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Três peças escolhidas, de Eduardo Campos

by Lucas Gomes

O livro Três Peças Escolhidas, do cronista e romancista Eduardo Campos,
reúne as peças Rosa do Lagamar, Morro do Ouro e A Donzela
Desprezada
. As duas primeiras foram dos maiores sucessos da Comédia Cearense,
com prêmios em festivais pelo Brasil e temporadas em cartaz. Escritas em meados
da década de 60, quando a cidade de Fortaleza começava a se expandir em bairros
cada vez mais distantes e precários, elas continuam atuais, ao trazerem à cena
dramática a questão da inclusão/exclusão social.

O estilo de Eduardo Campos é resultante de dois elementos formadores: de um lado, as aptidões artísticas
nascidas do seu temperamento, de sua personalidade interior; de outro lado, as influências das idéias
estéticas vigorantes na época e no meio em que ele manifestou e permaneceu.

Pelo seu regionalismo, podemos aproximá-lo de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, e por ter utilizado o
elemento chuva em sua obra À véspera do Dilúvio (1966), aproxima-se de Antonio Sales.

Eduardo Campos gosta de explorar o campo sensorial, no intuito de fixar bem as
imagens descritivas.

Tem preferência pela descrição, pois, conscientemente, sabe que ela possui um
apelo sensorial que permite ao observador delinear os elementos apresentados aos
poucos, isto é, lentamente pela narrativa.

Essa preferência é importante porque a apresentação dos seus personagens é feita mostrando-os em ação. E,
aos poucos, vai compondo o perfil dos caracteres psicossomáticos que os organizaram. Com exemplo, podemos
citar, o tipo do agente ferroviário, o cangaceiro ou o delegado.

Eduardo Campos utiliza-se do discurso indireto livre que serve para expressar a fala ou o pensamento das
personagens e que tem sido muito usado pelos autores contemporâneo através do narrador.

Quanto aos temas utilizados, que parecem sempre atuais, são frutos do homem contemporâneo que vive
angustiado por descobrir o estado de abandono completo em que se encontra, mesmo em relação a seus
semelhantes. Daí só lhe restar ironizar a própria sorte.

Em suas peças, procura denunciar, pela ficção, as injustiças sociais a que os personagens estão submetidos.
A exposição delas é feita de tal modo que os expectadores não podem permanecer impassíveis. Antes ficam
revoltados contra essas injustiças. Ao mesmo tempo são alertados para as táticas utilizadas pelos agentes
do poder.

A solidariedade dá o tom aos protagonistas de Eduardo Campos, nestas três peças,
onde há também uma denúncia de injustiça por parte do poder que
nada faz para minimizar a situação de desamparo das populações desprivilegiadas,
mas, ao contrário, procura alimentar-se desse estado de miséria para fortalecer-se.

O Morro do Ouro

Lá para os lados da Barra do Ceará fica o lugar conhecido desde os anos 50 como
Morro do Ouro. Era uma comunidade pobre que surgiu em torno do aterro da cidade
de Fortaleza, muito tempo antes do Jangurussu. Este é o cenário da peça
que leva o mesmo nome, que tem como protagonista a prostituta Madalena e seu amante,
o traficante do morro, Zé Valentão. É assim que ela é conhecida na zona. É uma mulher que veio do interior
e, por não ter nenhuma qualificação, só encontrou um caminho para viver: prostituindo-se.

Os personagens que compõem a peça vão aparecendo, bem caracterizados. São eles: Ezequiel, cambista, vive
do jogo do bicho, é bem humorado e tem sempre uma palavra para se sair das enroscadas, um jeito de rebater
a quem lhe destrata; o Aleijado, que pede esmola e que se recusa a ir para um asilo do governo, porque, lá, não pode pedir
esmolas, uma irônica, sarcástica e caricatural. É mais um personagem que compõe um conjunto de
necessitados; o bodegueiro Patrício, as assistentes sociais, um candidato a vereador – dr. Gervásio, entre
outros.

O drama retrata o conflito de Madalena com a chegada da mãe, beata, católica fervorosa e devota de Padre
Cícero. Ela não quer que a mãe a identifique como prostituta da zona.

A história então começa com Madalena e Zé Valentão na cama, depois de uma noite de folia. O amante
escapole antes que a polícia venha. É de manhã, e logo a favela fica animada com
a chegada de uma máquina de costura, entregue ali por ordem do candidato.

Quem também chega são algumas assistentes sociais, e nestas cenas o autor põe
à mostra o proselitismo oco, de um lado, e o tal espírito moleque do povão – picaresco
e por isso tão escancaradamente verdadeiro, real. “Veja que estou aqui, saindo
do meu conforto, para cuidar de vocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível!
(Pausa). E esse mau cheiro? É sempre assim?”, pergunta a assistente social. A
lavadeira, trouxa na cabeça, responde: “Não, não sinto não… Será esta catinguinha?
É do lixo! Todo o lixo da cidade é botado na rua”. O tensão da peça começa com a
chegada de dona Elvira, mãe de Madalena, que vem do interior e nem desconfia da
vida que a filha leva. Com a ajuda dos amigos, ela disfarça suas “atividades”.

