Home EstudosLivros Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca

Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca

by Lucas Gomes

Considerado um dos principais livros de Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo, lançado
em 1975, teve sua publicação e circulação proibidas em todo o território nacional
um ano mais tarde, sendo recolhido pelo Departamento de Polícia Federal, sob a alegação
de conter “matéria contrária à moral e aos bons costumes”. Foi proibido pela censura
do regime militar, acusado de fazer apologia da violência. O regime autoritário, que
tentava à força encobrir os problemas que compunham a face negra do país, não suportou
a linguagem precisa e contundente dessa coleção de contos que traduzem ficcionalmente a
verdadeira fratura exposta do corpo social. A atualidade artística de histórias como
a que dá nome ao volume colabora para lastrear a reputação de um dos maiores escritores
brasileiros vivos.

Comentário sobre o conto Feliz Ano Novo

No conto que dá título ao livro, “Feliz Ano Novo”, Rubem Fonseca expõe cruamente o
contraste entre a classe marginalizada, pobre, e a burguesia, abastada e indiferente
ao que acontece na periferia citadina.

É narrado em primeira pessoa, do ponto de vista de uma personagem que assiste pela
TV aos preparativos para a chegada do Ano Novo, a propaganda de roupas novas que
serão compradas pelas “madames granfas” e imagina como será a festa dos ricos:
bailes, jóias, vestidos novos etc. Ele e os amigos decidem invadir uma casa de ricos
que estão dando uma festa e ali cometem todo tipo de agressão, incluindo a execução
final.

O conto começa com uma informação de segunda mão: Vi na televisão que as lojas
bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon.
Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque
.
Logo em seguida, o narrador nos expõe a sua situação, agora de modo direto: Vou ter que
esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros
. Com
grande economia de recursos – até porque conta com o reconhecimento fácil do leitor –
Rubem Fonseca ambienta sua narrativa. Já se sabe, desde as primeiras e escassas linhas
de que estrato social são retirados os três protagonistas dessa história. Mais algumas
frases e acumula-se o necessário para localizá-los em sua miséria: estão num lugar que
cheira mal, entre drogas, armas e objetos roubados. São negros, feios e desdentados,
insinua o narrador, que é um deles.

Usando nossas próprias informações de segunda mão, os noticiários policiais da televisão
e da imprensa escrita, dá para completar a imagem do espaço que os cerca e que faz com
que eles sejam quem são. É mais do que suficiente para os propósitos da narrativa. O que
interessa aqui é como esses três homens inscrevem em si esse espaço, transportando-o em
seus corpos. Isso pode ser observado na segunda parte do conto, quando eles invadem uma
mansão, em meio a uma festa de réveillon. Lembrando que a perspectiva seria de um dos
assaltantes, é interessante observar que a única descrição importante da casa (fora a
utilitária, de que ela tinha um jardim extenso e ficava no fundo do terreno, o que
facilitaria o assalto) é de que o banheiro do quarto da proprietária possuía uma grande
banheira de mármore, a parede forrada de espelhos e de que tudo era perfumado.

A descrição entra aí para marcar a diferença óbvia em relação à casa do narrador, onde
o banheiro cheirava tão mal que um dos amigos preferia usar a escada do prédio. É depois
de ver o banheiro da mulher que ele decide defecar sobre a colcha de cetim de seu quarto.
A cena, muito antes de ter seu significado vinculado ao pretenso desprezo do bandido pelo
luxo do ambiente, serve para confirmar o que os donos da casa e seus amigos (ou os
leitores de classe média de Rubem Fonseca) pensam sobre os marginais: como não podem ter
o que nós temos, eles destroem o que é nosso. Essa é a tônica do conto. Os três
assaltantes são apresentados como predadores do espaço que invadem. Apesar de sonharem
com a riqueza, não demonstram nenhum interesse pelo que está a sua volta – apenas
pisam, sujam, contaminam com a sua presença. Como se trouxessem, consigo, a imundície
do lugar em que vivem. E isso não está apenas no barro de seus sapatos, mas no modo
como se expressam e se comportam. Enquanto as ricas vítimas do assalto ficam em silêncio,
amarradas no chão – e nós lhes adivinhamos os modos educados e a sintaxe correta -, os
bandidos andam de um lado para o outro desajeitadamente, comem com as mãos, arrotam alto
e usam uma linguagem cujo vocabulário não abrange muito mais que três ou quatro palavrões.

Em meio a isso tudo, chama a atenção o quanto o narrador compartilha dos preconceitos de
classe média que circulam dentro e fora do livro. Logo no início do conto ele se mostra
superior aos seus comparsas pelo fato de saber ler e escrever. Mais adiante, já durante o
assalto, se enfurece quando um dos convidados pede calma e diz para levarem tudo o que
quiserem: Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para
eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles nós não passávamos de três moscas
no açucareiro
. A constatação do desprezo o atinge profundamente, desencadeando mais
violência e assassinatos, iniciados por ele próprio, que permanecia contido até ali. O que
mostra sua preocupação com o que pensam a seu respeito.

