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Faróis, de Cruz e Souza

by Lucas Gomes

Faróis, de poemas em verso, é obra póstuma de Cruz e Souza, e ainda organizada por ele, é uma visão associada à circunstância humana.

Considerada uma das obras amadurecidas do autor, em Faróis, Cruz e Souza faz um ruptura com a seqüencialidade lógica, fugindo assim totalmente da linha parnasiana de composição. A musicalidade é seu ponto alto. É como uma área musical que apresenta um tom, um andamento diferenciado daquele claro e freqüente em Broquéis.

A maturidade artística alcançada com Faróis é, na verdade, o desenvolvimento daquela tendência já existente em Broquéis. Nesta obra Cruz e Souza antecipa um pouco o que seria a Semana de 22.

A temática permanece simbolista, mas Cruz e Souza já não é o mesmo poeta. Abandonou a influência parnasiana (sonetos) e antecipa o modernismo ao atrair com o eu-lírico para dentro da poesia através do trabalho com a linguagem.

O cuidado na escolha da linguagem, a produção de imagens (fanopéia) e musicalidade (melopéia) através da poesia continuam presentes. Entretanto, vemos agora um poeta profundamente preocupado com o conteúdo a ser trabalhado no poema (logopéia).

“CANÇÃO DO BÊBADO”

Na lama e na noite triste
aquele bebado vil
Tu’alma velha onde existe?
Quem se recorda de ti?

Por onde andam teus gemidos,
os teus nectâmbulos ais?
Entre os bêbados perdidos
quem sabe do teu – jamais?

Por que é que ficas à lua
Contemplativo, a vagar?
Onde a tua noiva nua
foi tão cedo depressa enterrar?

Que flores de graça doente
tua fronte vem florir
que ficas amargamente
bêbado, bêbado a vir?

Que vês tu nessas jornadas?
Onde está o teu jardim
e o teu palácio de fadas
meu sonâmbulo arlequim?

De onde trazes essa bruma
toda essa névoa glacial
de flor de lânguida espuma
regada de óleo mortal

Que soluço extravagante
que negro, soturno fel
põe no teu daudejante
a confusão da Babel?

Ah! das lágrimas insanas
que ao vinho misturas bem
que de visões sobre-humanas
tua alma e teus olhos têm!

Boca abismada de vinho
Olhos de pranto a correr
bendito seja o carinho
que já te faça morrer!

Sim! Bendita a cova estreita
mais larga que o mundo vão
que possa conter direta
a noite do teu caixão!

O poema mantém o mesmo ritmo marcado pela duração, tão característica na obra de Cruz e Souza. Porém, não há mais regularidade métrica.

No primeiro e segundo estrofes, temos a estrutura 7, 6, 7 e 6 sílabas. No terceiro, 5, 6, 5 e 9 sílabas. No quarto, 7, 5, 6 e 6 sílabas. No quinto, 7, 5, 7 e 6. No sexto, 7, 6, 7 e 6. No sétimo, 7, 6, 6 e 6. No oitavo, 7, 6, 8 e 5. No nono, 7, 6, 7 e 6. E no último, 7, 6, 7 e 6. Assim, vemos como o poeta abandonou a regularidade existente no soneto “Dança do Ventre” (Broquéis, meticulosamente construído com 10 sílabas.

Neste poema, é evidente o emprego da pontuação como recurso expressivo. A alternância de exclamações e interrogações, proporcionam ao leitor tanto a imagem quanto a música do poema. Em “Canção do Bêbado” todo o poema é desenhado e cadenciado pela pontuação.

A imagem sugerida pela pontuação é sem dúvida alguma a de um homem embriagado caminhando para casa. Sua marcha é irregular, alternando movimento, oscilação, dúvida (interrogação) e pausa, regularidade, certeza (exclamação). Há variação nos dois estados em razão da assimetria silábica. Porém, seu ânimo é firme. Pretende caminhar e caminha como pode. Sabe que chegará ao lar, onde poderá enfim descansar. O desejo ardente de chegar, expressado no último estrofe renova seu ânimo de prosseguir, proporcionando ao leitor a impressão de que o poema acabou antes de findar a marcha do ébrio. Este poema é um verdadeiro monumento do simbolismo.

