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Fujie (Conto da obra Malagueta, Perus e Bacanaço), de João Antônio

by Lucas Gomes

João Antônio foi comparado a Mário de Andrade por Paulo Rónai e Aurélio Buarque
de Holanda ao lerem sua primeira narrativa, cujo título, “Fujie”, significa
“mulher na montanha”. Trata-se de uma história de adultério, aparentemente
comum, não fosse a perspicácia do arranjo estilístico, do tom genuinamente
lírico que reinventa aquele velho tema.

Fujie, em suas poucas páginas, consegue envolver os leitores na sua trama. O jovem
e inexperiente narrador-protagonista relata, através de um monólogo, desde o momento
no qual conhece seu amigo Toshi, ao desencadear da história, sentindo-se, aparentemente,
um traidor. A angústia da personagem percorre toda a narrativa, pois se julga um cafajeste,
um desmerecedor da amizade e confiança do amigo. Uma relação que se inicia de uma
forma insuspeita para o narrador e que, com o passar dos anos, se fortalece:

Toshitaro, com cinco anos à minha frente, me levava pela mão direita ao judô.
Esquecia a condição de faixa preta e o 3º dan, me dava o lado direito na luta.
Dava tudo. Sujeito espetacular, enorme no tatami e fora dele. Aprendi mais com
Toshi de que com os três professores que já tive […].
Agora, íntimos […]. Vinha à minha casa, ia à casa dele. Amigão. Unha e carne
[…].
Começava a compreender que eu me completava em Toshi. Tudo de meu. Uma
chapa sem a opinião dele… Passeio sem Toshi, a mesma coisa. Teatro também,
sakê também, judô também. Tudo valendo nada […].

Diante de uma amizade tão intensa e do aprendizado que obteve com Toshi (comum à
maioria das personagens do autor), após a aparição da esposa do amigo, Fujie, o
narrador-protagonista reluta contra o novo sentimento que o toma e contra as investidas
da sensual mulher.

Uma ineficaz luta, pois já se encontra apaixonado:

E eu que não procurei nada… Está certo que sou maluco por ela. Fujie, ideal de
beleza de todas as graças que vejo nas coisas do Japão. Que me surgiu a eclodir
como o máximo. É verdade. Entretanto, nunca disse nada, nunca nem ao de
leve um gesto inusitado que demonstrasse. Sempre eu a tapar tudo […].

O desejo de possuí-la aumenta como o seu desespero também e, obcecado, tenta, de alguma
forma, inocentar-se pelo que prevê acontecer:

Se vou à varanda do laboratório de revelação. Cada vez que preciso de alguma
coisa. Cada vez que me faltam fósforos. É ela que vem. Que me procura à toa,
por banalidades. Chega -se, tira-me o cigarro da boca, acende-o e recoloca-o na
minha boca. Numa insolência que dá vontade de bater. E quando olho para
aquela janela… São os seus olhos que estão me comendo, pedindo […].
O diabo é que vivo agitado, as idéias coladas nela, nos braços, nas ancas, não
sei. Impossível desguiar. Olhei para aqueles cabelos, dei com o corpo inteiriço.
Desejei. Sonhei. Com os olhos de Fujie, sonhei, com a boca, com Fujie inteira
[…]. Quando em quando, ninguém nos vendo, leva minhas mãos a seus peitos
para sentir o calor. Beijei o seu retrato que eu havia fotografado e chorei que
nem moleque! […].

Narrado em primeira pessoa, o envolvimento amoroso entre o protagonista e a esposa
de Toshi nos é transmitido com toda a angústia e perturbação do narrador, de modo que
nós, leitores, também nos envolvemos na trama. Segundo o anônimo protagonista, a oriental,
talvez não saciada completamente, procura nele a realização de seus desejos mais secretos.
Ele, aparentemente “tímido e abobalhado”, resiste até o instante em que, convidado pela
personagem feminina, entrega-se de vez à paixão, transformando-se num cafajeste e
evidenciando, mais uma vez, a freqüente oscilação dos seres ficcionais do escritor entre
o lícito e o ilícito:

Lá fora, a chuva fazia festa no telhado. No quarto algumas moscas numa
agitação irritante. Eu só sabia que estava fazendo uma canalhice. Ia chover
mais, ia chover muito. Era chuva que Deus mandava. Eu fazia um esforço para
me agarrar à idéia de que não era culpado. Culpada era a avenida, era a noite,
era a chuva era qualquer coisa […].
Chuva lá fora, zoeira de moscas atribuladas. Dentro do quarto, amor.

