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Agricultura: 1. Reforma Agrária

by Lucas Gomes

A importância da reforma agrária para o futuro do país

A má distribuição de terra no Brasil tem razões históricas, e a luta pela reforma agrária envolve aspectos econômicos, políticos e sociais. A questão fundiária atinge os interesses de um quarto da população brasileira que tira seu sustento do campo, entre grandes e pequenos agricultores, pecuaristas, trabalhadores rurais e os sem-terra. Montar uma nova estrutura fundiária que seja socialmente justa e economicamente viável é dos maiores desafios do Brasil. Na opinião de alguns estudiosos, a questão agrária está para a República assim como a escravidão estava para a Monarquia. De certa forma, o país se libertou quando tornou livre os escravos. Quando não precisar mais discutir a propriedade da terra, terá alcançado nova libertação.

Com seu privilégio territorial, o Brasil jamais deveria ter o campo conflagrado. Existem mais de 371 milhões de hectares prontos para a agricultura no país, uma área enorme, que equivale aos territórios de Argentina, França, Alemanha e Uruguai somados. Mas só uma porção relativamente pequena dessa terra tem algum tipo de plantação. Cerca da metade destina-se à criação de gado. O que sobra é o que os especialistas chamam de terra ociosa. Nela não se produz 1 litro de leite, uma saca de soja, 1 quilo de batata ou um cacho de uva. Por trás de tanta terra à toa esconde-se outro problema agrário brasileiro. Até a década passada, quase metade da terra cultivável ainda estava nas mãos de 1% dos fazendeiros, enquanto uma parcela ínfima, menos de 3%, pertencia a 3,1 milhões de produtores rurais.

“O problema agrário no país está na concentração de terra, uma das mais altas do mundo, e no latifúndio que nada produz”, afirma o professor José Vicente Tavares dos Santos, pró-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em comparação com os vizinhos latino-americanos, o Brasil é um campeão em concentração de terra. Não sai da liderança nem se comparado com países onde a questão é explosiva, como Índia ou Paquistão. Juntando tanta terra na mão de poucos e vastas extensões improdutivas, o Brasil montou o cenário próprio para atear fogo ao campo. É aí que nascem os conflitos, que nos últimos vinte anos fizeram centenas de mortos.

O problema agrário brasileiro começou em 1850, quando acabou o tráfico de escravos e o Império, sob pressão dos fazendeiros, resolveu mudar o regime de propriedade. Até então, ocupava-se a terra e pedia-se ao imperador um título de posse. Dali em diante, com a ameaça de os escravos virarem proprietários rurais, deixando de se constituir num quintal de mão-de-obra quase gratuita, o regime passou a ser o da compra, e não mais de posse.”Enquanto o trabalho era escravo, a terra era livre. Quando o trabalho ficou livre, a terra virou escrava”, diz o professor José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo. Na época, os Estados Unidos também discutiam a propriedade da terra. Só que fizeram exatamente o inverso. Em vez de impedir o acesso à terra, abriram o oeste do país para quem quisesse ocupá-lo – só ficavam excluídos os senhores de escravos do sul. Assim, criou-se uma potência agrícola, um mercado consumidor e uma cultura mais democrática, pois fundada numa sociedade de milhões de proprietários.

Com pequenas variações, em países da Europa, Ásia e América do Norte impera a propriedade familiar, aquela em que pais e filhos pegam na enxada de sol a sol e raramente usam assalariados. Sua produção é suficiente para o sustento da família e o que sobra, em geral, é vendido para uma grande empresa agrícola comprometida com a compra dos seus produtos. No Brasil, o que há de mais parecido com isso são os produtores de uva do Rio Grande do Sul, que vendem sua produção para as vinícolas do norte do Estado. Em Santa Catarina, os aviários são de pequenos proprietários. Têm o suficiente para sustentar a família e vendem sua produção para grandes empresas, como Perdigão e Sadia. As pequenas propriedades são tão produtivas que, no Brasil todo, boa parte dos alimentos vêm dessa gente que possui até 10 hectares de terra. Dos donos de mais de 1.000 hectares, sai uma parte relativamente pequena do que se come. Ou seja: eles produzem menos, embora tenham 100 vezes mais terra.

Ainda que os pequenos proprietários não conseguissem produzir para o mercado, mas apenas o suficiente para seu sustento, já seria uma saída pelo menos para a miséria urbana. “Até ser um Jeca Tatu é melhor do que viver na favela”, diz o professor Martins. Além disso, os assentamentos podem ser uma solução para a tremenda migração que existe no país. Qualquer fluxo migratório tem, por trás, um problema agrário. Há os mais evidentes, como os gaúchos que foram para Rondônia na década de 70 ou os nordestinos que buscam emprego em São Paulo. Há os mais invisíveis, como no interior paulista, na região de Ribeirão Preto, a chamada Califórnia brasileira, onde 50.000 bóias-frias trabalham no corte de cana das usinas de álcool e açúçar durante nove meses. Nos outros três meses, voltam para a sua região de origem – a maioria vem do paupérrimo Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais.

A política de assentamento não é uma alternativa barata. O governo gasta até 30.000 reais com cada família que ganha um pedaço de terra. A criação de um emprego no comércio custa 40.000 reais. Na indústria, 80.000. Só que esses gastos são da iniciativa privada, enquanto, no campo, teriam de vir do governo. É investimento estatal puro, mesmo que o retorno, no caso, seja alto. De cada 30.000 reais investidos, estima-se que 23.000 voltem a seus cofres após alguns anos, na forma de impostos e mesmo de pagamentos de empréstimos adiantados. Para promover a reforma agrária em larga escala, é preciso dinheiro que não acaba mais. Seria errado, contudo, em nome da impossibilidade de fazer o máximo, recusar-se a fazer até o mínimo. O preço dessa recusa está aí, à vista de todos: a urbanização selvagem, a criminalidade em alta, a degradação das grandes cidades.