Depois que sua mãe chega, tudo se modifica, porque, sendo devota, vai impor seu ritmo de vida aos demais
moradores, e tais moradores modificam-se, realmente.

Logo, dona Elvira inventa uma novena em plena zona do cabaré, que consegue reunir todos os moradores.
Mas ela não sabe que sua filha é prostituta, nem que o local onde mora é um cabaré. A sua inocência acaba
contagiando os moradores.

A partir da preparação da novena, os moradores vão percebendo que a mudança é benéfica para eles. Assim, o
bodegueiro, que só vendia cachaça, passa a vender refresco; o cambista (´Ezequiel´, cujo apelido é ´seu
Fortuna´), em vez de fazer as pules do jogo, vende medalhas de santos, etc. Há, portanto, uma grande
transformação no morro, e a personagem ´Elvira´, mãe de ´Madalena´, passa a ser a personagem mais
importante, a protagonista, pelo menos durante os preparativos da novena.

A escolha do nome para a protagonista, Madalena, é uma referência bíblica, a amiga de Jesus, que se
arrepende dos pecados e que passa a seguir os ensinamentos do Filho do Deus.

Os personagens estão juntos pela mesma condição de miserabilidade da favela, do lixão (como se diz hoje):
a favela é chamada ´O Morro do Ouro´ por ironia, pois lá é despejado o lixo da cidade. Portanto, são
personagens que vivem abaixo da linha da pobreza. É uma zona de risco, como se diz hoje.

Tais personagens, apesar da miserabilidade, estão unidos pela solidariedade. Mesmo com as brigas e com as
desavenças que ocorrem, eles se ajudam, afinal estão todos num mesmo miserável espaço, daí o despertar da
ajuda mútua ser quase instintivo.

As assistentes sociais, que para lá se deslocam, para ´estudar´ a vida dos miseráveis, são caricaturais, e
o que elas fazem, anotando o cotidiano dos favelados em suas cadernetas de campo é motivo de riso.

Outro personagem caricatural é o político, ´Dr. Gervásio´, que é apresentado distribuindo máquinas de
costurar, para trocar por votos. É malandro, desonesto, sem escrúpulos; há a sugestão de que ele só possui
uma máquina, e que ele faz todo o jogo de enganação, dizendo que já distribuiu centenas delas, e que,
quando for eleito, irá morar no Morro do Ouro, para ver como vive a pobreza: um discurso, portanto,
demagógico, enganador e oportunista, que se vale da miserabilidade dos moradores da favela para deles tirar
proveito.

Há um momento em que tudo muda, e em que se percebe um pequeno questionamento da protagonista.

Quando Zé Valentão sai da cadeia e procura Madalena, e vê que tudo está mudado, inclusive a própria
Madalena, que, agora, usa vestidos de manga, comporta-se como uma senhora, ele não entende o que está
ocorrendo e cobra de Madalena a antiga postura, o que ela revida dizendo que é outra, que vai mudar de
vida, mas o namorado diz que ela é a ´quenga´ dele e que deve ir dizer isso para todo mundo.

É aqui o final e a parte mais tensa da peça. Madalena, por um instante, não sabe onde está a verdade dela:
se é prostituta ou se é beata. O que decide o seu dilema é a grosseria de Zé Valentão, que rasga seu
vestido, e Madalena, desamparada, corre para a rua e vai se abraçar com a mãe. É aqui que a peça termina.

Há, portanto, um final regenerador: é a Madalena arrependida da Bíblia.

A mensagem desta peça de Eduardo Campos está muito clara na transformação de todos os personagens.

É uma peça mais linear, de poucos questionamentos, mas extremamente realista, que representa muito bem todo
o sofrimento da parcela excluída da sociedade.

Portanto, em Morro do Ouro, há a descrição da vida em uma favela de Fortaleza.
Os personagens são representantes de um universo que reflete a conseqüências da
miséria e do isolamento. A estes junta-se a ironia, que, por paradoxo, cria cenas
de humor.

Essas cenas são percebidas por ocasião da visita das assistentes sociais, já
citada, que vão ao morro fazer uma pesquisa e se escandalizam com a situação de
pobreza e acham que está decore da falta de educação. Na realidade, o autor denuncia,
através dessa peça, que os poderosos não têm a intenção de resolver os problemas,
e muitos até se beneficiam com essa situação.

