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Verde lagarto amarelo (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Em Verde Lagarto Amarelo, escrito em 1969 e inédito até a publicação de
Antes do baile verde, o tema desenvolvido no conto está relacionado à
importância da infância e às conseqüências dos dramas infantis na vida de duas
personagens adultas.

O espaço empregado para o desenvolvimento da história é tipicamente urbano,
com o predomínio de cenas transcorridas no interior das residências das personagens.

Em Verde Lagarto Amarelo o tempo da história abrange um período de algumas horas.

O título do conto não fornece pistas ao leitor sobre o tema que será
desenvolvido na narrativa. É transmitida apenas uma breve sensação de
ambigüidade, pela citação de duas cores, verde e amarelo. Afinal, de que cor é
o lagarto? O título talvez tenha sido escolhido com a intenção de despertar a
curiosidade do leitor: apenas por seu intermédio não é possível a formação de
um projeto virtual sobre o conto.

A narrativa é subjetiva, pois existe no discurso a presença de um “eu”,
Rodolfo, o narrador autodiegético. O texto tem início com a utilização de
discurso avaliativo, pelo narrador, para caracterizar a outra personagem,
Eduardo. Os adjetivos empregados para se referir à maneira do rapaz andar
são positivos, o passo é “macio”, o andar é “discreto”, “polido” (p. 8).
E completa: “não chegava a ser felino” (p. 8). Esse esclarecimento feito
pelo narrador parece servir para reforçar a impressão positiva sobre
Eduardo. Assim, se ele anda sem fazer ruído, é com a intenção de não
incomodar, e não para surpreender Rodolfo sorrateiramente, como faz um
felino ao caçar uma presa.

Na sexta linha do conto, observa-se o emprego do discurso objetivo, “Ele
sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho” (p. 8).
A opção do narrador pelo verbo “saber”, é significativa, pois o saber é
inquestionável, faz parte de um discurso de autoridade. Na mesma frase
verifica-se o advérbio “sempre”, que caracteriza o discurso iterativo,
demonstrando para o leitor que a situação de Rodolfo não se altera com
o passar do tempo, a solidão da personagem é permanente.

A narrativa tem focalização interna, o que quer dizer que o grau de
informações do narrador é igual ao da personagem, ou seja, será narrado
aquilo que a personagem sabe. A focalização é fixa – o leitor tem acesso
aos pensamentos e sentimentos de Rodolfo. A outra personagem é focalizada,
externamente, pelo narrador. É por meio do monólogo interior de Rodolfo
que o leitor recebe informações sobre Eduardo. Assim, percebe-se que Eduardo
é perspicaz, “Nada lhe escapava” (p. 8), bondoso, “Acabava sempre por me
oferecer seu tesouro” (p. 9), preocupado com o bem-estar de Rodolfo, “Dizia
isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar” (p. 9). Pode-se,
ainda, observar o emprego do advérbio, novamente a utilização do discurso
iterativo, reforçando para o leitor que o comportamento de Eduardo em relação
a Rodolfo é constante, previsível, conhecido.

Com o sorriso de Eduardo (pág. 9), têm início as recordações da infância, para
Rodolfo. E o leitor recebe a informação que Eduardo é irmão de Rodolfo. A partir
desse momento, o conto passa a ser construído com a intercalação de trechos que
representam o passado das personagens, com outros que se situam no momento
presente da narrativa, na cena que se desenvolve no apartamento de Rodolfo. O
passado é composto por recordações da infância, nas quais Rodolfo faz conjeturas
sobre o próprio comportamento e o dos outros membros da família, especialmente
o do irmão e o da mãe. O presente é construído por meio dos diálogos entre as
duas personagens, estratégia que proporciona ao leitor a sensação de
contemporaneidade.

O diálogo entre os irmãos transcorre normalmente, com a evocação das qualidades
de Eduardo por parte do narrador. A começar pela aparência. O leitor recebe a
informação de que Eduardo é um homem bonito – tem “o cabelo louro, a pele
bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor de violeta” (p. 9);
“os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Além disso,
preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso. Pela forma como Eduardo é
apresentado, percebe-se que existe um engajamento afetivo do narrador em relação
a essa personagem e que, aparentemente, o narrador procura fazer com que o leitor
sinta simpatia por Eduardo.

Entretanto, a partir do trecho citado a seguir, o drama de Rodolfo passa a ser
apresentado para o leitor:

Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia
amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até
quando, até quando?!… E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim
foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir
aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada!…
(Telles, 1982, p. 10)

A ambigüidade presente no título do conto volta, agora, a aparecer. A surpresa
e a curiosidade do leitor são desencadeadas pelo desabafo do narrador-personagem,
feito por meio do emprego do monólogo interior. O que terá acontecido na infância
para deixá-lo assim, sufocado, pela presença de um irmão que ele mesmo apresentou
ao leitor como uma pessoa boa e sensível? As indagações presentes no discurso do
narrador-personagem estão dirigidas a si próprio ou ao narratário? Essas perguntas
podem servir como lacunas a serem preenchidas pelo leitor. Entretanto, até o
momento em que aparecem na narrativa, o leitor não possui elementos suficientes
para responder aos questionamentos lançados pelo narrador.