No exterior, problema resolvido

“Foi então, pela primeira vez, promulgada a lei agrária, que, desde aquela época até hoje, nunca mais foi discutida sem provocar as mais violentas emoções”, escreveu o historiador romano Tito Lívio, quase 2.000 anos atrás, sobre um episódio ainda mais antigo, a redistribuição de terras ordenada pelo tribuno Caio Graco um século antes. Se Tito Lívio, que morreu há 1.980 anos, soa tão atual é porque a reforma agrária nunca foi discutida sem provocar violentas emoções. Reforma agrária não é simples instrumento para dar terra aos sem-terra. Como desafia o direito de propriedade e chacoalha a estrutura de poder, carrega consigo o espírito de uma autêntica revolução social. Mais de quarenta países experimentaram projetos de redistribuição da posse da terra neste século – e nenhum deles permaneceu o mesmo depois disso.

Caio Graco pagou com a vida a ousadia de desapropriar os latifúndios patrícios. No final do século XVIII, a Revolução Francesa implodiu as relações de trabalho no campo, abolindo a servidão rural. Meio século depois, os Estados Unidos moldaram o destino do país ao distribuir de forma igualitária a terra pública. Apesar dessas marcantes experiências do passado, a reforma agrária, do jeito que hoje se pratica, é um fenômeno inteiramente moderno. A ordem estabelecida no campo foi virada de cabeça para baixo pela primeira vez em 1910, com a Revolução Mexicana, ao preço de 1 milhão de mortos. À frente de um exército de camponeses, Emiliano Zapata distribuiu terras na marra e, como Caio Graco, acabou assassinado. A semente plantada na revolução demorou duas décadas para germinar. Mas nos anos 30 o México entregou 70 milhões de hectares de áreas agrícolas a 3 milhões de lavradores, realizando uma das maiores redistribuições de terra da História.

Sete anos depois da Revolução Mexicana, os comunistas russos aboliram a propriedade privada da terra com um decreto assinado no dia seguinte à tomada do poder. O abismo ideológico entre as duas experiências pioneiras marcou, dali para diante, a história das mudanças nesse âmbito. O México tomou a terra de grandes fazendeiros e a distribuiu entre vários, menores, multiplicando o número de proprietários. A União Soviética expropriou a terra de todos em benefício de um único grande patrão, o Estado, o nome verdadeiro da “propriedade do povo”. Os dois modelos foram amplamente copiados, quase sempre misturados e adaptados às circunstâncias específicas de cada país. Bandeiras vermelhas e camponeses em armas, contudo, tão marcantes nas duas reformas pioneiras, raramente voltaram à cena. A reforma agrária é quase sempre iniciativa de governos às voltas com crises, que precisam resolver ou amainar. Algumas foram impostas por exércitos de ocupação, como fizeram o Exército Vermelho na Europa Oriental e os Estados Unidos no Japão e na Coréia do Sul.

O objetivo básico das reformas em países não comunistas é melhorar a vida do homem do campo e redistribuir a renda a seu favor. Depois da II Guerra, percebeu-se também que se tinha ali um excelente instrumento para dar à agricultura um papel estratégico no desenvolvimento dos países pobres. São dos anos 40 e 50 as quatro grandes experiências em países de economia de mercado – Japão, Taiwan, Coréia do Sul e Egito -, com decisiva influência nas que vieram depois. Como os três primeiros se transformaram em potências econômicas, suas experiências servem como vitrine. Comparadas à coletivização forçada na União Soviética, a grande experiência socialista nos anos 30, que custou 6 milhões de mortos e resultou numa agricultura até hoje ineficiente, as reformas asiáticas são mesmo de dar água na boca.

No final da II Guerra, os três países tinham em comum a enorme concentração da posse da terra e a economia destroçada. Cerca de 70% do solo agrícola japonês era cultivado por arrendatários – os kosakus -, que entregavam aos proprietários ausentes metade da produção. No comando das forças de ocupação americanas e, como tal, imperador de fato, o general Douglas MacArthur simplesmente exigiu uma reforma agrária em 1946. O governo japonês tentou safar-se propondo o teto de 5 hectares para as propriedades rurais – artifício que, visto o tamanho nanico do latifúndio japonês, limitaria a reforma a somente 20% das terras. MacArthur, que tinha entre seus objetivos aniquilar o poder político dos latifundiários, um dos pilares do militarismo japonês, impôs 1 hectare, o tamanho de uma chácara de fim de semana no Brasil.

O terreno excedente foi desapropriado a preço vil e revendido aos agricultores com financiamento camarada. Toda essa revolução, que entregou lotes a 4 milhões de famílias e acabou com os resquícios de feudalismo na estrutura social, demorou apenas 21 meses. “Ao incorporar os kosakus ao processo político, a reforma foi fundamental para a modernização do país”, diz Ikutsune Adachi, diretor do Centro de Pesquisas Sociais em Agronomia, em Tóquio. Do ponto de vista macroeconômico, a contribuição foi bem menor. O minifúndio japonês, nascido da reforma de 1946, depende ainda hoje para sobreviver de gordíssimos subsídios estatais e produz o arroz mais caro do mundo. É mais negócio, porém, pagar para manter o agricultor no campo do que lhe dar emprego na cidade.

A ironia é que essas grandes transformações foram obras de governos profundamente anticomunistas. Expulso da China continental pela vitória comunista, o generalíssimo Chiang Kai-chek reproduziu o modelo japonês em Taiwan. A inovação local foi a indenização parcialmente paga em ações, convertendo os antigos latifundiários em sócios da industrialização do país. O resultado social foi de tirar o chapéu: em 1952 a reforma agrária tinha transferido aos agricultores o equivalente a 13% do PIB, pacificando o campo e criando uma nova classe de consumidores.

A situação sul-coreana era agravada pela falta de espaço (só 4% do território é cultivável), pela má distribuição da posse e pela guerra, que continuou devastando o país até 1953. O governo anunciou regras tão severas que a maioria dos proprietários, temendo o calote das indenizações, se apressou em vender a terra diretamente ao arrendatário. O impacto na distribuição de renda foi superior ao ocorrido no Japão e em Taiwan e garantiu a comida barata de que o país precisava para se transformar numa potência econômica.

