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Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum

by Lucas Gomes

Em sua novela Órfãos do Eldorado, Milton Hatoum elabora
um material ficcional no qual a semântica simbólica do cenário
é, por assim dizer, o principal esquema de estruturação
da narrativa.

A história é narrada por Arminto Cordovil que, velho e sozinho,
às margens do rio Amazonas, relata a um viajante a trajetória
de sua própria vida, que começa marcada pela morte: “Até
hoje recordo as palavras que me destruíram: Tua mãe te pariu e
morreu
”. Criado pelo pai, que parece lhe culpar pela morte da esposa,
ele mais parece um bastardo do que um filho legítimo; é, pois,
duplamente órfão. Quando herda as propriedades e a empresa do
pai, Amando Cordovil, grande capitalista que fez fortuna durante o Ciclo da
Borracha, Arminto se mostra sem capacidade e sem disposição para
administrar a herança, o que o conduz do luxo à pobreza. Seu amor
por uma índia-orfã, Dinaura, não só não se
concretiza como o faz delirar e aos poucos, o sonho se torna uma espécie
de obsessão: “passava o dia fugindo dessas coisas irreais,
absurdas, mas que pareciam tão vivas que me davam medo
”. Arminto,
então, começa a desejar ir para outro lugar, para um Paraíso:
Vou embora para outra terra, encontrar uma cidade melhor. Para onde
olho, qualquer lugar que o olhar alcança, só vejo miséria
e ruínas
”.

Arminto nasce enquanto a mãe morre, acontecimento que marca sua vida
para sempre. Ele é o pária em busca de identidade. Recriminado
pelo pai e único herdeiro da rica família Cordovil, o protagonista
é criado por Florita, espécie de segunda mãe que o familiariza
com o cotidiano dos índios que moram perto. Desde pequeno, ouve as histórias
fantásticas que habitam as margens do caudaloso rio, alimentando seus
desejos e se afastando da trajetória familiar.

A história se desenrola em largas zonas de sombra. Nos intervalos de
seu relato, Arminto dá largos goles de tarubá, cachaça
que ganhou dos índios saterés-maués. O álcool e
as distorções que provoca no espírito turvam ainda mais
sua razão. Mas nem as lendas aplacam sua dor. “O medo se intrometeu
na saudade que eu sentia de Dinaura
”, Arminto diz. Numa visita tardia
à fazenda do pai, ele entende a origem de seu mal. “Não
era o lugar que me perturbava, era a lembrança do lugar
.”

Portanto, no centro da trama tem-se a paixão louca de Arminto por Dinaura,
uma menina criada pelas freiras carmelitas e cuja história guarda um
segredo, que só ao final vai, em parte, se revelar. Paixão que,
no dizer de Florita, o deixa “com o demônio no coração”.

Quando Arminto Cordovil cruza seus olhos com os de Dinaura, reconhece que sua
vida mudaria. E mudou. Toda a novela de Milton Hatoum é a história
dessa mudança. Mas uma mudança que não consegue extirpar
o passado: ele prossegue, resiste, prolonga-se pelas artimanhas da memória.

Depois de uma noite de amor com Arminto, a moça desaparece. Sua ausência
é encoberta por lendas de mulheres que, seduzidas por botos, cobras e
sapos, foram arrastadas para uma cidade mágica, submersa no Amazonas.
A vida de Arminto se esfarela. Um desastre lhe tira o cargueiro alemão
Eldorado. A falência, o palacete branco, em Vila Bela, última herança
do pai. Traz o pensamento inchado pelo silêncio de Dinaura. “Eu
me acostumei com o silêncio e com a voz que eu só ouvia nos sonhos
.”
Resta-lhe suportar a inconstância da moça e os estragos que provocou
em seu coração.

Eternamente apaixonado pela mesma mulher, vive em sua busca, e, em cada passo
pelas trilhas errantes das matas ou cidades vizinhas, sofre com as conseqüências
das falcatruas do velado pai, homem frio e desconhecido. O desencanto provocado
pelas irrealizações o deixa à beira da loucura, mas, auxiliado
por Estiliano, melhor amigo de seu pai, o protagonista suporta as muitas perdas
e alcança a paciência proporcionada pela maturidade. Antes de morrer,
Arminto encontra forças para narrar sua inconstante história,
aludindo sutilmente ao sentimento de abandono do homem contemporâneo.

Na casa elegante em Manaus ou no palacete de Vila Bela, Amando nutre fantasias
de proprietário e armador, que seu filho único, Arminto, teima
em minar. Entre esses extremos que mal se tocam, uma galeria notável
de mulheres. Angelina, a mãe morta; Florita, o anjo da guarda morena;
Estrela, a bela sefardita e os homens de Estiliano, o advogado grego, a Denísio
Cão, o barqueiro infernal que vivem na própria pele o fausto e
os conflitos do ciclo da borracha nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial.
E, no centro de tudo, Dinaura, corpo estranho entre as órfãs das
Carmelitas em Vila Bela, moça que parece filha do mato, lê romances,
enfeitiça Arminto e sonha com a Cidade Encantada, a Eldorado submersa
de que tanto se fala à beira do rio Amazonas.