A Rosa do Lagamar

Em A Rosa do Lagamar, temos outra vez a presença de mulheres determinadas, fortes, que aprenderam a
se virar sozinhas, e romperam os limites sexistas da moral e dos bons costumes sem discurso nem alarde.
Como continuam a fazer, ainda agora. Rosa é uma batalhadora. Ela saiu do Lagamar e comprou um terreninho na
Aldeota, onde montou uma birosca que serve café e refeições para os trabalhadores de uma obra em
construção. O dono do casarão quer o terreno de Rosa, ela não vende. Mas acaba perdendo tudo, porque o
documento que tem é falso. Na hora do despejo, Rosa pede para contar as telhas e caibros de sua casa, pela
última vez. “São vinte e dois caibros e 72 telhas. Só depois que eu conto é que durmo. É um velho hábito
de solidão”.

A casa de Rosa estava situada, por um desses descuidos da administração municipal,
em local onde, de futuro, se edificaria uma rua. Daquela, vê-se a sala da
frente, que é a de uma tapera sem maiores pretensões, guarnecida de móveis rústicos,
improvisados. À esquerda, além de parede divisória, avançava para a rua uma puxada
a abrigar o recinto que servia de café e restaurante aos trabalhadores de construções
do bairro que, embora o mais elegante da cidade, oferecia por vezes visível desigualdade
de existência entre os seus habitantes. Adiante, na mesma linha de visão, uma
pilha de tijolos e, de permeio a estes, material facilmente identificado como
sendo de construção. À frente da casa e do lado direito nota-se, no desenrolar
da ação, o trânsito de pessoas, como se de fato ali já se insinuasse uma rua.
Na sala da frente da casa de Rosa, que é a dona da tapera e do café ao lado, tudo
se assentando caprichosamente, demonstrando pulso forte, e também zelo, de mulher
voluntariosa. Numa das paredes vê-se o retrato do marido, o capitão Crispim,
que, saindo de Fortaleza como embarcadiço, nunca mais voltou ao lugar. Seu regresso,
posto sempre em perspectiva, é um motivo de encanto e ao mesmo tempo de turbulência
na vida de Rosa.

É madrugadinha quando se inicia a ação. Na semi-escuridão que ainda faz,
destaca-se a figura de Rosa às voltas com os seus afazeres domésticos. Há um ir
e vir no interior da casa, passando pela porta que dá acesso ao local do café,
a conduzir xícaras, bandejas e confeitos que, é a impressão, prepara naquela ocasião.

A Donzela Desprezada

A Donzela Desprezada é a história de Amelinha, uma moça sonhadora, filha da viúva zeladora da
igreja, que transa com o namorado, motorista do caminhão da entrega do gás. Ela é a candidata do partido
azul, na quermesse da igreja. Quando a mãe descobre que a filha “se perdeu”, fica maluca. Com a ajuda de um
jornalista sensacionalista e um policial corrupto, ela convence a filha a dar parte do namorado ao
delegado, para forçar o casamento. O motivo pode ter ficado, e ficou, anacrônico, mas a peça não: é arte.
A capa do livro traz um óleo sobre tela do artista plástico Nogueira, Casamento no Arraial, bem de acordo
com o colorido universo popular de Manelito Eduardo (como o dramaturgo também é conhecido).

O cenário amplo revela os diversos locais em que se desenrolam as cenas.

À esquerda, o quarto de Amelinha, personagem principal da história. Cômodo, modesto, com cama, da qual se
verá apenas o essencial, afim de que haja espaço suficiente para as posteriores marcações solicitadas.

Defronte ao espectador, tomando boa porção do palco, o sítio propriamente dito
da quermesse, com um bar de três mesas de ferro e cadeiras. Ao lado direito a
barraca ou quarto da cartomante, onde Lolita faz a leitura do baralho. Há
cerca improvisada partindo do canto esquerdo do bar, a se estender até o proscênio,
e, nela, o portão de acesso para a quermesse. Quando corre o pano, Lolita está
sentada a uma mesinha entretida com o baralho, deitando-lhe as cartas em cruz.
O bar, soturno, não começou a operar mas transcorrem preparativos para a noitada.
Soam as seis horas da tarde. O quarto de Amelinha segue no escuro, mas distinguida
aí a sua presença. Está sentada na cama, de combinação, e metida em visível prostração.
De momento a momento ergue as mãos à cabeça, como se quisesse segurá-la, enquanto
os seus movimentos não disfarçam o desespero que a acode.

No outro lado do palco, após instante, Lolita levanta-se. A uma espécie de armário de vidro vai apanhar um
vidro de remédio. Serve-se em colher de sopa. Nauseada, treme. Treme e tosse. E cessa de tossir quando
bebe a segunda dose. Nessa hora desce até a mesinha, onde estava, e retoma o trato das cartas. De repente
a luz do quarto de Amelinha… é estabelecida por Valdelice, que, do interior, veio verificar a razão do
silêncio.

Fonte parcial: Jornal O Povo | Teatro Completo de Eduardo Campos, Vol. II, UFC

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