De forma muito parecida com a Coréia do Sul, só 4% do solo egípcio era aproveitável para a agricultura. A maior parte dessa terra estava nas mãos de uma classe de 12.000 proprietários. Dez milhões de felás – os camponeses e arrendatários do Vale do Nilo – penavam sob aluguéis exorbitantes, que chegavam a 75% da produção. Seis semanas depois de derrubar a monarquia, em 1952, Gamal Abdel Nasser acabou com as grandes propriedades. Cerca de 1,7 milhão de egípcios receberam lotes com tamanho médio de 1 hectare cada um. Em quantidade de terra e número de beneficiados, foi a maior reforma agrária dos anos 50. O resultado, contudo, nem se compara ao dos países asiáticos. O regime detonou o poder dos latifundiários – mas os felás continuam miseráveis como sempre.

O pós-guerra foi também o período em que a União Soviética impôs seu modelo agrícola à Europa Oriental, ainda que a maioria dos países tenha conservado algum tipo de pequena propriedade individual. A China fez a maior revolução camponesa de todos os tempos e, no início dos 60, Cuba implantou a versão caribenha da agricultura coletiva. Diante do avanço comunista, a reforma agrária ganhou impulso, também, como ferramenta da Guerra Fria. Na periferia latino-americana, governos de alguma inclinação esquerdista produziram suas próprias reformas. No Peru e na Bolívia, com grandes populações indígenas, a redistribuição de terras aliviou injustiças mas pouco contribuiu para aumentar a produção ou amenizar a miséria. No Chile, o processo foi peculiar. A reforma, iniciada pela Democracia Cristã e ampliada pelo socialista Salvador Allende, obviamente tropeçou com o golpe militar. A ditadura, porém, não devolveu a terra à velha oligarquia rural. Os lotes, de tamanho reduzido, foram comprados por capitalistas urbanos, que modernizaram a produção e iniciaram o modelo moderno de exportação de alimentos, principalmente frutas.

A reforma agrária saiu da agenda dos países a partir dos anos 70. Ou já tinha sido feita, com resultados variados, ou não era mais necessária como fator de desenvolvimento. “Até os anos 60, ela era fundamental para a modernização. Depois, a produtividade da agricultura moderna mostrou-se capaz de garantir o abastecimento sem outra revolução que a tecnológica”, analisa o professor Bastiaan Reydon, do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp. “Como a própria agricultura perdeu importância na economia global, a reforma agrária reduziu-se a uma questão de justiça social.” Os teóricos do desenvolvimento, que também saíram de moda, agora mudaram de enfoque e temem que a fragmentação do solo agrícola em propriedades menores prejudique a escala da produção.

“Reforma agrária dá certo quando se consegue o que se queria, seja aumentar a produção de alimentos, seja resolver problemas sociais graves”, ensina o professor José Eli da Veiga, da Faculdade de Economia da USP. “A História mostra que isso só acontece naquelas realizadas rapidamente, de um a três anos no máximo. Quando entrava, é porque a sociedade não está preparada e a reforma está condenada ao fracasso.” Mudanças radicais na posse da terra não são garantia absoluta de benefício econômico. Muitas vezes, nem mesmo de justiça social. A agricultura soviética oferecia condições de vida tão ruins que, para impedir a migração para a cidade, o governo negou passaporte interno aos membros das fazendas coletivas até 1974. O fim do comunismo não mudou muito as coisas, exceto pelo fato de que agora os agricultores podem largar o campo. Por falta de interessados em se tornar proprietários, o Estado continua dono de 95% da terra.

No México, onde tudo começou, a reforma agrária agoniza. O ejido, a propriedade comunal explorada individualmente, segundo a tradição indígena, viveu anos de relativa prosperidade entre 1940 e 1965, mas retrocedeu diante da produtividade crescente das modernas empresas rurais. Sessenta anos depois da revolução, o México está de volta ao ponto de partida. Em Chiapas, no extremo sul, alçou-se o exército de camponeses que reivindica a estirpe zapatista. Na terra onde nasceu, a reforma agrária produziu um paradoxo dramático: transformou uma imensa massa de sem-terra numa imensa massa de pequenos proprietários sem perspectivas. É o que de mais parecido existe com o Brasil.

Brasil – Parado por 500 anos

Em 500 anos de História, o Brasil nunca dividiu a terra. É o único país de extensão continental, em todo o mundo, com estrutura fundiária semelhante à da sua fundação. O primeiro regime de propriedade, o das sesmarias, durou três séculos e dividia as doze capitanias hereditárias em extensões maiores que Fortaleza e Belo Horizonte juntas. Em 1822, às vésperas da Independência, foi revogada a legislação das sesmarias, e o Brasil ficou quase trinta anos sem nenhuma lei sobre a propriedade rural. De 1850 para cá, pouco se mexeu na estrutura da terra no país – apesar do fim do tráfico de escravos, da abolição, da proclamação da República, da Revolução de 30, do golpe de 64 e da Nova República. Em toda a História do Brasil houve agitações no campo, luta pela divisão das fazendas e até zonas liberadas, como os quilombos. Mas, só neste século, nos anos 20, o movimento tenentista agitou a bandeira da reforma agrária, tal como é concebida hoje. A agitação voltou nos anos 60, com o movimento pelas reformas de base do presidente João Goulart, foi derrotada pelos militares em 1964 e ressurgiu com as ocupações de fazendas pelos sem-terra. E, grosso modo, em termos de propriedade rural, o Brasil continuou o país do latifúndio, das vastas extensões de terra pouco produtiva e do minifúndio nordestino pobre e tacanho.

Gabinetes liberais e conservadores, no Império e na República, fosse o presidente Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Figueiredo ou José Sarney – os governos brasileiros primaram por deixar a terra dormindo em berço esplêndido. Com as caravelas de Pedro Álvares Cabral, desembarcou no Brasil uma política de terras – a lei de sesmarias – que não tinha nenhum parentesco com a realidade da colônia. Criada em 1375 por dom Fernando, então rei de Portugal, a lei foi pensada para povoar o interior de Portugal. Lá, as sesmarias funcionaram, tanto que conseguiram alimentar o país. Mas, aqui, numa terra dezenas de vezes maior, o mesmo regime dificilmente poderia dar certo. Com território tão vasto, as sesmarias produziram grande balbúrdia. Pela lei escrita, recebia-se um latifúndio junto com o compromisso de cultivá-lo. Quem não o fizesse dentro de cinco anos, no máximo, deveria devolver a terra à Coroa. Imagine-se, só por ironia, como era a fiscalização da produtividade da terra naquele tempo – nunca se devolveu nada.