Como já citado, Cruz e Souza marca a alternância de movimento e pausa através de exclamações e interrogações. Isto, aliado a variação do número de sílabas nas estrofes e a distribuição das sílabas tônicas e átonas ao longo dos versos, produz um efeito musical. Cada estrofe corresponde a um compasso, cada compasso tem a mesma melodia com uma pequena variação. Cada estado (movimento e pausa), correspondem a um motivo. Assim, todo o poema lembra uma música de inspiração nitidamente barroca.

Barroca por que esta é a escola musical caracterizada pela superposição dos mesmos motivos com variações melódicas introduzidas por força da variedade instrumental crescente. Barroca por que a exaltação religiosa obtida através das composições musicais também está presente no poema trágico composto por Cruz e Souza, onde a morte não é vista com medo mas como a certeza da tranqüilidade desejada e proporcionada pelo Criador (Sim! Bendita a cova estreita/ mais larga que o mundo vão/ que possa conter direita/ a noite do teu caixão!). Enfim, Barroca por que através das escolhas efetuadas, à similitude do músico barroco, Cruz e Souza obriga o leitor/expectador/ouvinte a prestar muita atenção para perceber os detalhes da composição.

Neste poema, Cruz e Souza “flexionou” a língua para obter o efeito musical. A melopéia obtida pela pontuação, assimetria e distribuição de sílabas tônicas e átonas atrai definitivamente para dentro da composição o “eu-lírico”. Fato que é evidenciado pelo próprio nome dado à composição “Canção do Bêbado”.

Num outro extremo, vê-se a preocupação do poeta com o conteúdo trabalhado poeticamente. A degradação em decorrência do alcoolismo, do pessimismo, da tragédia afetiva, da opção pela vida fantasiosa, da depressão associada a bebida e da dúvida, é purgada pela morte, certeza de pacificação daquele bêbado cantado poeticamente. Entretanto, a logopéia cria um efeito evidente, que é o deslocamento do “eu-lírico” para o próprio poeta. Talvez seja esta a razão pela qual os estudiosos consideram os poemas reunidos em Faróis como sendo autobiográficos.

Nota-se em Faróis a intensificação do senso trágico da existência atingindo níveis de morbidez e satanismo. Conscientiza-se o poeta cada vez mais do seu emparedamento. Avoluma-se na sua angústia ante o destino inclemente, como estabelece claramente “Meu Filho”, um dos raros poemas referentes a família:

Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Frágil e pequenino e tenro como as heras.
Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
O aspecto do meu fiIho assim meigo dormindo…
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.
Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,
Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza

Minh’alma se debate e vai gemendo aflita
No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!

Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
O que vale tudo isso para outros mistérios?!
De sua doce mãe que em prantos o abençoa
Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!
O longo sacrifício extremo que ela faça,
As vigílias sem nome, as orações sem termo,
Quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!
Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram,
Se a graça de seu riso e a graça do seu viço
São as flores mortais que meu tormento geram?!
Por que tantas prisões, por que tantas cadeias
Quando a alma quer voar nos paramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias
De tanto desespero e tanta luz incerta!
Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso
Desse imenso Aspirar tio entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso,
As causas do que eu sofro, as causas do que eu gemo!
Pois então hei de ter um afeto profundo,
Um grande sentimento, um sentimento insano
E hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo,
Para a vala comum do eterno Desengano?!
Pois esse filho meu que ali no berço dorme,
Ele mesmo tão casto e tão sereno e doce
Vem para ser na Vida o vão fantasma enorme
Das dilacerações que eu na minh’alma trouxe?!

Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia,
Transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
Macabras contorções de lúgubre comédia
Que um cérebro de louco houvesse imaginado!
Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos,
Que do mundo vilão ternamente defendo,
Há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
Sem que o possa acudir no suplicio tremendo.
Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
Nas diluentes visões dos largos Infinitos,
Sem nunca mais ouvir os clamores horríveis,
A mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.
Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia,
Um misto de ansiedade, um misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia
E desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura.
E sinto sede intensa e intensa febre, tanto,
Tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra.
Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
Desce por sobre mim sua estranha penumbra.
Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
Do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada…
O teu caminho e claro, é matinal de brilho,
Não conheces a sombra e os golpes da emboscada.
Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro…
Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!

