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O Mulato, de Aluísio Azevedo

by Lucas Gomes

O romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, foi publicado em 1881 e causou escândalo na sociedade maranhense, não só pela crua linguagem naturalista, mas sobretudo pelo assunto de que tratava: o preconceito racial. A obra teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte e tomado como marco do Naturalismo no Brasil.

Na época, a obra foi muito mal recebida pela sociedade maranhense e Aluísio Azevedo, que já não era visto com bons olhos, tornou-se o “Satanás da cidade”. Para se ter uma idéia da indignação causada pela obra, pode-se citar o fato de o redator do jornal A civilização ter aconselhado Aluísio a “pegar na enxada, em vez de ficar escrevendo”. O clima na cidade ficou tão ruim para o autor que ele decidiu retornar ao Rio de Janeiro.

Alguns elementos naturalistas quer estão presentes nesta obra são: a crítica social, através da sátira impiedosa dos tipos de São Luis: o comerciante rico e grosseiro, a velha beata e raivosa, o padre relaxado e assassino, e uma série de personagens que resvalam sempre para o imoral e para o grotesco; o anti-clericalismo projetado na figura do padre e depois cônego Diogo, devasso, hipócrita e assassino; a oposição ao preconceito racial que é o fulcro de toda a trama; o aspecto sexual referido expressamente em relação à natureza carnal da paixão de Ana Rosa pelo mulato Raimundo; o triunfo do mal, pois no desfecho, os crimes ficam impunes e os criminosos gratificados: a heroína acaba se casando com o assassino de Raimundo (grande amor de sua vida), e o padre Diogo, responsável por dois crimes, é promovido a cônego.

Observa-se no texto abaixo a caracterização dos costumes da província, dos mexericos e do preconceito, manifesto na maledicência de que participam D. Bibina, Lindoca, D. Maria do Carmo e Amância Souselas:

– Ele não é feio… a senhora não acha, D. Bibina?… segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo.
– Quem? O primo d’Ana Rosa?
– Primo? Eu creio que ele não é primo, dona!
– É! sustentou Bibina, quase com arrelie. É primo sim, por parte de pai!…
Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Souselas:
– Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!… negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!…
E batia no seu peito sem seios. – Muita vez a vi no relho. Iche!
– Ora quem houvera de dizer!… resmungou a outro, fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo!

Há também muitos resíduos românticos, pois foi escrito em plena efervescência da Campanha Abolicionista e o autor não manteve uma posição neutra, imparcial. Ao contrário, ele toma o partido do mulato, idealizando exageradamente Raimundo, que mais parece o herói dos romances (ingênuo, bondoso, ama platonicamente Ana Rosa e ignora a sua condição de homem de cor).

O autor descreve o ambiente da cidade de São São Luiz com muita nitidez. Observe:

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam, os vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; os folhas das árvores nem se mexiam; os carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios, e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçados, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontra vã viva alma no rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.

É nessa atmosfera abafada, tanto do ponto de vista climático quanto do convívio social, que são apresentadas as personagens. Até os cães se envolvem no ambiente de letargia preguiçosa: Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. O mal cheiro domina o ambiente: Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. A grosseria do ambiente envolve as ações das personagens: O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço (…) as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.

Observa-se que, se os cães “tinham uivos que pareciam gemidos humanos”, as peixeiras, animalizadas, têm “tetas opulentas”. Homens e animais se misturam, portanto, no universo bestializado e asfixiante de São Luís do Maranhão.

É nesse ambiente que chega a São Luís o jovem advogado Raimundo, sobrinho há muito afastado de Manuel Pescada. Raimundo corresponde perfeitamente ao protótipo do herói romântico, pelo qual Ana Rosa tanto esperava. Sua descrição em tudo contrasta com a de Luís Dias. Ambos são, no entanto, personagens planas, superficiais, e servem apenas para que o autor prove sua tese anti-racista.