Não há, em “Feliz ano novo”, nenhuma tentativa de diálogo entre esses dois espaços tão
distantes. Se isso pode ser considerado “realista” do ponto de vista social, não deixa de
ser frustrante no que diz respeito à construção narrativa. Rubem Fonseca nos parece tão
“realista” não por nos remeter ao mundo social à nossa volta, mas por ecoar uma das formas
dominantes de representação deste mundo, o noticiário jornalístico (e, em particular, o
noticiário policial).

Assim, o conto de Rubem Fonseca apresenta um modo de ver o contato entre o marginalizado
e as elites – absolutamente vinculado ao olhar da classe média, apesar do narrador miserável
-, onde estão ressaltadas a inveja e a violência dos que nada têm, relacionando-os
incessantemente aos excrementos que produzem e dos quais fariam parte. A suposição, do
próprio narrador, de que um dos convidados pensaria neles como moscas só corrobora essa visão,
que, de certa forma, é incorporada por ele também.

O autor, em mais de um conto, aponta para possibilidade de revolta das classes
oprimidas, social e economicamente, contra o status quo. Rubem Fonseca
mostra também que a violência perpassa todos os estratos sociais, inclusive os
privilegiados, tal como se pode ver em “Passeio noturno (parte I)” onde o protagonista
deste é um homem comum, casado, pai de dois filhos, classe média alta, que sai
todas as noites com seu carro novo para sentir prazer: Saí, como sempre sem
saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente
do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei
numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?
Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei
a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então
vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser
mais fácil
) e “Passeio noturno (Parte II)”, em que o protagonista, um empresário,
sente prazer em matar desconhecidos, atropelando -os com seu luxuoso carro. Parece
ser, a violência, uma condição inextirpável de vida cotidiana nos grandes centros
urbanos.

Leia na íntegra o conto Feliz Ano Novo

         Vi na televisão que as lojas bacanas
estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também
que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
         Pereba, vou ter que esperar o dia
raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
         Pereba entrou no banheiro e disse,
que fedor.
         Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

         Pereba saiu e foi mijar na escada.
         Onde você afanou a TV, Pereba
perguntou.
         Afanei, porra nenhuma. Comprei. O
recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter
coisa estarrada no meu cafofo?
         Tô morrendo de fome, disse Pereba.
         De manhã a gente enche a barriga
com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
         Não conte comigo, disse Pereba.
Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou
preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
         Pereba sempre foi supersticioso.
Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que
quiser.
         Acendemos uns baseados e ficamos
vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
         As madames granfas tão todas de
roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as
branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas
querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam
os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
         Pena que não tão dando pra gente,
disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
         Pereba, você não tem dentes, é
vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo
que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
         Eu queria ser rico, sair da
merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
         Zequinha entrou na sala, viu
Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
         Michou, michou, assim não é
possível, disse Pereba.
         Por que você não foi para o
banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
         No banheiro tá um fedor danado,
disse Pereba. Tô sem água.
         As mulheres aqui do conjunto não
estão mais dando?, perguntou Zequinha.
         Ele tava homenageando uma loura
bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
         Ela tava nua, disse Pereba.
         Já vi que vocês tão na merda,
disse Zequinha.
         Ele tá querendo comer restos
de Iemanjá, disse Pereba.
         Brincadeira, eu disse. Afinal,
eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita
grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as
mulheres. A gente se respeitava.
         Pra falar a verdade a maré
também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não
tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo.
Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em
Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago
— pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
         Pior foi com o Tripé. Tacaram
fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de
macumba eu não como.
         Depois de amanhã vocês vão ver.
Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
         Só tô esperando o Lambreta
chegar de São Paulo.
         Porra, tu tá transando com o
Lambreta?, disse Zequinha.
         As ferramentas dele tão todas
aqui.
         Aqui!?, disse Zequinha.
Você tá louco.
         Eu ri.
         Quais são os ferros que você
tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano
serrado, e duas magnum.
         Puta que pariu, disse Zequinha.