Poemas como “Pandemonium”, “A Flor do Diabo”, “Tédio”, “Caveira”, “Música da Morte”, “Inexorável”, “Olhos de Sonho”, constituem alguns exemplos que acentuam os aspectos trágicos, macabros e mesmo satânicos da existência, conduzindo a cenas e descrições dramáticas. O poema final – “Ébrios e cegos”, sintetiza em cores negras esse quadro:

Mas ah! torpe matéria!
Se as atritassem, como pedras brutas,
que chispas de miséria
romperiam de tais almas corruptas!

Cruz e Sousa não pouca tintas ou palavras para carregar sua cosmovisão de negro pessimismo, para caracterizar a degradação da matéria e da carne, para indicar os descaminhos dos instintos carnais e materiais, para evidenciar a deprimência da glória vã, do orgulho humano, do legado corporal. Nada mais vigoroso, nessa investigação implacável, do que o tom amargamente realista de “A ironia dos vermes”:

Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca…
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.
Que tu vais por um coche conduzida,
Por esquadrões flamívomos guardada,
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida.
Que da Corte os luzidos Dignitários
Com seus aspectos marciais, bizarros,
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários.
Que a tropa toda forma nos caminhos
Por onde irás passar indiferente;
Que há no semblante vão de toda a gente
Curiosidades que parecem vinhos.
Que os potentes canhões roucos atroam
O espaço claro de uma tarde suave,
E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Do Amor, por entre os sons que te coroam.
Que nas flores, nas sedas, nos veludos,
E nos cristais do féretro radiante
Nos damascos do Oriente, na faiscante
Onda de tudo há longos prantos mudos.
Que do silêncio azul da imensidade,
Do perdão infinito dos Espaços
Tudo te dá os beijos e os abraços
Do seu adeus a tua Majestade.
Que de todas as coisas como Verbo
De saudades sem termo e de amargura,
Sai um adeus a tua formosura,
Num desolado sentimento acerbo
Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Envolto em finas e cheirosas vestes,
Sob o carinho das Mansões celestes
Ficará pela Morte encarcerado.
Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.
Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.
Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.
Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
Para o teu corpo apodrecer com fausto.
Para que possa apodrecer nas frias
Geleiras sepulcrais d’esquecimentos,
Nos mais augustos apodrecimentos,
Entre constelações e pedrarias.
Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!

Mas, mesmo dentro dessa cosmovisão pessimista, persiste a sensualidade, o envolvimento dos sentidos na ânsia de viver. “Violões que Choram’ é um dos poemas de maior musicalidade que a arte poética já produziu. Trata-se de verdadeira sinfonia de fertilíssima imaginação, com variações quase infinitas. Entretanto, da harmoniosa musicalidade de suas aliterações e modulações vocálicas, emerge uma trágica sensualidade, que se denuncia nas “harmonias que pungem, que laceram”, no sons do violões” que “vão dilacerando e deliciando”, no “concerto de lágrimas sonoras”, despertando os “anelos sexuais de monjas belas / ciliciadas carnes tentadoras” e “fazendo ressoar “toda a mórbida música plebéia / de requebros de faunos e ondas lascivas”. A velada sensualidade da monja desdobra-se em outros poemas, sobretudo em “Monja Negra”, com suas “volúpias, seduções, encantos feiticeiros”.

Mas esse envolvimento sensual faz-se sobretudo ressaltar nos sete sonetos que decantam as partes do corpo: cabelos, olhos, boca, seios, mãos, pés e corpo, numa seleção capaz de sintetizar as sensações mais impositivas no ser humano:

CABELOS

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos…

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia…

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!

Neste poema, o poeta coloca o cabelo do negro. Sempre tido como estigma de inferioridade e por isso, justificativa à dominação, o poeta reverte o símbolo nesta poesia.

OLHOS

A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,

Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras…

Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!…

BOCA

Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.

Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos…

Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos…

SEIOS

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.

Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos…

Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.

Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando…

MÃOS

Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.

Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.

Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!

PÉS

Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n’alma, doloroso e inquieto…

Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
Geram fascinações dilacerantes!

CORPO

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas…

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!