Sobre o personagem Raimundo

Raimundo saíra criança de São Luís para Lisboa. “Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo, não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se no entanto de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. “Esse jovem rico e virtuoso regressa a São Luís, depois de anos na Europa, formado e com o intuito de desvendar o mistério de seu passado. Antes, passara um ano no Rio de Janeiro e agora volta a São Luís para rever seu tio e protetor distante, Manuel Pescada.

Depois do nascimento de Raimundo, José Pedro casou-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher branca e impiedosa. Enciumada com a atenção especial que José Pedro dedicava ao pequeno Raimundo e à escrava Domingas, Quitéria ordenou que a negra fosse açoitada e que suas partes genitais fossem queimadas.

José Pedro, indignado com tamanha crueldade, leva o filho para a casa do irmão em São Luís. Voltando à fazenda, flagra a mulher e o então jovem e sedutor Padre Diogo em pleno adultério. Enfurecido, José Pedro mata Quitéria e forma um pacto de cumplicidade com o Padre Diogo: esconderão a culpa um do outro. Desgraçado e doente, José Pedro refugia-se na casa do irmão. Ao se restabelecer, resolve voltar à fazenda, mas, no meio do caminho, é assassinado por ordem do Padre Diogo, que já começara a insinuar-se também na casa de Manuel Pescada.
Raimundo é bem recebido pela família do tio, com exceção da sogra de Manuel, a racista radical Dona Maria Bárbara. Estranha alguns olhares enviesados da população, mas imagina-os fruto do estranhamento causado por um forasteiro.

O sedutor advogado, como não poderia deixar de ser, logo cai nas graças de sua prima Ana Rosa que, arrebatada, declara-lhe seu amor. Raimundo corresponde à paixão da prima, mas os jovens encontram fortes obstáculos. Principalmente a oposição de Manuel Pescada, que queria a filha casada com Luís Dias, da avó Maria Bárbara, racista intransigente e do Cônego Diogo, velho amigo da casa e adversário não declarado e ardiloso de Raimundo.

Acontece que, ao contrário dos amantes, seus três grandes opositores conheciam as raízes negras de Raimundo. Aos poucos o leitor vai tomando conhecimento das origens do herói, que, no entanto, permanece ignorando tudo.

Obcecado por desvendar suas origens, Raimundo insiste em visitar a fazenda onde nascera. Após diversos adiamentos, seu tio finalmente o leva até a Fazenda São Brás. No caminho, o mulato começa a obter as primeiras informações sobre o passado trágico de seus pais. Ao pedir ao tio a mão de Ana Rosa em casamento, vê-se recusado. Perplexo, Raimundo acaba descobrindo que a recusa se deve a suas origens negras. Na fazenda, Raimundo é abordado, à noite, por uma velha negra de aspecto fantasmagórico, que o quer abraçar. Assustado, por pouco não mata a estranha aparição. No caminho de volta a São Luís, descobre que se tratava de sua mãe, Domingas.

Ao retornar à capital do Maranhão, Raimundo resolve voltar para o Rio de Janeiro. Não suporta mais viver com o tio e muda-se de sua casa, enquanto prepara-se para viajar. Pouco antes do embarque, manda uma carta a Ana Rosa confessando seu amor. O amor pela prima o impede de partir. Os amantes se encontram e Ana Rosa acaba engravidando. Contra tudo e contra todos, armam um plano de fuga. No entanto, o Cônego Diogo usa das confissões de Ana Rosa e da colaboração subserviente do caixeiro Dias, que intercepta as cartas do casal, para, ardilosamente, impedir a concretização da fuga. No momento em que planejavam partir, os amantes são surpreendidos. O Cônego Diogo orquestra o escândalo e finge-se de protetor do casal. Raimundo volta para casa atordoado e, ao abrir a porta de casa, é atingido nas costas por um tiro disparado por Luís Dias, com uma pistola que lhe emprestara o Cônego Diogo.

Ana Rosa, desolada, aborta o filho de Raimundo. “A nova firma comercial, Silva e Dias, nasceu entretanto, no meio da mais completa prosperidade.”