Diante do fragmento acima se nota que a timidez se reverte num desejo mais forte que se
concretiza numa noite chuvosa. E esse fenômeno meteorológico adquire o poder de propiciar,
ou mesmo, incitar determinados acontecimentos imprescindíveis aos textos. A chuva instiga
o narrador a procurar a oriental que, segundo ele, o seduzia freqüentemente, a fim de
saciar os seus desejos reprimidos.

Ao fazer uso do flash back (um recurso utilizado igualmente em outras narrativas da obra,
o protagonista de “Fujie” propicia, a nós leitores, a compreensão de toda a sua inicial
agonia de “alteração na vida”, numa suposta justificativa para os seus atos. Nota-se, no
decorrer do texto, que a personagem, possuindo a seu favor o ponto de vista narrativo,
já que se trata de um relato em primeira pessoa, procura a todo o momento inocentar-se
da traição ao amigo, transferindo à esposa toda a culpa pelo ocorrido.

A narrativa é construída num tom poético, sem o qual a recordação do
narrador-personagem se perderia no tempo, impossibilitando ao leitor o presente
eterno de uma história de descobertas sensacionais. O passado do narrador-personagem
não está longe, nem terminou. Os pretéritos podem, indiferentemente, ser presente
e não criam nenhum distanciamento do tempo. Dessa forma, o tecido do estilo é
portador do movimento do desejo, pelas invocações líricas, os ritmos.

O lirismo começa concomitante à alteração lírica do sujeito narrativo, já pressagiada
no início do texto – “Alteração na vida. Meus olhos tristes” – e repetida no decorrer
da narrativa como o refrão de uma música inusitada e triste, orquestrada pela dualidade
do desejo.

João Antônio lutou judô e teve uma “fase japonesa”, como nos conta em entrevista a
Ary Quintella, freqüentando o bairro da Liberdade e se fartando da poesia do cinema de
Kurosawa, “antes que ele se tornasse objeto de ratos de cinemateca”. É essa experiência
que ele empresta ao narrador, que ao descobrir um Japão dentro do Brasil, dócil, cordato,
amigável e sensual, enfim um Japão mitificado, se vê poeticamente envolvido. O narrador
descobre lugares que a essência do prazer que eles proporcionam reúne, despertando um
gosto apaixonado pelo que acaba de conhecer. A revelação de um amor, a descoberta do
princípio de um encantamento se dá a partir de objetos usuais, convenções culturais
japonesas, mas que para o narrador é um mistério sedutor. Assim, a imersão do narrador
nesse contexto o impele a investigar o infinito sob as aparências finitas do universo,
criando mitos:

Eu nunca havia sentido nada pelas coisas do Japão. Levou-me a beber saquê nos
restaurantes da Liberdade, mostrou-me cinema. Depois gravuras depois pinturas,
tatuagens. Fui atingindo a dimensão mística de todas aquelas belezas. Percebi, por
exemplo, que naquelas mulheres passivas e tímidas e afáveis, mexendo-se dentro de
quimonos enormes quase aos pulinhos, e que o cinema me trazia entre neve e casas do
Japão, morava um mundo diferente de sensualidade. Poesia naquelas coisas.
Gostei. Como quem descobre uma maravilha, gostei.
[…] Aquilo, sim, meu Deus era um mundo.