Formalmente, Faróis engloba poemas mais longos, com versos de medidas regulares, mas diferentes, inclusive versos curtos (redondilhas maiores) e variada estrofação. Evidendia-se sempre o esmero no uso do vocabulário erudito e seleto. o destaque de palavras, em maiúsculas, para indicar sua elevação a categoria absoluta, dentro da estilística simbolista, continua freqüente. Não obstante a deprimência de tom e a acentuação do senso trágico, sempre relacionados com a matéria, persiste a tendência em abstratizar, em diluir a realidade na aspiração ansiosa pelo vago, fluido e indefinido, como talvez melhor exemplificam as “tristezas incertas / esparsas, indefinidas” de Tristeza do Infinito.

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indeciso, medrosa

A presença do sonho continua sempre como opção compensadora do sufocante mundo material, mesmo que essa aspiração libertadora nunca seja de todo satisfeita. E em oposição aos aprisionantes laços materiais, abre-se um vago mundo superior, nas regiões siderais, no espaço, no céu, nas estrelas, nas constelações, nos astros, particularmente na branca lua.

Faróis é conjunto de poemas que confirma a decisiva op;cão simbolista de Cruz e Sousa, não obstante encerre cosmovisão extremamente trágica e deprimente.

Nesta obra percebe-se a morte, dor e revolta com o preconceito e o sofrimento do povo negro: “nos poemas coligidos por Nestor Vítor nos Faróis, já figuram algumas páginas em que Cruz e Sousa faz direto e vigoroso o tratamento da matéria biográfica” (BOSI, 2003, p. 275), ou seja, principalmente, o sofrimento ligado à cor. Basta lembrar que o poeta fora recusado para assumir o cargo de promotor de Laguna – SC, o qual promovido, devido à cor negra.

Apesar de muitos autores apontarem controvérsias a respeito da poética militante de Cruz e Sousa, como Domício Proença Filho (2004): “No plano da ação, assume a luta contra a opressão racial […] deixa nove poemas e dois textos em prosa comprometidos com a causa abolicionista. Sua obra literária, entretanto, evidencia uma posição dividida e conflitada”; outros relatam que alvura que permeia seus textos são meramente ligações à estética simbolista.

Todavia, uma leitura guiada pela óptica pós-colonialista pode revelar divergências às asserções acima. Segundo Bonnici (2005, p.235), “as estratégias subversivas revelam a forma da dominação e a resposta criativa a esse fato”. No caso dos vocábulos referentes à alvura, inegável a ligação de Cruz e Sousa à estética simbolista. Muito sugestiva e mística, alcança através da cor branca um grau maior de indefinição e mistério (bruma, ebúrneo, pálido), apontando para o transcendental. Entretanto, em alguns poemas, pode-se perceber que sutilmente, o poeta planta a semente da alteridade.

Delicadamente sugere-se, bem ao estilo do simbolismo, essa diferenciação de cultura e paridade no quesito humano. Refletindo acerca do século XIX e nas regras de conduta moral, o discurso, principalmente literário, abertamente militante não se cristalizaria. Na verdade, havia uma recém-nascida idéia de nação, povo, no sentido de Brasil, como país, mas ainda muito latente a idéia de colônia.

Cruz e Sousa pode não ter assumido ação explicitamente militante no campo literário, como o fez no texto jornalístico, por compreender que a literatura panfletária reflete o furor do momento, conseqüentemente, não se perpetua. Talvez, essa a real intenção do autor: como forma de constante alerta, através dos “faróis”, iluminar, deixar uma luz-guia, um caminho em busca da identidade e revalorização negra, ideais esses envoltos pela paridade: a igualdade de direitos humanos, fundados não pela pigmentação da pele, mas pelo estado de espécie humana.

Assim, no que compete à cor branca, vê-se em algumas poesias a questão da alteridade e paridade, permeada pela morte, mistério, como já pudemos ver, do qual essa cor se tornou representante:

Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca…
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.

[…]

Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.