As sesmarias eram enormes. Uma delas foi a Ilha de Itaparica inteira. Brás Cubas recebeu uma fatia de terra que tomava boa parte da área que, hoje, forma os municípios de Santos, Cubatão e São Bernardo. Havia, já, os espertalhões que recebiam sesmaria para revendê-la retalhada. Havia quem levasse uma sesmaria para si, outra para a mulher, outra para o filho. Os limites eram imprecisos. Em documentos históricos, existem terras que terminam “onde mataram o Varela”. Há outra fazenda que ia até “a casa onde estão uns cajus grandes”. Às vezes, para medir a terra, acendia-se um cachimbo, montava-se no cavalo e ia-se em frente. Quando o cachimbo apagasse, acabado o fumo, marcava-se 1 légua. “A origem do latifúndio é a lei de sesmarias”, afirma a professora Ligia Osorio Silva, da Universidade de Campinas. “Mas elas não são a razão de o latifúndio durar até hoje, pois a lei foi revogada há mais de 170 anos.”

Com o fim das sesmarias, em 1822, o país ficou sem nenhuma lei sobre a propriedade da terra. Quase trinta anos depois, com a Lei de Terras, quando a pressão britânica pelo fim da escravidão estava no auge, definiu-se que só se poderia ter terra pagando por ela, e pagando caro. Como se pretendia manter os negros libertos como mão-de-obra disponível e barata nas fazendas, não se queria transformá-los em pequenos proprietários. No Sul, as terras valiam menos. Em função do clima temperado, eram imprestáveis para a grande agricultura de exportação, como açúcar e café. Em função disso, ali foi possível iniciar a partilha da terra e criar uma estrutura agrária mais eqüitativa.

Em 1945, a reforma agrária preconizada pelos tenentes foi sepultada por meio de uma legislação que dizia que as desapropriações tinham de ser feitas mediante pagamento à vista e em dinheiro. De lá para cá, o único presidente civil que tentou enfrentar o assunto de verdade foi João Goulart, que acabou deposto em 1964 – ele só pretendia desapropriar terras próximas de ferrovias, estradas e açudes da União. Castello Branco, o primeiro presidente do ciclo militar, vinha do interior do Ceará, conhecia algo da miséria rural e tinha apreço especial pela questão agrária. Com as Ligas Camponesas de Francisco Julião derrotadas, Castello fez o Estatuto da Terra. Até hoje, ele é considerado um bom instrumento jurídico para fazer reforma agrária. Mas o Estatuto tinha uma parte sobre reforma agrária e outra sobre política agrícola – e só esta segunda saiu do papel. “Na prática, o Estatuto só foi usado para reduzir as tensões sociais no campo, e não para fazer a reforma agrária”, diz o professor José de Souza Martins, da USP. “Nas emergências, permitia que se fizesse uma desapropriação aqui, outra ali.”

Nos anos 60 e 70, o governo seguiu estimulando a exportação, também distribuiu crédito subsidiado para que as terras pudessem ser adquiridas por grandes grupos econômicos. “O regime se definiu por uma modernização que excluiu pequenos agricultores”, afirma o professor José Tavares dos Santos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na prática, as grandes lavouras produtivas, como o café, a soja e a cana, cresceram, mas a esmagadora maioria do campo brasileiro continuou a marcar passo. No governo de José Sarney, fez-se um plano para assentar 1,4 milhão de famílias até o fim do mandato, em 1990. Mas também não saiu do papel. Acabou assentando apenas 90.000. “No início, Sarney contava até 10 antes de assinar um decreto de desapropriação. Depois, contava até 100. Depois, até 1.000”, relembra o seu ex-ministro da Reforma Agrária Nelson Ribeiro. “Quando os decretos na gaveta passaram de oitenta, saí do governo.”

Comparado a seus antecessores, Fernando Henrique Cardoso teve muitas realizações: retalhou 18 milhões de hectares, uma área maior que o Uruguai e equivalente a metade do território da Alemanha, e neles assentou 635.000 famílias. Quase 2 milhões de brasileiros receberam terras entre 1995 e 2002. Para isso, o antigo governo FHC gastou 25 bilhões de reais na aquisição de terra e na instalação de assentamentos. No programa de governo de Fernando Henrique Cardoso, a reforma agrária entrava sem destaque, de maneira retórica. Ela só entrou na agenda do governo por força e pressão do MST, com projetos destinados a assentar, ou a emancipar quem está assentado ou a viabilizar a compra da terra. Ou seja, iniciativas que se destinavam a acalmar os ânimos dos sem-terra. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu sucessor, foi o primeiro candidato eleito com apoio de setores dos movimentos sem-terra. A trégua dos grupos ao seu governo, porém, durou somente três meses – os conflitos recomeçaram quando Lula demorou a cumprir suas promessas sobre o campo.

Por que o modelo de reforma agrária do país fracassa?

Eles reapareceram nos últimos meses ocupando postos de pedágio, saqueando caminhões de comida, invadindo prédios públicos e denunciando o governo por sua lentidão em promover as desapropriações e assentamentos. Depois de um período de trégua, quando foram saindo do noticiário, os sem-terra retornaram à cena pública – e seu problema, apesar dos progressos obtidos nos últimos anos, continua do mesmo tamanho. Antes da posse de Fernando Henrique Cardoso havia 40.000 famílias acampadas esperando terra; foram assentadas mais de 600.000, e ainda existem 80.000 na fila – ou seja, a conta não fecha. Considerando o ritmo de assentamentos, seria de esperar que os sem-terra estivessem desaparecendo lentamente da paisagem, integrando-se à economia, como aconteceu em todos os países que adotaram a reforma agrária em algum momento de sua História para reorganizar a propriedade no campo. Mas sobram indícios de que o processo de assentamentos veio tarde demais no Brasil e não atende exatamente quem tem competência para se beneficiar dele.