Desfecho irônico

Seis anos depois da morte de Ramundo, no Clube Familiar, vemos Ana Rosa e seu marido Dias saindo de uma recepção oficial:

“O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a carne esperta.
Ia toda se saracoteando muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa a dormir.
– Grand’chaine, double, serré! berravam nas salas.
O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca.
– Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!…”

A ironia final, bem a gosto naturalista, coloca por terra toda a idealização romântica de Ana Rosa e Raimundo. Morto o primo, a prima acaba por se casar com seu assassino, e parece levar, ao lado do marido que tão ferozmente rejeitara anteriormente, uma feliz e próspera vida burguesa. O mal triunfa, associado à igreja corrupta e ao comércio burguês.

Personagens principais

Raimundo – filho do irmão de Manuel Pescada, José Pedro da Silva, com sua escrava negra Domingas. A idealização própria dos romancistas românticos, a superioridade absoluta: moral, intelectual e mesmo física, observa-se na descrição deste personagem: “Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina, – dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode, estatura alta e elegante, pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuís, pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido,- as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito, vestia-se com seriedade e bom gosto; amava os artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.”

Ana Rosa – prima e noiva de Raimundo, filha de Manuel Pescada que não consentia no casamento da filha com seu sobrinho, por ser ele filho da escrava Domingas. Leitora ávida de romances, como a Emma Bovary, de Flaubert, ou a Luísa do Primo Basílio, de Eça de Queirós. Seu pai, Manuel Pescada, quer fazê-la casar-se com seu colaborador, o caixeiro Luís Dias.

Cônego Dias – assassino do pai de Raimundo.

Luís Dias – empregado de Manuel Pescada, que por instigação do cônego acabou por assassinar Raimundo. (…) era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa – havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo – enriquecer. Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas.

Manuel Pescada – um português de uns cinqüenta anos, forte, vermelho e trabalhador. Diziam-no afilado para o comércio e amigo do Brasil. Gostava da sua leitura nas horas de descanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabeça vários trechos do Camões e não lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com fanatismo o Marquês de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete Português, a qual lhe aproveitava menos a ele do que à filha, que era perdida pelo romance.

Resumo

Após a morte da filha, D. Bárbara, deixa sua fazenda para morar com o genro Manuel Pescada, próspero comerciante, e com a neta Ana Rosa, em São Luís do Maranhão. Enérgica com os escravos, D. Bárbara comanda-os aos berros e sovas, o que muito desagrada Pescada, chegando, algumas vezes, a verbalizar o seu arrependimento em ter concordado com a vinda da sogra.

O irmão de Pescada, José da Silva, fazendeiro e ex-comerciante de escravos, foi assassinado, há muitos anos atrás, em suas terras. Sua esposa, D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago já era viúva, sem filhos e muito rica, quando se casou com ele. Embora fosse extremamente religiosa, achava que escravo não era gente e o simples fato de alguém não ser branco, já era um crime. José teve um filho, Raimundo, com uma ex-escrava alforriada de nome Domingas. A atenção que o marido devotava a esse afilhado, fez com que D. Quitéria descobrisse a verdade sobre o menino.

Num ataque histérico, a chibatas e queimaduras a ferro em brasa, a senhora quase mata Domingas. Diante do ocorrido, Quitéria, aconselhada pelo jovem vigário, Padre Diogo, refugia-se na propriedade da mãe. José vai buscá-la, flagrando-a em adultério com o padre. Transtornado, a estrangula, matando-a na frente do sacerdote que, para se livrar do escândalo, sugere a José um pacto de silêncio mútuo; para todos, a esposa teve morte natural e, assim, foi enterrada.

José deixa a fazenda para Domingas e mais três pretos velhos, que já alforriara, e parte para São Luís, onde pretende liquidar seus bens e, em seguida, voltar a Portugal com o filho Raimundo. Ele e o menino hospedam-se na casa do Pescada em São Luís. Mas, logo adoece e, impossibilitado de embarcar, recebe visitas diárias de seu “fervoroso” amigo, Padre Diogo. Este vai conquistando a amizade da família e quando nasce Ana Rosa, Pescada e esposa escolhem-no para padrinho.

