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Os cem melhores poemas brasileiros do século, de Ítalo Moriconi (Organização)

by Lucas Gomes

A antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século reúne
os versos essenciais e inesquecíveis da literatura brasileira. São
poemas rurais e urbanos, eruditos e populares, românticos, ácidos,
vibrantes, iconoclastas. A organização é de Italo Moriconi,
que, ao longo de 12 meses, garimpou os versos que marcaram gerações
e ajudam a decifrar o sentido de brasilidade.

61 poetas fazem parte da antologia que é composta de quatro partes,
organizadas cronologicamente.

Em “Abaixo os puristas” estão os poemas das
primeiras décadas, com ênfase na produção dos mestres
do modernismo.

Em seguida, “Educação sentimental”
e “O cânone brasileiro”, nas quais está
concentrada a prova de que a poesia brasileira, em seus momentos mais marcantes,
nada fica a dever a outras grandes do século, como a norte-americana,
a alemã, a portuguesa e a italiana.

“Fragmentos de um discurso vertiginoso” encerra
a seleção e distingue-se das demais por expressar mais um caráter
de aposta que de legitimação definitiva.

O abre-alas de Os cem melhores poemas brasileiros do século
é o “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond
de Andrade. Fechando a antologia, “Guardar”, de Antonio
Cicero.

Drummond é o poeta com maior número de poemas selecionados:
nove. Seguido por Cecília Meireles e Manuel Bandeira, com seis, e João
Cabral de Melo Neto, com cinco.

Drummond é o único a atravessar todas as quatro fases da coletânea.
Ele foi um poeta importante em todos os momentos e sobre todos os aspectos.
Soube se renovar.

Do ano de 1902 foram pinçados os poemas mais remotos da antologia:
“In extremis” e “A alvorada do amor”,
de Olavo Bilac.

“Esses chopes dourados”, de Jorge Wanderley, é
o poema de produção mais recente. Publicado na imprensa em 2000,
é inédito em livro.

As seleções de Ítalo permitem uma interessante visão
das gerações literárias que atravessaram esse conturbado
século recém-passado. Pode-se acompanhar, por exemplo, a trajetória
da poesia brasileira, cheia de bravura e grandeza nas décadas de 40 e
50, braços dados a grandes temas e reflexões, de Carlos Drumond
e Manuel Bandeira, até a poesia desencantada e minimalista dos anos 90.

Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Mário
de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto e Haroldo de Campos, Manuel
de Barros, Ana Cristina Cesar, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Pedro Kilkerry,
Augusto dos Anjos, Murilo Mendes, Gilka Machado, Raul Bopp, Vinicius de Moraes,
Paulo Mendes Campos, Carlos Nejar, Ferreira Gullar, Adélia Prado, Roberto
Piva, Manoel Cardoso, Torquato Neto, Zilda Mamede e Antonio Cicero estão
entre os poetas selecionados.

Poemas escolhidos

Esse punhado de ossos
(Ivan Junqueira
A Moacyr Felix)

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ai, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos choram.

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Cenário
(Cecília Meireles)

Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado,
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.

De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos.

Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.

Da brecha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes,

tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,

por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas contam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.

Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol freqüenta e a ventania gasta!

Rubras, cinéreas, tenebrosas terras
retalhadas, por grandes golpes duros,
de infatigáveis, seculares guerras…

Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus próprios assuntos inseguros.

Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelaçados
na mesma dor, quiméricos e altivos.

E assim me acenam por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na sentença dos homens e dos fados.

Cemitério das almas… – que tristeza
nutre as papoulas de tão vaga essência?
(Tudo é sombra de sombras, com certeza…

O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou conseqüência.

Vão-se as datas e as letras eruditas
na pedra e na alma, sob etéreos ventos,
em lúcidas venturas e desditas.

E são todas as coisas uns momentos
de perdulária fantasmagoria
– jogo de fugas e aparecimentos.)

Das grotas de ouro à extrema escadaria,
por asas de memória e de saudade,
com o pó do chão meu sonho confundia.

Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos tão velozes,
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes

– parado o coração por escutá-los –
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.

Isabéis, Dorotéias, Eliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas

em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília… – quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Que soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloqüência da simples despedida:
”Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece a minha vida.)

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Banho (rural)
(Zila Mamede)

De cabaça na mão, céu nos cabelos
à tarde era que a moça desertava
dos arenzés de alcova. Caminhando

um passo brando pelas roças ia
nas vingas nem tocando; reesmagava
na areia os próprios passos, tinha o rio

com margens engolidas por tabocas,
feito mais de abandono que de estrada
e muito mais de estrada que de rio

onde em cacimba e lodo se assentava
água salobre rasa. Salitroso
era o também caminho da cacimba

e mais: o salitroso era deserto.
A moça ali perdia-se, afundava-se
enchendo o vasilhame, aventurava

por longo capinzal, cantarolando:
desfibrava os cabelos, a rodilha
e seus vestidos, presos nos tapumes

velando vales, curvas e ravinas
(a rosa de seu ventre, sóis no busto)
libertas nesse banho vesperal.

Moldava-se em sabão, estremecida,
cada vez que dos ombros escorrendo
o frio d’água era carícia antiga.

Secava-se no vento, recolhia
só noite e essências, mansa carregando-as
na morna geografia de seu corpo.

Depois, voltava lentamente os rastos
em deriva à cacimba, se encontrava
nas águas: infinita, liquefeita.

Então era a moça regressava
tendo nos olhos cânticos e aromas
apreendidos no entardecer rural.

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Soneto Futebolístico
Glauco Mattoso

Machismo é futebol e amor aos pés.
São machos adorando pés de macho,
e nesse mundo mágico me acho
em meio aos fãs de algum camisa dez.

Invejo os massagistas dos Pelés
nos lúdicos momentos de relaxo,
servindo-lhes de chanca e de capacho,
levando a língua ali, do chão no rés.

É lógico que um cego como eu
não pode convocar o titular
dum time brasileiro ou europeu.

Contento-me em chupar o polegar
do pé de quem ainda não venceu
sequer a mais local preliminar.

Créditos: Editora Objetiva

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