De acordo com as pesquisas mais detalhadas sobre o tema, o sistema defendido pelo MST e geralmente adotado pelo governo – desapropriação e distruibuição da terra em pequenos assentamentos – tem pouca chance de sucesso, já que caminha na contramão da História. Sem competitividade no mercado nem estrutura para engrenar a produção, os pequenos produtores que ganham terras acabam fracassando – e retornando à fila da exclusão no país. A reforma agrária brasileira, cujo modelo atual funciona há mais de vinte anos com velocidade variável de assentamentos, tem sido usada em grande parte para mandar, ou devolver para o campo, desempregados urbanos e legiões de excluídos da atividade rural pelos processos de modernização da agricultura. Uma pesquisa realizada pelo instituto Vox Populi em 1996 detectou vários sinais dessa situação. De um lado, encontrou-se entre os assentados gente com profissões anteriores, como alfaiate, professor primário, militar, encanador e bancário – sem nenhuma intimidade com a terra. De outro, constatou-se que 67% dos entrevistados tinham mais de 40 anos de idade, ultrapassando, portanto, aquele limite que costuma ser considerado um marco perverso da exclusão do emprego braçal. Por fim, 91% dos assentados pesquisados declararam ter sido, anteriormente, arrendatários, donos, meeiros ou parceiros na exploração de atividade agrícola. Ou seja, com altíssima probabilidade de terem fracassado antes na condução de empreendimentos rurais.

Há outros sinais concretos de que a reforma agrária brasileira funciona equivocadamente. “Apenas um quinto dos que recebem terra consegue gerar renda suficiente para se manter no campo”, informa o pesquisador Eliseu Roberto Alves, ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. “Os outros abandonam a terra num período máximo de dez anos.” O fenômeno do esvaziamento populacional no campo, aliás, é absolutamente natural e faz parte da História da maioria dos países desenvolvidos neste século. Nos Estados Unidos, resta apenas 1,5% da população trabalhando no campo. Na França, há 6%, mas isso custa bastante em termos de subsídios. No caso do Brasil, a massa que vai sendo derrotada pela tecnologia ganha o rótulo de excluída e acaba abastecendo iniciativas que parecem exigir que o planeta gire ao contrário.

Se há uma vantagem no modelo atual, ela é do MST, que continua vendo crescer o número de cabeças disponíveis para seguir discursos inflamados como os do líder José Rainha, comandante popular com carisma e poder de persuasão. Em contrapartida às dificuldades nos projetos de reforma agrária, existe no Brasil o sucesso do modelo de cooperativas de pequenos proprietários. Em alguns casos, as cooperativas respondem por mais de 30% da produção nacional de determinada cultura. O problema é que, para ligar uma coisa com a outra, se depende da familiaridade e da aptidão do assentado para o trabalho na terra, habilidades pouco comuns entre os integrantes das fileiras do MST.

OS RESULTADOS DA REFORMA DE TERRAS

Uma luta de foices e armas

A violência no campo já deixou centenas de vítimas no país nos últimos anos – e as mortes se acumulam de ambos os lados, tanto entre fazendeiros e seus capatazes como entre os sem-terra. Entre 1985 e 1989, quando a UDR tornou-se nacionalmente conhecida, as mortes chegaram a 640, um recorde. De 1996 até meados de 2003, o saldo foi menor, mas ainda assustador: mais de 200 pessoas morreram no campo. O maior massacre de sem-terra na história do país ocorreu no Pará, estado campeão em confrontos, em Eldorado dos Carajás, em 1996, com 19 mortes e 51 feridos. A violência agrária, porém, não se resume às lutas de foices, facões e balas entre fazendeiros e lavradores. Nos últimos anos, foram registrados roubos, saques, invasão e depredação de propriedades públicas e privadas, seqüestros, extorsões e chantagens.

Em muitos casos, as invasões em áreas que não podem ser desapropriadas acabam com lavouras destruídas, máquinas estragadas e animais mortos. Sob o argumento de que quer pressionar para acelerar a política de assentamento, o MST passou a ocupar prédios públicos, de delegacias de polícia a agências bancárias. Quando a seca despontou no Nordeste, o MST correu para organizar saques a caminhões e armazéns de comida. Em 2000, o movimento decidiu “comemorar” os 500 anos de descobrimento do Brasil com um mutirão de protesto. Seus militantes organizaram invasões de terra em treze Estados. Em 2002, seus militantes realizaram a mais surpreendente ação de sua história, invadindo a fazenda dos filhos do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Arrasaram a despensa e a adega, danificaram colheitadeiras e tratores, mataram galinhas e perus, mexeram em papéis privados. No auge do deboche, deitaram-se na cama do presidente e abriram o guarda-roupa da primeira-dama.

Do lado dos grandes proprietários rurais, o problema é encarado com pistolas e espingardas. O crescimento da tensão no campo e as ameaças de invasão motivaram esse grupo a se armar para repelir as investidas dos sem-terra. A promessa de receber os invasores com balas virou rotina. O chamado às armas não tem adesão unânime dos fazendeiros, mas ainda é ouvido numa escala preocupante. Os defensores desse procedimento dizem ter motivos de sobra para comprar armas: além das costumeiras ocupações de latifúndios improdutivos, há registros de invasões de terras produtivas em vários estados. Alguns fazendeiros dizem ter sido forçados a pagar para ter a autorização para escoar a produção pelos sem-terra que cercavam suas propriedades. O pior desse quadro é o seguinte: quanto mais tempo a reforma agrária demora e mais intensa fica a pressão por sua realização, os riscos para quem mora no campo – com ou sem terra para plantar – invariavelmente aumentam.

Estatísticas

• A violência no campo já deixou centenas de vítimas no país nos últimos anos. Entre 1985 e 1989, quando a UDR tornou-se nacionalmente conhecida, as mortes chegaram a 640, um recorde. De 1996 até meados de 2003, o saldo foi menor, mas ainda assustador: mais de 200 pessoas morreram no campo. O maior massacre de sem-terra na história do país ocorreu em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, com 19 mortes e 51 feridos. O comandante da operação policial que culminou no massacre, coronel Mário Colares Pantoja, foi condenado a 228 anos de prisão – 12 anos por cada morte.

• O MST tem 19 anos de história e cerca de 1,5 milhão de afiliados. De acordo com o comando do movimento, cerca de 350.000 famílias foram assentadas até hoje e mais 80.000 vivem em acampamentos organizador pelo grupo. Com 1.800 escolas montadas, o MST tem cerca de 160.000 crianças estudando nos assentamentos, e 19.000 jovens e adultos envolvidos em programas de alfabetização.

