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O fio das missangas, de Mia Couto

by Lucas Gomes

O fio das missangas, de Mia Couto, lançado em 2009, é um dos títulos mais recentes do contista e romancista moçambicano. Nos 29 contos reunidos nesta obra o autor se apropria da escrita para criar singelos pedaços de vida. Os habituais neologismos de obras como Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia agora são empregados como instrumento de interpretação. É preciso abstrair o sentido puro da palavra e mergulhar no simbolismo para sorver os muitos significados de, por exemplo, “A Saia Almarrotada”, ou “Mana Celulina, a Esferográvida”. Couto faz música com diálogos e em textos breves condensa a alma de seu país.

Nessa obra, boa parte das narrativas focaliza personagens femininas, sendo elas adultas ou não. Chama a atenção a recorrência do modo como as mulheres são tratadas pelos homens com os quais se relacionam, sejam eles companheiros, pais, irmãos ou tios; de um modo geral, o que se percebe é que as personagens femininas passam por um processo de apagamento, nas relações cotidianas com seus parceiros, o que contribui para minar a auto-estima delas. A auto-estima, por sua vez, na concepção da personagem, parece ser recuperada através do ato de narrar, ou mais especificamente, através da narrativa escrita, uma vez que, por esta via, elas manifestariam toda sua revolta e indignação em relação aos lugares que ocupam.

A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou de simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura. Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram, como já citado, com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. “Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida”, diz a narradora de uma dessas belíssimas “missangas” literárias.

A prosa poética de Mia Couto sempre é relacionada a Guimarães Rosa. O próprio Mia confirma a influência do brasileiro, mas nem precisava, pois os belos neologismos que ele cria em suas histórias e o molejo da língua portuguesa na sua terra reforçam esse vínculo. Há também semelhanças entre Mia Couto e o poeta Manoel de Barros. Moçambique está para Mia do jeito que o pantanal mato-grossense está Manoel. E ambos brincam e reconstroem o idioma de modo parecido: transformam substantivo em verbo, misturam palavras, ampliam seus significados a partir das experiências dos seus povos. O moçambicano em prosa, o brasileiro em versos.

As primeiras histórias de O fio das missangas são um tanto melancólicas. A dor e o sofrimento dos personagens estão em primeiro plano, transbordam das páginas do volume e tocam o coração de quem lê. A tristeza toma conta, assim como a certeza de que o autor é um baita contador de histórias.

O livro dá um salto no nono dos 29 contos, “A Despedideira”, a história em primeira pessoa de uma mulher que refaz a despedida do seu homem.

O conto “A saia almarrotada” narra a trajetória de opressão de uma mulher, anônima, e os mecanismos utilizados por ela em sua tentativa de libertação. Narrado em primeira pessoa, o texto atua como um testemunho da condição feminina, marginal e discriminada, assinalando a exclusão da personagem em relação ao seu grupo social.

Em “O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial” e “O novo padre”, o autor deixa bem claro de que lado ele está na luta do dia-a-dia para se fazer justiça. É para ninguém ter dúvidas de que, depois de ter participado da guerra pela independência contra Portugal, sua sensibilidade continua empenhada para melhorar as coisas no seu país.

Na história “O menino que escrevia versos”, o uso que ele faz de um dos personagens, o médico, é outro do talento narrativo desse sujeito.

No conto “Os machos lacrimosos”, a partir de uma alegre confraria de homens que bebem e se divertem num bar num local chamado Matakuane – mas que poderia ser em qualquer local do mundo -, ele põe o dedo na ferida dos valores do universo masculino. É quando se entende a razão dele tentar nos fazer chorar nos primeiros contos. Esse conto serviu de chave para abrir outra porta de sua literatura. Nesta obra Mia Couto é universal, pois suas histórias estão centradas nas dores, desejos e fantasias de todos os homens. Elas se passam em aldeias ou cidades africanas, mas poderiam acontecer em qualquer bairro de qualquer cidade de qualquer país de qualquer planeta onde exista seres humanos.

A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas.” É assim que o donjuanesco personagem do conto “O fio e as missangas” define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo – vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor, como já citado.

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