         E vocês montados nessa baba tão
aqui tocando punheta?
         Esperando o dia raiar para comer
farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar
as pessoas de rir.
         Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
         Posso ver o material?, disse
Zequinha.
         Descemos pelas escadas, o elevador
não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
         Dona Candinha, boa noite, vim
apanhar aquele pacote.
         O Lambreta já chegou?, disse a
preta velha.
         Já, eu disse, está lá em cima.
         A velha trouxe o pacote, caminhando
com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
         Subimos pelas escadas e voltamos
para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro
Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
         É antiga mas não falha, eu disse.
         Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia,
ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro
com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de
costas na parede e deixar ele pregado lá.
         Botamos tudo em cima da mesa e
ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
         Quando é que vocês vão usar o
material?, disse Zequinha.
         Dia 2. Vamos estourar um banco na
Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
         Ele é um cara vaidoso, disse
Zequinha.
         É vaidoso mas merece. Já trabalhou
em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar
aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
         É, mas dizem que ele dá o bozó,
disse Zequinha.
        Não sei se dá, nem tenho peito de
perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
         Você já viu ele com mulher?, disse
Zequinha.
         Não, nunca vi. Sei lá, pode ser
verdade, mas que importa?
         Homem não deve dar o cu. Ainda
mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
         Cara importante faz o que quer,
eu disse.
         É verdade, disse Zequinha.
         Ficamos calados, fumando.
         Os ferros na mão e a gente nada,
disse Zequinha.
         O material é do Lambreta. E aonde
é que a gente ia usar ele numa hora destas?
         Zequinha chupou ar fingindo que
tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
         Eu tava pensando a gente invadir
uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que
compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que
tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele
paga na hora.
         O fumo acabou. A cachaça também.
Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
         Que casa? Você tem alguma em
vista?
         Não, mas tá cheio de casa de
rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
         Coloquei a lata de goiabada numa
saca de feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha.
Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de
mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
         Puxamos um Opala. Seguimos para
os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto
da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um
jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de
carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os
buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
         Eles estavam bebendo e dançando
num salão quando viram a gente.
         É um assalto, gritei bem alto,
para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí,
apaga essa porra dessa vitrola!
         Pereba e Zequinha foram
procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo
mundo, eu disse.
         Contei. Eram vinte e cinco
pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos
nem vendo nada.
         Tem mais alguém em casa?,
eu perguntei.
         Minha mãe. Ela está lá em
cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido
longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
         Crianças?
         Estão em Cabo Frio, com os
tios.
         Gonçalves, vai lá em cima
com a gordinha e traz a mãe dela.
         Gonçalves?, disse Pereba.
         É você mesmo. Tu não sabe mais
o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
         Inocêncio, amarra os barbados.
         Zequinha amarrou os caras usando
cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
         Revistamos os sujeitos. Muito
pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os
relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado
de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
         Pereba desceu as escadas
sozinho.
         Cadê as mulheres?, eu disse.
         Engrossaram e eu tive que botar
respeito.
         Subi. A gordinha estava na cama,
as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo?
O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no
corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão
armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo,
mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares,
broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da
velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o
dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes
forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado
no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a
gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha,
brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha.Foi um alívio, muito legal. Depois
limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
         Vamos comer, eu disse, botando a
fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os
miolos.
         Então, de repente, um deles disse,
calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
         Fiquei olhando para ele. Usava um
lenço de seda colorida em volta do pescoço.
         Podem também comer e beber à
vontade, ele disse.
         Filha da puta. As bebidas, as
comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no
banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
         Como é seu nome?
         Maurício, ele disse.
         Seu Maurício, o senhor quer se
levantar, por favor?
         Ele se levantou. Desamarrei
os braços dele.
         Muito obrigado, ele disse.
Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que
não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam
quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz,
calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.

         Inocêncio, você já acabou de
comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava
para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e
carreguei os dois canos.
         Seu Maurício, quer fazer o favor
de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois
metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
         Atirei bem no meio do peito dele,
esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força
contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele
tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
         Viu, não grudou o cara na parede,
porra nenhuma.
         Tem que ser na madeira, numa
porta. Parede não dá, Zequinha disse.
         Os caras deitados no chão estavam
de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
         Você aí, levante-se, disse
Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
         Por favor, o sujeito disse, bem
baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze.
Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra
a clavícula.
         Vê como esse vai grudar. Zequinha
atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um
salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o
corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
         Eu não disse? Zequinha esfregou o
ombro dolorido. Esse canhão é foda.
         Não vais comer uma bacana destas?,
perguntou Pereba.
         Não estou a fim. Tenho nojo
dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
         E você… Inocêncio?
         Acho que vou papar aquela
moreninha.
         A garota tentou atrapalhar,
mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos
abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
         Vamos embora, eu disse. Enchemos
toalhas e fronhas com comidas e objetos.
         Muito obrigado pela cooperação de
todos, eu disse. Ninguém respondeu.
         Saímos. Entramos no Opala e
voltamos para casa.
         Disse para o Pereba, larga o rodante
numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
         Este edifício está mesmo fudido,
disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
         Fudido mas é Zona Sul, perto da
praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
         Chegamos lá em cima cansados. Botei
as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta
velha.
         Dona Candinha, eu disse, mostrando a
saca, é coisa quente.
         Pode deixar, meus filhos. Os homens
aqui não vêm.
         Subimos. Coloquei as garrafas e as
comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar
o Pereba.
         Quando o Pereba chegou, eu enchi
os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.

Posts Relacionados