• Nos seis meses iniciais do governo Lula, o MST fez 110 invasões em quase todos os Estados, e, nos conflitos ocorridos até agora, já houve dez mortes, mesmo número de vítimas fatais em 2000. No Pará, 40 famílias invadiram 3.000 hectares. Em Mato Grosso, onde 70 fazendas já estão sob ocupação do MST, 300 famílias invadiram outra área. Houve, ainda, ocupações em Minas Gerais e em São Paulo.

• Em sua reunião com Lula, o MST entregou ao governo uma lista com 16 pedidos, entre eles a meta de assentar 1 milhão de famílias até 2006 e 120.000 imediatamente. O governo respondeu propondo assentar 60.000 famílias até o fim do ano, e não quis dizer quantas famílias quer assentar até o fim do mandato. Passados seis meses do primeiro ano de Lula como presidente, o governo assentou 2.534 famílias, menos de 5% da meta de assentamento para o ano.

• Segundo o governo, outras 2.276 famílias devem ser atendidas nos próximos meses nos 80 projetos de assentamento criados no primeiro semestre de 2003. Lula já assinou decretos de desapropriação de 199.000 hectares de terras, que deverão receber 57.000 famílias assentadas. No entanto, falta dinheiro: cada família assentada custa 23.000 reais, e o governo não tem verba para cumprir sua meta até dezembro. O limite de gastos do Ministério do Desenvolvimento Agrário com assentamentos é de 162 milhões de reais, suficiente para 6.956 famílias – pouco mais de 10% do prometido.

• Em entrevista a VEJA, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, afirmou que a prioridade do governo são as 80.000 famílias acampadas no país. Ele diz, porém, que a demanda por terra é muito maior, e pode chegar a 4 milhões de pessoas. Nos últimos anos, os balanços dos números de candidatos na fila por terras do governo mostraram que a conta da reforma agrária nunca fecha: antes da posse de Fernando Henrique havia 40.000 famílias acampadas esperando terra; foram assentadas mais de 600.000, e ainda existem 80.000 na fila.

• Sem contar Lula, Fernando Henrique Cardoso foi o presidente que mais assentou famílias de sem-terra entre os quatro últimos chefes de estado brasileiros. Em seu governo, a média de famílias assentadas foi de 70.000 por ano. Itamar Franco foi o pior, com 11.000 famílias por ano. João Baptista Figueiredo assentou 18.500 famílias por ano; José Sarney, 18.000; e Fernando Collor, 19.000.

• O governo FHC retalhou 18 milhões de hectares, uma área maior que o Uruguai e equivalente a metade do território da Alemanha, e neles assentou 635 000 famílias. Quase 2 milhões de brasileiros receberam terras entre 1995 e 2002. Para isso, o antigo governo FHC gastou 25 bilhões de reais na aquisição de terra e na instalação de assentamentos.

ASSENTAMENTOS POR REGIÃO NO PAÍS

 

 

Quem são os religiosos que lutam ao lado do MST

A roda de chimarrão faz parte da paisagem de todo acampamento de sem-terra, em qualquer lugar do país. É em torno do chá-mate que se comemora o sucesso de uma ocupação ou se discute o plantio do feijão e do milho. Entre uma bicada e outra, também é comum ouvir uma pregação. “Dividir o chimarrão é uma lição de como se deve dividir tudo na vida. A terra, o pão”, diz o padre Círio Vandresen, 35 anos, num dos três acampamentos que visita por semana no interior de Santa Catarina. Não há grupo de sem-terra que não conte com a supervisão constante de um padre católico. Vandresen é o exemplar típico desse exército de religiosos. “Não sou padre só para rezar. Sou padre para me engajar na luta por justiça. E a coisa mais importante a ser feita pela Justiça no Brasil é a reforma agrária”, apregoa. Vandresen é um padre sem paróquia nem residência fixa. Como coordenador da Comissão da Pastoral da Terra, CPT, em Santa Catarina, ele e três assessores percorrem o Estado, dormindo em tendas de lona ou pernoitando em uma paróquia aqui, noutra acolá. O padre já participou diretamente de quinze invasões e, em suas andanças, passou por todos os 293 municípios do Estado.

Não se sabe exatamente quantos padres militam dessa maneira ao lado do MST. A única contabilidade sobre o assunto é a da Pastoral da Terra, à qual estão filiados 700 religiosos. É um grupo, por si só, mais numeroso no país do que ordens católicas tradicionais, como a dos dominicanos. Mas calcula-se que o dobro desse número divida seu tempo entre as atividades regulares nas paróquias e o apoio aos acampamentos do MST e de outros movimentos pela reforma agrária. Não é de se estranhar. O berço do movimento sem-terra e o de boa parte dos padres é o mesmo – as cidades mais pobres do interior dos Estados do Sul.

Segundo uma pesquisa feita em 1998 pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, Ceris, quase a metade do clero brasileiro veio da Região Sul do país. Dois terços pertencem a famílias de classe baixa ou média-baixa. Enquanto 78% da população brasileira vive nos centros urbanos, 64% do clero tem origem na zona rural. Três em cada quatro padres nasceram em cidades com menos de 20.000 habitantes. Na secretaria da entidade, dos quatro secretários executivos, dois vêm do Rio Grande do Sul, um do Paraná e o outro de Santa Catarina. “Padre gaúcho parece churrascaria. Tem em todo o lugar”, diz dom Tomás Balduino, bispo responsável pela CPT, uma exceção na cúpula do movimento – ele é goiano.

A concentração de padres sulistas no movimento pela reforma agrária não é só um dado estatístico e a análise sobre sua origem não é apenas uma curiosidade sociológica. O interesse dos padres da Região Sul pelo Movimento dos Sem-Terra e outros movimentos ligados à reforma agrária é um fenômeno que explica em parte a lógica e a maneira de pensar do próprio MST. O fato de os padres que apóiam o movimento ser originários de famílias de imigrantes, conservadoras e profundamente religiosas, estabelecidas em pequenas propriedades, cria a base para que seus descendentes de batina sejam refratários a modernizações e desconfiados em relação aos mecanismos capitalistas de produção. Esses são alguns fatores que explicam por que estes religiosos defendem com tanto fervor o engajamento ideológico do MST.