A partir da visão lírica do narrador protagonista, a narrativa necessitará de
entrecortes fortemente poéticos para dar conta daquela nova realidade sensual, daquele
novo envolvimento. A dimensão alcançada pelo sujeito da narração diante daquelas belezas
se liga à sua disposição lírica, que pode se clarificar em serenidade mística, como
na vida uma coisa passa imperceptivelmente a outra. Assim, numa dupla disposição
afetiva lírica, escritor e sujeito narrativo, a partir daí, não tomam posição, deslizam
com a corrente da existência. Essa postura retoma a sina dos personagens de João Antônio,
que é a da busca. Nesse movimento, percebemos um itinerário, que vai da “viagem” exterior
à interior e desta a uma viagem através desses grandes espaços vagos que as palavras
bastam para engendrar. É sob tal perspectiva que o protagonista viaja pelos motivos
do Japão, revelando seu encantamento interno, que se entrevê num mundo outro, na poesia
guardada na linguagem que o constrói: “Aquilo, sim, meu Deus, era um mundo!”.

Os momentos passam a adquirir força exclusiva, os contornos se diluem, as conjunções
lógicas desaparecem, a dualidade do desejo se instala: “o cinema me trazia entre neve
e casas do Japão, morava um mundo diferente de sensualidade”. O frio da neve em contraste
com o calor da sensualidade corroboram a oposição entre aquelas “mulheres passivas e
tímidas e afáveis”, e o prenúncio da epígrafe que traz a mulher como um furacão abismal:
“Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e
nunca saciada. Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão”.

Vão se constituindo os opostos que perturbam o narrador protagonista e preparam o
leitor para o encontro com a personificação desses opostos. Os sentimentos e sensações
são despertados por um dos sentidos. O sujeito narrativo sente as coisas do Japão
tomarem uma dimensão mítica, lírica e se vê imerso num sentimento que ultrapassa,
transcende o visual, porque o assimila.

Por delinear um clima dicotômico, a narrativa pode ser dividida em dois momentos:
um entusiástico e alegre, outro triste e confuso. Num primeiro momento, o narrador
descobre, sente e se entusiasma com o Japão e com uma amizade quase sagrada.
“Toshitaro, com cinco anos a minha frente, me levava pela mão direita ao judô. Esquecia
a condição de faixa preta e o terceiro dan, me dava o lado direito da luta. Dava tudo.
Sujeito espetacular, enorme no tatami e fora dele”. O amigo lhe dava “tudo”, como que
num presságio.

Já num segundo momento da narrativa, o clima interno e externo ao sujeito é de
alteração, em que a tranqüilidade de uma forte amizade dá lugar ao desassossego que a
gratuidade da mesma pode trazer. A relação de amizade vai à intimidade, “unha e carne”, se
aproximam cada vez mais. O amigo, Toshi, se casa e o presságio introduzido pela epígrafe e
pelo refrão vão tomando corpo com o despertar da virilidade do sujeito narrativo: “Quatro
datas quase coincidentes: a primeira barba, dezoito anos, casamento de Toshi, minha faixa
marrom”. A partir daí, o conflito se instala.

E a narrativa vai delineando a mudança vivenciada pelo narrador. A alteração na sua vida
liga-se ao aparecimento de uma mulher, é o que reclama o narrador “Por que diabo há de
sempre aparecer mulher na história?”. A mesma mulher que serviu de elo para uma amizade
mais íntima, agora aparece como uma ameaça a ela. A dualidade se instala e a música do
desejo começa a tocar seu recuo e sua força. “Meus olhos tristes. Meus olhos já viajam
pouco para ela. E cada vez que se arriscam é um estremecimento, atrapalhação sem jeito.
Não fiz nada, eu não pedi nada! Eu só queria camaradagem de Toshi. Será que aquela mulher
não entende”.

Sua barba cresce, é um homem, o desejo vem e com ele o abalo de todas as estruturas,
uma força atrativa perturbadora e quase involuntária. A alteração prenunciada na primeira
frase se realiza e o sujeito narrativo começa a experimentar as tribulações do desejo. O
mesmo olhar que lhe envolveu num universo poético, lhe apresenta a poesia do desassossego.
Essa mulher, até então inominada, trabalha para ascender nele o fogo de uma paixão
inexorável. Diferente sensualidade daquela percebida nas mulheres passivas e tímidas
dançando dentro de enormes quimonos, é essa agora que se lhe aparece, ao mesmo tempo,
como serpente lhe tentando e anjo lhe dando graças:

Cada vez que me faltam fósforos é ela que vem. Que me procura à toa, por banalidades.
Chega-se, tira-me o cigarro da boca, ascende-o e recoloca-o na minha boca. Numa
insolência que dá vontade de bater. E quando olho para aquela janela… São os seus olhos
que estão me comendo, pedindo.