[…]

Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria! (“Ironia dos Vermes”),

Na brancura das ossadas
Gemem as almas penadas (“Pressago”),

A partir desses excertos, percebe-se o discurso da alteridade: há diferença cultural, econômica, de pele, mas o que prepondera é a paridade, ou seja, no quesito humano não importa a tonalidade da pele, porque no que compete aos ossos e à putrefação da matéria, do corpo e sua cor, não há diferenças. Os vermes abarcarão a todos sem olhar cor ou classe social. Principalmente no primeiro poema, Ironia dos Vermes, um tom satírico perpassa os versos. O eu lírico mantém fina ironia até a penúltima estrofe, ao relatar as pompas fúnebres, a luxúria da despedida. Na última estrofe, declara quão vã a ação dos “nobres” que ignoram a corrupção do seu ser, mesmo antes de finar-se.

De uma forma menos sutil, o padecimento do negro e o que diz respeito à população negra e afro constituíram a poética de Cruz e Sousa. Como, por exemplo, em Pandemonium, “onde a angústia do escravo se projeta em repetições alucinatórias” (BOSI, 2003, p.275). No poema, não só a angústia, mas o castigo físico, a imagem do negro no tronco é sugerida nos dísticos:

Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
Segue-te atrás uma visão vermelha.

Uma visão gerada do teu sangue
Quando no Horror te debateste
exangue,

Uma visão que é tua sombra pura
rodando na mais trágica tortura.

[…]

E o teu perfil oscila, treme, ondula,
Pelos abismos eternais circula…

Circula e vai gemendo e vai gemendo E suspirando outro suspiro horrendo.

E a sombra rubra que te vai seguindo
Também parece ir soluçando e rindo.
(“Pandemonium”)

Na composição poética, uma das mais famosas senão a mais: Violões que Choram, percebem-se os castigos infligidos aos negros atrás do gemer das cordas do violão. Os marginalizados, sobretudo os negros, são acolhidos pela melodia do instrumento:

Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;

Toda a mórbida música plebéia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorções de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!

Todos são abrigados pela melodia do violão, todos de “ironias suspirantes” (os marginalizados). Assim, há alusão a “requebros faunos”, marginais, já que estão fora do que se figuraria uma dança prestigiada pela classe nobre, do século XIX. Pode–se inferir que esses requebros representem, por exemplo, a dança africana.

Entretanto, toda manifestação marginal, a alegria da margem incomoda e representa perigo, porque significa sair do controle. Por isso, é reprimida, por extensão, cada vez mais marginalizada. Assim, os requebros passam a “valsas alanceadas, convulsivas”. Cruz e Sousa constrói uma belíssima metáfora para falar de dor, do açoitamento: os movimentos convulsivos e os “ais de dor” se combinam com o toque, o dedilhar na corda do violão. O toque do dedo na corda é o “toque” sentido pela pele do negro quando o açoite a machuca.

Bastante provável que ele seja o primeiro a se ocupar do símbolo do cabelo, entende-se a conotação de cabelo do negro, por alguns indícios, precisamente dois: “esplendor sombrio” e “ondeada”. Torna-se ao problema de não se poder falar abertamente. O negro ainda sente a prisão, sente-se colônia. Interessante ressaltar que Faróis veio a público, doze anos após a abolição da escravatura. Tem-se a impressão que se perpetuou na atualidade: a escravidão acabou, segundo a lei, mas os resquícios que ela plantou são ainda latentes. Segundo Bonnici (2005, p. 233), Embora muitos dos temas […] abordados por esses autores es tivessem carregados de subversão, sem dúvida os autores não podiam ou não queriam perceber essa potencialidade. Além disso, a manutenção da ordem e as restrições impostas pela potência imperial não permitiam nenhuma manifestação que pudesse mostrar algo diferente dos critérios canônicos ou políticos.

Dessa forma, a sugestão formou união perfeita entre a habilidade poética e o desejo de reconhecimento ao povo negro como ser humano. Por isso, sob óptica eleita para este estudo, o poeta não só modifica a conotação do cabelo que tido como ruim, agora é “Auréola negra, majestosa, ondeada”; como também transmite as sensações ao ver os cabelos negros, pois lembram trabalho e sofrimento do povo afro submisso: “Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos/ brumosos e longos pesadelos…”. Sofrimento esse que parece não ter fim: “Lânguida Noite da melancolia!”