No sul do país há padres demais porque persiste um hábito trazido pelos imigrantes europeus no início do século. “Como acontecia no sul da Itália e na Baviera católica, cada família costuma mandar pelo menos um dos filhos para o seminário”, explica o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, estudioso da história da Igreja no Brasil. É uma maneira barata de garantir educação e emprego a pelo menos um dos rebentos. Com padres demais sendo formados, todos num mesmo caldo de cultura, é natural que eles se associem aos sem-terra, com quem concordam em gênero, número e grau. A família de Vandresen, caçula de onze irmãos, exemplifica o fenômeno. Suas seis irmãs se tornaram freiras. Dos quatro irmãos, três cursaram o seminário (mas não se formaram). Essa contabilidade não surpreende na pequena cidade de Rio Fortuna, a 196 quilômetros de Florianópolis, onde ele nasceu. De lá, desde a II Guerra, saíram 36 padres. Bastante para um município que possui apenas 2.000 habitantes.

Foi a colonização dos imigrantes que fez com que ali, no mesmo caldeirão, se misturassem a religiosidade e os problemas fundiários. Quando chegaram ao Sul, a partir do final do século passado, os lavradores europeus receberam glebas de tamanho razoável. De uma geração para outra, porém, as famílias – muito numerosas – tiveram de dividir a terra em pedaços cada vez menores. Em algumas décadas, o campo ficou pequeno para tanta gente. Uma das conseqüências foi a diáspora de agricultores gaúchos, que partiram para desbravar as fronteiras agrícolas em todos os cantos do país. Outras foram o acirramento da luta pela terra e o aumento do desemprego no campo.

Na década de 60, depois dos ventos liberalizantes do Concílio Vaticano II, os seminários da região passaram a receber padres formados no Seminário para a América Latina, situado em Verona, norte da Itália. Sua influência foi imensa. Lá, os livros da Teologia da Libertação (que, no Brasil, eram proibidos pela ditadura) davam a tônica. “Para entender a situação agrária daqui, líamos Graciliano Ramos e Jorge Amado e assistíamos aos filmes de Glauber Rocha”, explica o padre italiano Ermanno Allegri, 54 anos. O modo de pensar desses padres formou toda uma geração de religiosos brasileiros, que por sua vez se espalharam pelo país. O bispo Itamar Vian, gaúcho de Roca Sales, decidiu há quinze anos mudar-se para o Nordeste. Nesse período, deu auxílio direto e indireto a 550 invasões na região de Feira de Santana, na Bahia. “A terra prometida foi uma ocupação”, teoriza o italiano Allegri.

Nos últimos anos, o papa João Paulo II bombardeou duramente a Teologia da Libertação, especialmente onde ela ameaçava corroer os dogmas mais importantes da Igreja. Mas deixou que a atividade política dos padres à esquerda subsistisse por um motivo simples. Para Roma, ela é uma maneira de garantir os fiéis da zona rural, onde a Igreja Católica ainda tem predominância tranqüila. “A Igreja sabe que, na cidade, é mais difícil garantir seus fiéis. Há outras religiões. E também os templos de consumo, os shopping centers”, teoriza a historiadora Zilda Iokoi, da Universidade de São Paulo, especialista em movimentos sociais. Manter os fiéis longe desses “perigos” também interessa.

Movimentos sem-terra

Estima-se que cerca de setenta entidades participem de acampamentos e invasões de terra no país. Entre elas, há sindicatos e associações e, no mínimo, 27 movimentos autônomos de trabalhadores rurais, mais ou menos inspirados no MST. A maioria dos movimentos tem atuação apenas local, mas alguns ganharam destaque. São eles:

MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
É o maior e mais antigo, fundado em 1984. Está presente em 23 Estados e tem 80.000 famílias acampadas em todo o país. Faz invasões de terra e ocupações de prédios públicos, destrói plantações de produtos transgênicos, organiza greves de fome e marchas nacionais. E um caldeirão ideológico, em que se misturam várias linhas do pensamento de esquerda e extrema esquerda. Sua tática é a luta pela reforma agrária. Seu objetivo final é a revolução socialista.

O MST é comandado por uma direção nacional com vários integrantes – não há um presidente ou líder oficial do grupo. Porém, seu principal dirigente é, sem dúvida, João Pedro Stedile, de 49 anos, gaúcho de Lagoa Vermelha, formado em economia, pós-graduado na Universidade Autônoma do México e autor de vários livros sobre a reforma agrária. Foi graças às idéias, mais do que ao cargo que ocupa desde 1985 na direção nacional do MST, que Stedile ganhou estatura dentro do movimento. Cada aspecto seu – dos métodos de luta às teses, passando pela organização – tem as marcas de seus neurônios. Conservador em relação à família e à religião, Stedile afirma que suas idéias são radicais e de esquerda, e defende de forma aberta a adoção de um sistema socialista no país. Ele viaja pelo país dando palestras e coordenando a atuação do movimento, e serve como seu principal formulador de políticas. Em julho de 2003, Stedile liderou a comitiva do MST na visita ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto.

Junto de Stedile na cúpula do MST estão outros nomes influentes no movimento. O mais conhecido deles é o agricultor Gilmar Mauro, de 36 anos, paranaense de Capanema e coordenador de massas do movimento. Casado com uma economista mexicana, ele integra a ala mais antiga e expressiva do MST. Outros líderes nacionais são João Paulo Rodrigues, um dos dirigentes mais jovens do movimento, e os catarinenses Roberto Baggio e Edgar Golling, além de Ênio Bohnenberger e Egídio Brunetto – este último, coordenador do MST no Mato Grosso do Sul e secretário de relações internacionais. O coordenador regional Jaime Amorim, responsável pelo movimento no Nordeste, também tem projeção nacional. Aos 43 anos, formado em pedagogia, o catarinense de Guaramirim é admirador de Ernesto Che Guevara, líder da revolução cubana, e dos guerrilheiros zapatistas da região de Chiapas, no México. Em 1998, ele liderou uma série de seqüestros e roubos de caminhões carregados de alimentos.