Nota-se, portanto, que Órfãos do Eldorado é inspirado
no mito amazônico da cidade encantada de Eldorado, um paraíso que
existiria no fundo de algum dos rios da região, segundo lendas locais.
Na novela de Milton Hatoum, Eldorado é também um barco da companhia
da família Cordovil que afunda e leva a firma à falência.
Os dois Eldorados – o fictício, que representa um lugar ideal, e o real,
que é uma grande tragédia material – constituem uma presença
forte na vida dos personagens, em sua busca pela felicidade. Uma busca sempre
frustrada, pois o percurso que leva ao idílio da cidade desaparecida
(representada pelo amor romântico e pela harmonia filial) exige a provação
de uma catástrofe. Arminto, em sua narrativa repleta de lacunas e pontos
obscuros, torna-se refém dessas contradições de Eldorado.

A história em que todos se enredam é a crônica de violência,
fausto e tragédia na Amazônia entre a Cabanagem e o fim do ciclo
da borracha. O que há de mais interessante no novo livro de Hatoum são
os paralelismos que se podem apreender da narrativa. A tragédia grega
de Arminto se confunde, e muito, com o fim da pujança do extrativismo
da borracha, então a nova riqueza do país, e a desilusão
de uma nação próspera, saqueada por interesseiros e corruptos
oportunistas.

Amando, o pai, enriquece com as conveniências oferecidas pela primeira
corrida da história provocada não por um minério, mas por
uma planta. Dono de uma empresa de navegação, colabora com as
tramóias de homens oportunistas enquanto distribui esperanças
à população de Vila Bela, cidade ficcional inspirada na
verdadeira Parintins. Milton Hatoum não abandona as mazelas sociais.
Ao narrar a utopia de uma elite indigna, o autor acaba retratando o desenredo
de uma sociedade. “Queria ser diferente, mas uma sombra do meu pai
estava dentro de mim, como um caroço numa fruta podre
”, diz
o protagonista.

Pela divagação psicológica, pode-se enxergar, guardadas
as devidas proporções, uma similaridade entre Arminto Cordovil
e Bentinho (Dom Casmurro). Ambos são homens velhos que recontam
seu passado. O estilo de Hatoum tem um eco machadiano: narrativa clássica,
precisa e escorreita. Mas, se fosse possível fazer uma aproximação,
Órfãos do Eldorado lembra muito Fogo morto,
saga épica e clássico de José Lins do Rego – embora o Hatoum
refute o conceito de que sua obra seja regionalista, pois ao contrário,
há, na obra, um efeito que se costuma encontrar nos grandes livros: o
movimento do particular para o universal. E essa transição do
individual para o coletivo se realiza por meio do mito.

Como personagem de fundo, o Rio Amazonas, que, com seu peso e obscuridade,
lhe serve de cosmos. E ainda a cidade de Manaus, desde os primeiros colonizadores
confundida com o Eldorado. A Amazônia é um mundo em que as palavras
fracassam. Em que elas só resistem na forma mole dos mitos.

Trechos da obra

Jurou que Dinaura estava viva, mas não no nosso mundo. Morava
na cidade encantada com regalias de rainha, mas era uma mulher infeliz.
Ele ouviu isso nas palafitas da beira de rio, nas freguesias mais distantes;
ouviu de caboclos solitários, que vivem com suas sombras e visões.
Dinaura foi atraída por um ser encantado, diziam. Era cativa de um
desses bichos terríveis que atraem mulheres para o fundo das águas.
E descreviam o lugar onde ela morava: uma cidade que brilhava de tanto ouro
e luz, com ruas e praças bonitas. A Cidade Encantada era uma lenda
antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância.

(…)

Acordei de boca aberta, respirando como um asmático. Apalpei
a camisa molhada e vi o rosto de Florita. Ouvi uns gritos de afogado e vim
te socorrer.

Quando ela falava assim, parecia adivinhar meus sonhos. Fiquei assustado
com as palavras de Florita. Medo de alguém que nos conhece. Para
disfarçar, pedi a ela que perfumasse a banheira com essência
de canela. Quando me viu na pinta e perfumado, disse que eu não devia
sair de casa.

Por quê?
Não respondeu. E eu confiei na minha intuição.
Antes das cinco, fui até a Ribanceira e fiquei encostado no tronco
da cuiarana, o lugar onde vi Amando morrer. No chão, flores arrancadas
pela ventania. Um céu que nem o desta tarde: nuvens grandes e grossas.
A rua do Matadouro, deserta. Estava tão ansioso que tremi ao ouvir
as cinco batidas do sino. Então ela apareceu sozinha, usando um vestido
branco, os braços nus.

Fonte parcial: Rafael Dias, Revista O Grito | José
Castello
, Revista Época | Márcio Rezende, Revista
Paradoxo

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