O desertor
, também conhecido como O desertor das letras,
foi escrito pelo poeta árcade Silva Alvarenga. É o primeiro poema
herói-cômico da literatura brasileira, feito em homenagem à
inauguração da estátua eqüestre de D. José
I. A construção da estátua fazia parte do projeto pombalino
para celebrar a reconstrução de Lisboa depois do desastroso terremoto
de 1755.
Publicado em 1774, O desertor faz uma crítica satírica
aos hábitos e comportamentos de parte da juventude do período,
firmando-se como um dos textos mais importantes para o estudo da ilustração
luso-americana no século XVIII. Revela o otimismo do autor em relação
à Reforma da Universidade de Coimbra como uma vitória das Luzes
e da Ciência contra a escolástica. Ressalta na intencionalidade
do autor, expressa na introdução teórica ao poema, que
ele tinha a intenção de fazer de seu poema uma arma estética
a favor da Reforma e isso se expressa na forma combativa como ele o estrutura.
É nesse poema que ficam claras as opções estéticas
do poeta. Observa-se uma afeição ao Arcadismo que tinha como princípio
a defesa da razão contra aos exageros das expressões vazias carregadas
de metáforas e paradoxos inócuos do Barroco. Como bom adepto da
Ilustração, Silva Alvarenga, em seus poemas, exalta o papel das
ciências. Caracteriza-se pelo entusiástico apoio dado ao Marquês
de Pombal pela civilização do ensino, revolucionária reforma
educacional feita na Universidade portuguesa que destituiu os jesuítas
das funções de administração e magistério
até então exercidas. Essas reformas visavam extirpar da educação
portuguesa as marcas deixadas pelo método peripatético utilizado
nas escolas da Companhia de Jesus, instituição que era, desde
meados do século XVI, a grande responsável pelo ensino português.
O desertor é um poema relativamente curto: narra, ao longo
de cinco cantos – compostos de decassílabos brancos.
Poema na íntegra:
DISCURSO SOBRE O POEMA HERÓI-CÔMICO
A imitação da Natureza, em que consiste toda a força At liquidas avium voces imitarier ore O prazer, que nos causam todas as artes imitadoras, é a mais segura Discit enim citius, meminitque libentius illud,
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CANTO I
Musas, cantai o Desertor das letras, E tu, que à sombra duma mão benigna, Quais seriam as causas, quais os meios A vós, por quem a Pátria altiva enlaça Já o invicto Marquês com régia pompa Restaurador do seu Império antigo. A soberba Ignorância entanto observa, Verei eu sepultar-se entre ruínas Toma a forma dum célebre Antiquário Gonçalo, que foi sempre desejoso
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Não tenhas do bom Tio algum receio: Convocam-se os heróis, e deliberam Dispõe-se a companhia, e se aparelha Guiomar, velha que há muito que insensível Falava; e o herói, que arrasta ainda Acaba de falar, e lhe oferece O experto Amigo, que se mostra em tudo Entanto a mãe, que já por experiência Que desgraças te esperam! foge, foge |
CANTO II
Com largo passo longe do Mondego O Sol já sobre os campos de Anfitrite Mesa de tosco pinho se povoa A feia Noite, que aborrece as luzes, Vasilha da minha alma, tu que guardas Só tu, Gonçalo, descrever puderas
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Da triste, e longa idade embranquecidos. Julgais acaso, que o saber se infunde Deixando o vosso nome assinalado Pelos muros, e portas da Estalagem? Ó néscia mocidade! é necessário Muito tempo sofrer, gastando a vista Na contínua lição, e sobre os livros Passar do frio Inverno as longas noites. E quando já tivésseis conseguido De tão bela carreira os dignos prêmios, Muito pouco sabeis, se inda vos falta Essa grande Arte de viver no mundo, Essa, que em todo o estado nos ensina A ter moderação, honra, e prudência. Eu também já na flor da mocidade Varri coa minha capa o pó da sala: Eu também fui do rancho da carqueja, Digno de fama, e digno de castigo. Era então como vós. Jamais os livros Me deveram cuidado, e me alegrava Das noturnas empresas, dos distúrbios: Os dias se passavam quase inteiros Nos jogos, nos passeios, nas intrigas, Que fomentam os ódios, e as vinganças. Por isso estou no seio da miséria: Por isso arrasto uma infeliz velhice Sem honra, sem proveito, sem abrigo. Tempo feliz da alegre mocidade! Hoje encurvado sobre a sepultura Eu choro em vão de vos haver perdido! Assim suspira, e geme, e continua: Conservai sempre firme na memória Dum velho desgraçado o triste exemplo, E aprendei a ser bons, que a vossa idade As indignas ações não justifica. Mas se vós desprezais os meus conselhos, Nunca gozeis o prêmio dos estudos: Aflições, e trabalhos vos oprimam, Enquanto o mar das índias vos espera. Então Gaspar, tomando o caso em brio, Aceso de ira com valor responde, Traça o capote, e tira pela espada. O velho grita, e foge: às suas vozes De rústicos um povo se enfurece, E toma as armas, e bradando avança. Qual nos imensos, e profundos mares O voraz Tubarão entre o cardume De argentadas Sardinhas: elas fogem, Deixam o campo, e nada lhe resiste; Assim Gonçalo, a quem já todos temem, Faz espalhar a turba, que o rodeia, E só deixa a quem foge de encontrá-lo. Gaspar, que o rosto nunca viu ao medo, Da noite a densa névoa favorece. Teme Bertoldo, que o encontre o Povo; Gonçalo assim falava, e vigilante |
CANTO III
A Fama sobre o carro transparente, Se longe da feroz barbaridade Rufino por seu mal sempre extremoso, |
A ditosa união com que ele paga O firme amor da venturosa Ulina? Vai pois, Rufino meu, que muitas vezes Muda-se a terra, e muda-se a Fortuna. Assim falando os braços lhe oferece. Ó que instante feliz, se Amor perverso, Dos últimos favores sempre avaro, Não firmasse esta sombra de ventura Sobre as asas de um sonho lisonjeiro! Desperta o triste, e desgostoso amante, Vós em mim achareis amigo, e guia: Que pode dar alguma vez socorro Um desgraçado a outro desgraçado. Duros casos de amor me conduziram A acabar nesta gruta os tristes dias; Mas hoje volto por feliz presságio A tentar noutra parte a desventura. Acaba de falar movendo os passos Pelo torcido vão das nuas pedras. Todos o seguem com trabalho imenso. Depois que largo tempo caminharam Por ásperas montanhas, aparecem Ao longe a estrada, e o lugar vizinho. Qual a nau sofredora das tormentas, Que, depois de tocar o porto amigo, Sente fugir-lhe as arenosas praias, E dos hórridos ventos açoitada Volta a lutar co pélago profundo: Assim Gonçalo, quando ver espera Tranqüilo fim de míseros trabalhos, O povo o cerca, e dos confusos gritos Soa nas costas
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CANTO IV
Tibúrcio, que nas guerras da estalagem Tem o cuidado das ferradas portas Pois tanta caridade usais comigo, Ó que grande ventura o Céu te guarda! Já com a fria mão a noite escura Benignos Céus, enchei meus puros votos: Gonçalo viu, e pondo as mãos nos olhos
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E a filha vem as sombras apalpando Apenas matizava a branca aurora Tibúrcio, que já tudo penetrava, Não distante se eleva antigo bosque |