O líder regional de São Paulo José Rainha Júnior (foto acima), de 45 anos, não é integrante da direção nacional, foi desautorizado a falar em nome do MST e está afastado da tomada de decisões dentro do movimento. Capixaba de São Gabriel da Paz, Rainha é um camponês que foi analfabeto até a adolescência, antes de ganhar notoriedade nacional pulando as cercas dos outros. Já foi alvo de tiros, foi acusado de assassinato, acabou preso e depois libertado e continua sendo o principal nome do MST no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do Estado de São Paulo, um dos principais pontos de tensão na questão agrária brasileira. Casado com Diolinda Alves de Souza – que já foi presa em seu lugar quando a polícia não conseguiu localizá-lo -, José Rainha causou desconforto entre os líderes nacionais quando foi revelado seu plano de reeditar a experiência do acampamento de Antônio Conselheiro, em Canudos, em pleno Pontal do Paranapanema. Em junho de 2003, incomodada com a repercussão negativa do projeto, a direção do MST divulgou que as idéias de Rainha não representam a posição do movimento.

MLST (Movimento de Libertação dos Sem-Terra)
Criado em 1994, tem acampamentos em seis Estados – Maranhão, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Formado por militantes de extrema esquerda, o movimento é ainda mais radical que o MST. Prega abertamente a tomada do poder pela força e defende a eclosão da revolução socialista a partir do campo. Apesar do radicalismo retórico, sua prática não difere muito da do MST.

MLT (Movimento de Luta pela Terra)
Apareceu em 1994, no sul da Bahia, com o desemprego provocado pela crise das fazendas de cacau da região. Está organizado em quatro Estados: Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Pará. Reúne 4.000 famílias, das quais 1.000 já foram assentadas. Adota as mesmas táticas do MST: invasões, acampamentos de beira de estrada e ocupações de prédios públicos.

MAST (Movimento dos Agricultores Sem-Terra)
Surgiu em 1998, na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e mais tarde se ampliou para o interior do Paraná. Foi fundado por militantes da Social Democracia Sindical, uma central sindical de direita, e por dissidentes do MST. Hoje, representa 800 famílias. De todos, é o movimento de sem-terra mais moderado: opõe-se às ocupações de terra, não reclama da estrutura agrária do país e defende uma reforma negociada.

OS NOMES DO GOVERNO

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, tem grande ligação com movimentos populares e com a reivindicação da reforma agrária no Brasil. Quando se candidatou, prometeu promover uma reforma inédita em qualidade e quantidade no país. Seu partido, o PT, tem integrantes ligados aos líderes do MST, principalmente em suas alas radicais, e já apoiou, de forma indireta ou até mesmo explícita, as invasões de terra promovidas pelo movimento. Pressionado a apresentar resultados de impacto, Lula decidiu nomear para o governo pessoas com experiência na defesa da reforma agrária.

Ministro do Desenvolvimento Agrário, o gaúcho Miguel Rossetto, 43 anos, dois casamentos e quatro filhos, é um dos petistas que já aprovaram abertamente invasões de propriedade privada, assim como a atuação do MST. Militante da Democracia Socialista, uma das correntes radicais do PT, ex-líder do sindicato dos petroleiros, ex-deputado federal pelo PT e vice-governador do Rio Grande do Sul na gestão de Olívio Dutra, ele tem experiência política, credencial número 1 para ocupar um cargo explosivo como esse. Sua nomeação, no entanto, mexeu com os nervos dos produtores rurais. Motivo: para muitos fazendeiros, ficou a impressão de que Rossetto e seu secretário-executivo, Guilherme Cassel, braço-direito do ministro, falam e agem como se defendessem os interesses dos sem-terra.

Ao assumir o cargo, o ministro do Desenvolvimento Agrário loteou sua pasta de alto a baixo entre simpatizantes da causa. Uma parte ficou com o MST, outra com os integrantes da Comissão Pastoral da Terra, e uma terceira é comandada pela confederação dos agricultores, a Contag. A presidência do Incra, sua nomeação mais importante, foi entregue a Marcelo Resende, figura ligada à Pastoral da Terra e ex-comandante do Instituto da Terra no governo Itamar Franco. MST e Contag gostaram da escolha. Ao designar novos superintendentes para o Incra, Resende colocou pessoas ligadas ao MST em nove das 29 sedes do instituto no país.

Além de Miguel Rossetto, outros nomes importantes do governo Lula têm ligação com a atuação dos sem-terra ou experiência no assunto. O assessor especial da Presidência Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é uma das peças do governo que defendem o MST e outros movimentos de luta pela reforma agrária. Como é muito ligado a Lula, pode defender a atuação dos sem-terra dentro da esfera do poder federal. Da mesma forma, o agrônomo, economista e professor José Graziano da Silva, ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e de Combate à Fome e professor e amigo de Lula há mais de duas décadas, também pode ser ouvido pelo presidente sobre o assunto.

Ao final dos primeiros seis meses de governo Lula, a condução da reforma agrária foi corrigida pelo presidente. Uma nova onda de invasões e a retomada das ambiciosas reivindicações do MST reacenderam a tensão no campo. Apesar disso, o ministro Rossetto, criticado por não agir para inibir as invasões e atos violentos, não caiu em desgraça. No Planalto, avalia-se apenas que, por sua proximidade com o MST, onde cultiva velhas amizades, ele tem dificuldade de ser duro com os sem-terra. Três ministros assumiram a tarefa de controlar a situação e tratar dos excessos do MST: o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Enquanto Lula recebia os sem-terra pela primeira vez como presidente, no início de julho de 2003, o trio advertia, em entrevistas e discursos, que tanto sem-terra como fazendeiros que radicalizarem o conflito no campo serão submetidos à lei. Se Dulci, Dirceu e Bastos cuidarão dos excessos do MST, Rossetto ficará a cargo da execução da reforma em si – que, promete-se, agora vai deslanchar.

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Por que o Brasil, que tem terra de sobra, ainda vive problemas no campo?
Existem duas visões conflitantes a respeito da agricultura brasileira. Segundo a mais antiga, o Brasil tem terras tão esplêndidas e vastas que p

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