O leitor acompanha o drama de Rodolfo, que desde criança esconde-se da vida
como “um lagarto no vão do muro” (p. 14), daí o título do conto. Parecendo-se
com um jacaré em miniatura e tendo a cabeça semelhante à das serpentes, o
lagarto possui aspecto assustador, o que faz com que grande parte das pessoas
mantenha distância desse animal.

Entretanto, é inofensivo. Rodolfo identifica-se com o réptil. Possui aspecto
desagradável e uma sudorese excessiva, que mancha “a camisa de amarelo com uma
borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão” (p. 11). A
camisa, molhada e manchada, “era uma pele enrugada aderindo à minha com meu
cheiro, com a minha cor” (p. 11), o suor em excesso provocava a metamorfose
metafórica de Rodolfo em lagarto.

Rodolfo afirma ser “um tipo meio esquisito”, “meio louco” (p. 12) o que parece ser
uma máscara que utiliza para esconder a tristeza que sente, a amargura que traz dentro de
si. Eduardo é diametralmente oposto ao irmão. A começar pela aparência. É um homem
bonito, tem “o cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua” (p. 9); “olhos cor
de violeta” (p. 9); “os braços musculosos de nadador. Os pêlos dourados” (p. 10). Eduardo
preocupa-se com o irmão, é sincero e generoso.

Além de Rodolfo ser o narrador, é também seu o ponto de vista que orienta a
perspectiva narrativa. Assim, as informações que o leitor recebe correspondem à imagem
que ele tem de si mesmo e das outras personagens. A cada detalhe fornecido, percebe-se
que Eduardo só possui qualidades, enquanto Rodolfo só tem defeitos. Parece que o narrador
deseja, dessa maneira, promover a simpatia e a aversão do leitor pelas personagens citadas,
respectivamente.

Ao visitar o irmão, Eduardo traz um pacote de uvas e uma outra “coisa”, uma
“surpresa”, que ele só quer mostrar “depois” (p. 9). Esse é um índice de antecipação de
desfecho, uma prolepse implícita.

Ao experimentar a uva, Rodolfo faz uma digressão, em discurso indireto livre.
Nesse trecho, reproduzido a seguir, a metalinguagem é utilizada, o escritor reflete a respeito
do processo de criação literária:

(…) Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa,
sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente
apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a
semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente
resguardada lá no fundo como um feto.
(Telles, 1982, p. 9)

Durante a visita de Eduardo a Rodolfo, os dois conversam sobre trivialidades e
relembram o passado, o que, para Rodolfo, é uma verdadeira tortura. A presença do irmão
incomoda Rodolfo, principalmente por trazer de volta as lembranças dolorosas da infância,
“será que ele não vê que para mim foi só sofrimento?” (p. 10). Eduardo era perfeito e a
convivência com ele fez de Rodolfo um perdedor. Tudo o que Rodolfo quis na vida,
Eduardo conquistou, foi assim com o amor da mãe, foi assim com Ofélia. Aparentemente,
os acontecimentos se deram de modo natural, sem maldade por parte de Eduardo, o que
não diminui a frustração de Rodolfo.

Aos poucos, a relação dos irmãos vai sendo exposta para o leitor. Ser obrigado a
conviver com Eduardo é o pior castigo para Rodolfo. Ter que encarar o que poderia ser,
mas que nunca alcançará. É um lagarto que observa com inveja um pássaro de plumagem
colorida. As escamas nunca se transformarão em penas. O bicho está condenado a rastejar
até o fim dos dias, nunca conseguirá voar. Não será olhado com admiração pelos outros,
não será desejado, não será amado.

Eduardo machuca o irmão sem perceber. Convida-o para ser o padrinho de seu
filho, que nascerá em breve, mas ao invés de Rodolfo ficar feliz, esse gesto só serve para
aumentar o desespero. “Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de
vomitar” (p. 13). Depois da angústia, a ironia: “Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era
ser amável? Um casal amabilíssimo” (p. 13). Rodolfo não queria um prêmio de consolação.
Queria estar no lugar de Eduardo. Queria ser Eduardo.