Tendo José se restabelecido, insiste em voltar para a fazenda, mas para o desespero de Domingas, no caminho, bem próximo da casa, é morto em uma emboscada, e Raimundo, o Mundico, sob a guarda do tio, é enviado ao padrinho em Portugal, segundo o desejo paterno.

Após estudar advocacia na Europa, onde se forma em advocacia, Mundico volta à terra natal, para vender as propriedades do pai e se estabelecer no Rio de Janeiro. Excetuando-se os imensos olhos azuis, que herdara do pai, é um tipo acabado de brasileiro: alto, elegante, pele bem morena e fina; pescoço largo e nariz direito; cabelos negros, lustrosos e crespos; dentes claros sob um bigode negro.

Interessado no lucro que teria, auxiliando o sobrinho na venda das terra, Pescada resolve acomodá-lo em sua casa, mesmo sabendo que o mulato no seio de sua família geraria comentários desfavoráveis na sociedade local. Padre Diogo, agora Cônego Diogo, conselheiro da família, concorda com o argumento de Pescada.

O Cônego, que parece ter culpa na morte de José, é, por sua vez, adversário natural de Raimundo. Sentindo-se ameaçado, por temer a descoberta de seu segredo, quer vê-lo bem longe de São Luís. Na casa do tio, Raimundo alheio às histórias envolvendo sua mãe, empenha-se em descobrir os mistérios em torno de seu nascimento e da morte paterna. Acredita que, voltando à fazenda de São Brás, será possível desvendar o passado e reconstruir sua história.

Ana Rosa herda do pai o corpo rijo e os dentes fortes e, da mãe, a beleza das formas, os olhos negros e os cabelos castanhos. Como toda donzela da época, aos quinze anos, já sente as transformações operadas em seu corpo e espírito, ansiando por um marido “o homem da sua casa, dono de seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente como amante e obedecer em segredo como escrava”.

A jovem Ana Rosa sonhava com um casamento romântico, “sonhava umas criancinhas louras, ternas, balbuciando tolices engraçadas e comovedoras, chamando-lhe “mama!””. E lembrava-se sempre do conselho que lhe dera a mãe ao leito de morte: “não consintas nunca que te casem, sem que ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a conseqüência de duas inclinações irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque casou. Se fizeres o que te digo, serás feliz!” Assim, Ana Rosa vai formando a imagem de um herói romântico que virá salvá-la da mediocridade da vida em São Luís do Maranhão.

O pai via no seu empregado português, Luís Dias, muito trabalhador, discreto, econômico e com tino comercial aguçado, as qualidades de um futuro genro. Apesar de tudo isso, o moço, com seu eterno ar de piedade, resignação e humildade espera a decisão da moça. Toda vez que o pai tocava em casamento e sugeria o nome do Dias, ela exclamava um ora, papai!

A convivência com o primo Mundico desperta em Ana Rosa uma grande paixão. Passava o dia pensando nele, idealizando o calor de seu rosto. Numa espécie de embriaguez dormia, ouvindo sua voz, colhendo no ar seus beijos quentes; ao acordar, ficava horas inteiras prostrada, entre os lençóis a cismar.

Raimundo que, por sua vez, ainda não havia reparado na beleza da prima, numa manhã à mesa do café, nota-lhe as mãos claras, os dentes asseados, a frescura pele, a boca e os cabelos fartos. Mas, fica só nisso, devotando-lhe uma afeição e atenção fraterna. Anica torna-se pálida, chamando a atenção de todos. Achavam que tal estado só se curaria com casamento. Padre Diogo e D. Bárbara, que nunca viram com bons olhos a presença do mulato no seio familiar, acham que para acertar o casamento da menina com o Dias, Raimundo deve sair de casa o mais rápido possível. Ana Rosa não quer Luís Dias para esposo e o Pescada, que punha o interesse financeiro acima de tudo, acha que o amigo Diogo estava criando coisas sem fundamento, pois fora o próprio Mundico que sugerira casamento para a prima.

