus olhos quanto esconde
No seio imenso a fértil Natureza.
Pode uma destra mão por mim guiada
Descrever o caminho dos Planetas:
O mar descobre as causas do seu fluxo:
A Terra… mas que digo? Que ciência
Não fiz tornar às margens do Mondego,
Ou dentre os braços da Latina Gente,
Ou dos belos países, cujas praias
O mar azul por toda a parte lava?
Se são firmes por mim o Estado, a Igreja,
Se é no seio da paz feliz o Povo,
Dizei-o vós, ó Ninfas do Parnaso.
Ilustres, imortais, vós que ditastes
As poderosas leis a vez primeira,
Vós, que ouvistes da lira de Mercúrio
Os úteis meios de alongar a vida.
Eu vejo renascer um Povo ilustre
Nas armas, e nas letras respeitado.
seu nome vai já de boca em boca
A tocar os limites do universo.
pacífico Rei lhe traz os dias
Dignos de Manuel, dignos de Augusto.
E tu enquanto a Pátria se levanta
Sacudindo os vestidos empoados
Coa cinza vil de um ócio entorpecido:
Enquanto corre a mocidade alegre
A colher loiros ávida de glória,
Serás o frouxo, o estúpido, o insensível?
Sacrificas o nome, a honra, a Pátria
Aos moles dias de uma vida escura?
Cego, errado mortal, vê que te enganas.
Disse: e cerrada a nuvem luminosa,
Estremece Gonçalo: foge o sono:
Por toda a parte lança incerto a vista,
Busca assustado, mas já nada encontra.
As mesmas impressões em seus sentidos
Vivas imagens pintam, e não sabe
Se então dormia, ou se inda agora sonha.
Sente a suave força da Verdade;
Mas recusa abraçá-la. Triste sorte
D’alma infeliz, que ao erro se acostuma!
Entanto sem receio o Velho dorme,

 

 

E a filha vem as sombras apalpando
Com as chaves na mão: e quantas vezes
Segue, vacila, e pára, e lhe parece
Ouvir a voz do Pai: escuta, e treme;
Move os passos, tropeça, e ao ruído
Acorda Amaro, e grita. Ela se apressa,
E torna a tropeçar. Aqui Tibúrcio
Em casos repentinos pronto, e destro
Em um lançol se embrulha, e corre ao leito,
Onde jazia o Velho espavorido,
Que cuida que vê bruxas, e fantasmas:
Então lhe diz em tom medonho. Ó filho,
Ingrato filho, que de um Pai te esqueces!
Que mal, que mal cumpriste os meus legados!
Hoje comigo irás… Ao Velho o medo
Corre as medulas dos cansados ossos:
A voz lhe falta, eriça-se o cabelo.
Entanto as portas Dorotéia abrindo
(Amor a fez intrépida) abraçava
O prometido esposo: ele se apressa,
Acorda os miserandos companheiros,
Que se alegram deixando solitárias
As vagas sombras da prisão funesta.
Passa o resto da noite entre temores
Amaro, quanto pode o prejuízo!

Apenas matizava a branca aurora
Da Tíria cor o véu açafroado,
Quando o Velho ao través da luz escassa
Viu abertas as portas. Dorotéia,
Dorotéia onde estás? Assim clamava,
E entregue à sua dor consulta os olhos
Do profeta, que pronto a pôr-se em marcha
Com rosto de candura, e de inocência
Brandamente o consola. O Céu, Amigo,
Tudo faz por melhor, e muitas vezes
Com trabalhos cruéis aos bons aflige.
Disse, e deixando ao Pai desconsolado,
Caminha na esperança de encontrar-se
Co valente esquadrão dos fugitivos.
Sol já com seus raios luminosos
Tinha roubado às folhas dos arbustos
frio gelo do noturno orvalho.
Eis à sombra de fúnebre arvoredo
Rufino, o melancólico, chorando.
Quem és, que em tua mágoa inconsolável
Pareces abalar estas montanhas?
Compassivo pergunta o Antiquário,
E depois de chorar por largo tempo,
Estas vozes o triste lhe tornava.
Eu sou aquele amante sem ventura,
Sempre extremoso, e sempre escarnecido,
Sofredor das ingratas esquivanças,
Que vi (ai dura vista!) face a face
Do tardo Desengano o feio rosto.
Ah Dorotéia, um sonho lisonjeiro
Meus dias dilatou para que agora
Te visse em outros braços, insultando
O meu fiel amor? Ó noite infausta,
Noite terrível, noite acerba, e dura!
Quanto eu fora feliz, se a tua sombra
Eternamente os olhos me cobrisse!

Tibúrcio, que já tudo penetrava,
Do caminho se informa, e dos lugares,
Por onde fora a incerta companhia,
Que em tanto risco o seu conselho espera.

Não distante se eleva antigo bosque
Horroroso por fama: já nos tempos,
Em que torrente

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