A competição desigual que Rodolfo enfrenta desde o nascimento de Eduardo tornase
ainda pior porque o irmão o ama. “Desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno
amor” (p. 14), lamenta Rodolfo. O que deseja é que o irmão desapareça de sua vida: “Não
precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse”
(p. 13). Eduardo tem a função de espelho para Rodolfo, é a partir da imagem do irmão que
Rodolfo toma consciência da própria identidade. Olhando para as plumas do pássaro é que
o lagarto percebe que as escamas que possui não são belas; tocando-as, perceberá que a
pele é áspera. Conviver com os próprios defeitos e deficiências não é fácil. Mas, torna-se
insuportável se, além disso, é necessário agüentar o sucesso do outro, assim tão próximo.

A consciência da diferença sufoca Rodolfo. Para resolver o problema, pensa em
morrer, “Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar
mais” (p. 11). Posteriormente, acredita que a solução seria a morte de Eduardo. Mas não
tem a coragem de Caim. Apenas consegue torcer para que Júlio, um menino que desafia
Eduardo para uma briga, o atinja mortalmente com o canivete, durante uma briga.
Entretanto, arrepende-se: “E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o
canivete não!” (p. 15). Talvez Rodolfo tenha percebido que a morte de Eduardo não seria a
solução para o seu problema. A ausência do irmão não faria com que ele, Rodolfo,
ganhasse o amor e a admiração dos outros, instantaneamente. Depois da briga, Rodolfo
carrega o irmão machucado nas costas, de volta para casa. Eduardo era um peso imenso
para Rodolfo. Mas, se a situação era ruim com a presença dele, talvez só piorasse com a sua
morte. Afinal, pelo menos Eduardo amava Rodolfo.

A convivência sufocante com Eduardo faz com que Rodolfo se torne cada vez mais
introspectivo. Rejeitado pela mãe, acumulando anos de raiva e frustração, conscientizandose
de sua aparência repugnante, o que resta a Rodolfo é esconder-se, isolar-se do convívio
social, transformar-se num eremita urbano. E adotar a função solitária de escritor – “Era o
que me restara: escrever” (p. 16). Rodolfo é um escritor bem-sucedido. Seus livros vendem
muito mas, apesar disso, não se sente completamente satisfeito. “Escritor, sim, mas nem
aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um
escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra o seu caminho” (p. 14).

Chega-se ao clímax do conto. Rodolfo adivinha o motivo da visita do irmão. O
impacto da descoberta faz com que ele sinta uma dor “quase física” (p. 16). A única coisa
que era verdadeiramente sua, o único talento que sobrara para Rodolfo, seu único canal
para se expressar e conseguir um pouco de admiração, era o ato de escrever, agora também
“roubado” por Eduardo. A surpresa e a decepção são grandes demais. “Senti meu coração
se fechar como uma concha” (p. 16). Eduardo tornar-se escritor, o que é sugerido pelo
conto, cujo final permanece em aberto, sem a confirmação de Eduardo – é o golpe de
misericórdia na tentativa de Rodolfo de manter a compostura.

A intertextualidade está presente no conto em pelo menos dois momentos distintos.
Primeiramente, como já mencionada, com o drama entre os irmãos Abel e Caim, descrito
na Bíblia. Caim sente inveja do outro, que é o predileto do Senhor, e a ira cresce a tal
ponto que o leva a assassinar Abel. A intertextualidade é bastante explícita, podendo ser
confirmada, inclusive, pela comparação do trecho bíblico no qual Deus pergunta a Caim:
“Onde está teu irmão Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda de meu
irmão?” (Dalbosco, 1980, p. 29), com a parte do conto em que a mãe interroga Rodolfo,
“‘(…) onde está seu irmão?’ Encolhi os ombros, não sei, não sou pajem dele.” (p. 15).

A segunda intertextualidade, também bastante explícita, está presente na fala do pai
dos rapazes: “Laura é como o rei daquela história (…) Só que, ao invés de transformar tudo
em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza” (p. 14). A comparação é com
o rei Midas, figura da mitologia greco-romana, que transformava em ouro tudo o que
tocava. Nesse momento do conto, Rodolfo aproxima-se da mãe, ficando ao alcance das
mãos; quer ser tocado pela mulher “com um pouco de amor” (p. 14), possivelmente
acredite que esse toque terá o poder de transformá-lo.

Além do relacionamento de amor e ódio existente entre os dois irmãos, outro
aspecto importante de Verde Lagarto Amarelo é a relação entre a mãe e os filhos. Laura
não consegue disfarçar a predileção que sente pelo caçula, o que se torna a principal causa
do sofrimento de Rodolfo. A mãe não se conforma com o fato de Rodolfo transpirar tanto,
critica-o por estar sempre comendo. Não consegue ter um gesto de amor para com o
primogênito. O comportamento de Laura, aliado à sua morte, ainda na infância dos
meninos, tem reflexos negativos em toda a vida de Rodolfo.

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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