Quando Raimundo saía, Ana Rosa visitava seu quarto e numa bisbilhotice, voluptuosa e doentia, fantasiava eventos com os objetos encontrados; passava momentos inesquecíveis naquela adoração. Raimundo, desconfiando dessas visitas, um dia volta sorrateiramente e flagra a prima com um livro na mão. Repreendendo-a por aquela atitude comprometedora, pede que ela se retire. Depois de muito chorar, a moça declara seu amor ao primo.Num abraço, oferece-lhe os lábios e o rapaz dá-lhe um beijo tímido; em troca, beijá-o duas vezes, ardentemente.

Depois de vários adiamentos, Raimundo e o tio partem para o Rosário e durante a viagem, Mundico conhece um portuguesinho que lhe conta muita coisa acerca da fazenda São Brás e seus moradores. Fica sabendo que o Cônego Diogo tinha sido o pároco da região e muito ligado ao pessoal da fazenda. Além disso, passam pela cruz de madeira, à beira da estrada, marcando o local da morte de seu pai. Os guias não vão além dela, temendo a maldição ali existente.

Tio e sobrinho chegam à fazenda ao anoitecer. O administrador Cancela, que conhecera Raimundo, ainda menino, hospeda-os com alegria. Na manhã seguinte, após as transações comerciais, partem bem cedo para São Brás. Ali, com muita emoção, olhando as datas nas lápides das sepulturas do pai e de D. Quitéria, Raimundo conclui que era filho bastardo.

Como no dia anterior, havia pedido Ana Rosa em casamento e Manuel declinara sem dizer a razão, acha agora que esse seria o motivo. Insiste para que o tio lhe conte a verdade, e este lhe diz que Domingas está viva, e é a velha negra louca, encontrada momentos atrás. Assim, o caso amoroso dele com a prima tornava-se proibido e Ana Rosa afigura-se-lhe uma felicidade indispensável.

Quando o pai conta a Ana Rosa o ocorrido, denigre a imagem do primo e esta tem um ataque histérico. Enquanto isso, Raimundo leva o Cônego Diogo a seu quarto e conta-lhe suas suspeitas. Mas o velho Cônego, num jogo de retórica brilhante, força Raimundo até a lhe pedir desculpas. Diogo desce as escadas entre resmungos: “Deixa estar, que me pagarás”. Sete dias depois, Raimundo deixa a casa do tio, esperando o dia da partida do vapor para o Rio.

No dia da partida, Manuel e o Cônego se dirigem ao porto para dizer-lhe adeus. Após alguns momentos de indecisão, acerca de sua viagem, Mundico, minutos antes de embarcar, vai ao quarto de Ana Rosa, que o proíbe de sair e terminam fazendo amor, ouvindo, ao longe, o assobio do vapor, partindo. Raimundo resolve instalar-se no Caminho Grande e os amantes, que se comunicam por carta, marcam um dia para a fuga.

O Cônego contava com os préstimos de Dias, com quem se aliara, e este farejava os movimentos e cartas recebidas por Anica, para contar ao padre. Após três meses, o Cônego e Dias descobrem o plano dos amantes e aparecem na hora exata, acompanhados de um juiz. Arma-se um escândalo; Ana Rosa fala de sua gravidez, chocando a todos. O cônego rebate, dizendo que a afilhada continua pura; aquilo era apenas um recurso para forçar o casamento. Diogo aconselha Raimundo a ir embora de São Luís para não ser processado.

Ao sair com Dias, o Cônego parece conspirar; entrega-lhe algo, mas o companheiro escrupuloso se nega a receber. Logo o astuto Cônego convence-o de que estaria vingando sua honra ultrajada e lembra-lhe: “quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre”. Após vagar pela noite, Raimundo resolve voltar para casa e, ao abrir a porta, é atingido pelo revólver de Dias. Mundico, num gemido, tomba contra a parede; vendo-o morto, Ana Rosa aborta. Seis anos depois, ela reaparece, em solenidade pública, bem casada com o Sr. Dias – o assassino de Raimundo. Está preocupada em cuidar dos três filhos e também do marido: “Agasalha bem o pescoço Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho”.

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