Outra questão encarada sob uma nova óptica: a reversão de valores, é a da mulher. Ao contrário das brancas envoltas em véu de castidade, vistas como modelo da Virgem Maria e criada para serem esposas e mães castas; as negras sempre tidas como objetos sexuais, obrigadas a serem iniciadoras dos filhos dos senhores e amantes desses.

Sem dúvida, o caso do gênero feminino, em todo processo colonial, configurou-se bastante triste (e permanece). Ainda mais, se além de mulher, fosse negra. A ciência, num passado não tão distante, visualizava a mulher branca como “raça inferior do gênero”, a negra e a parda nem apareciam: As raças inferiores representavam o tipo ‘feminino’ das espécies humanas, e as mulheres representavam a ‘raça inferior de gênero’. […] Analogicamente às raças inferiores, a mulher, o desviante sexual, o criminoso, os pobres das cidades e os insanos eram, de um modo ou de outro, considerados ‘raças à parte’, cujas semelhanças entre si e as diferenças com o homem branco ‘explicavam’ suas posições inferiores e diferentes na hierarquia social (STEPAN, 1994, p. 75).

Tome-se como exemplo, a literatura. Antes do advento do movimento em prol da população afro-descendente, as negras figuraram sempre como criadas e se enamoradas: amantes. Não obtuso, se perscrutar algumas obras canônicas. Nenhuma delas trará uma negra, desprovida de extrema sensualidade, casada e principalmente com filhos. Cruz e Sousa subverte esse símbolo. Em “Corpo”, delega à mulher branca a sensualidade, a libido e o desejo sexual, carnal, bem como, as volúpias do ato há muito “apagadas”:

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas…

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!

A mulher possui a brancura angelical, mas o corpo sente as emoções próprias da carne. Tira-se a figura do anjo, do altar, da distância e dá a ela o perfume do desejo. Por outro lado, em Divina, a mulher negra é invocada pelo eu lírico com a máxima candura:

Eu não busco saber o inevitável
Das espirais da tua vi matéria.
Não quero cogitar da paz funérea
Que envolve todo o ser inconsolável.

Bem sei que no teu circulo maleável
De vida transitória e mágoa séria
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente, imponderável.

Mas o que eu amo no teu ser obscuro
E o evangélico mistério puro
Do sacrifício que te torna heroína.

São certos raios da tu’alma ansiosa
E certa luz misericordiosa,
E certa auréola que te fez divina!

Mantendo o doce tom do começo ao fim do soneto, Cruz e Sousa enaltece os sacrifícios que essa negra (a população negra), faz com forças celestiais, apesar das “manchas dessa orgânica miséria”, a ambição, a pretensa superioridade de etnias. Relega a ela o caráter de ser iluminado, de pessoa. Pelo esforço, merece ser tida como “heroína”, “divina”.

O poeta reverte os valores no que se refere à mulher branca e negra e sugere, mais uma vez, a semelhança. Como ele mesmo diz: “Eu não busco saber o inevitável Das espirais da tua vi matéria”, não importa a coloração da epiderme, ambas são mulheres, mais, são seres humanos, como tais, sentem emoções castas e profanas.

Em Faróis percebe-se, presentes no legado literário do poeta, as marcas da alteridade, da reversão de significados e busca pela igualdade humana. Valores esses que fundamentam o discurso da literatura afro-brasileira.

Apesar da forma sutil, da linguagem e estruturas canônicas, a produção de Cruz e Sousa pode ser enquadrada como afro-descendente. Não só por causa do tom de pele, mas pelos temas e ponto de vista dos quais o poeta se utilizou.

Subverteu os valores de signos, símbolos discriminatórios da população afro-descendente. Apesar de sentir diretamente o peso do preconceito, sem ofensas diretas e numa linguagem pomposa, Cruz e Souza se utilizou dos veículos do colonizador (a língua, a literatura, o soneto) para enviar sua mensagem de diferença baseada na semelhança que constitui a espécie humana.

Outrossim, o alerta a um constante refletir a respeito de julgadores e subjugados, sobre o que é ser negro e se afirmar como tal.

Fontes parciais: Bárbara Poli Uliano, mestranda pela Universidade Estadual de Londrina | Fábio de Oliveira Ribeiro | Luiz Carlos Amorim

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