Ele tem medo do olhar-viagem que o toma e o faz ver além dos olhos: “Medo. Meus olhos
viajam pouco”, mas, logo em seguida, a explosão poética daquele momento permite-lhe
ver o anjo ocupar o lugar da serpente, porque em poesia o lugar físico inexiste e o desejo
pode figurar concomitantemente sua dualidade:

E eu que não procurei nada… está certo que sou maluco por ela. Fujie, ideal de beleza
de todas as graças que vejo nas coisas do Japão. Que me surgiu a eclodir como o máximo. É
verdade. Entretanto, nunca disse nada, nunca nem de leve um gesto inusitado que demonstrasse.
Sempre eu a tapar tudo.

O nome da mulher tentadora aparece e o seu desenho, começado por vagas linhas, se
completa, numa presença forte e definitiva para o narrador. Se este vê poesia nas coisas do
Japão e Fujie é o ideal de beleza dessas coisas, não tem como fugir dessa lógica, se defender
da violência dos sentimentos, das sensações que explodem no máximo de poesia. Está
irremediavelmente inebriado num jogo lírico, onde o palpável, o coerente, o real se diluem em
sensações irremediáveis. Essa eclosão reproduz o limite de uma subjetividade recôndita, num
contexto social patriarcal e machista. Um sujeito que teve suas emoções tolhidas, por tanto
tempo, não pode responder pelos seus atos quando estas lhes vêm numa explosão. Agora, ele
é um joguete de suas emoções. Os contrastes do desejo o conduzem. A agitação e o
entorpecimento que se alternam constantemente tiram-lhe a razão, preparando a absolvição da
sua culpa.

O fogo da paixão lhe inquieta:

O diabo é que vivo agitado, as idéias coladas nela, nos braços, nas ancas, não sei.
Impossível desguiar. Olhei para aqueles cabelos, dei com o corpo inteiriço. Desejei.
Sonhei. Com os olhos de Fujie, sonhei, com a boca, com Fujie inteira. Disse seu nome sei
lá quantas vezes, rabisquei-o em todos os papéis, dez, vinte, um milhão de vezes.
Amassei-os. Fiz tudo de novo. Os olhos rasgados me pedindo me comendo. Quando em quando,
ninguém nos vendo, leva minhas mãos a seus peitos para sentir o calor. Beijei seu retrato
que eu havia fotografado e chorei que nem um moleque. Primeiro abalo na minha vida. Mas
eu não disse nada.

Como quando criança que chorava calado suas angústias, chora agora o seu desejo
irreprimível. Porém, mais uma vez se cala, guarda mais uma emoção, mais uma vez tem sua
poesia interditada.

A insistência de Fujie é perene, durante meses tenta-o num jogo de sedução que o prende.
Ele tenta resistir inutilmente:

Fujie, Fujie que insiste há meses. Que tenta, que procura, que espera. Eu tímido,
abobalhado. O calor que se emana dos seios me dá vontade… fazer uma maluqueira à
frente de todos. Escorraçando-me das conversas, dos encontros de olhos […] Minha
vontade é não voltar ao estúdio do senhor Teikan. Tomar sumiço da Liberdade. Fazer
uma asneira tremenda […] Sozinhos, mostra-me a língua, numa provocação a que não resisto […] encolho-me,
esgueiro-me. Humilhado e pequeno. Se eu quisesse, lhe diria desaforos tremendos… Mas
eu nunca tive coragem.

A sua contenção, que remonta à infância, está nas reticências; desejo e resistência
contidos num duelo, no qual está prestes a se render. Quer fugir do bairro Liberdade,
inutilmente, fugir de uma liberdade inédita e preso por sua personalidade passiva.

Fujie ofusca toda a sua visão, toma todo o seu espaço externo e interno, provoca
opostos: “Fazia muito calor e chovia. Moscas agitavam-se. Mas só havia no ar, o corpo de
Fujie que eu adoro […] Fechei os olhos. Os seios quentes. Os olhos rasgados me surgiram,
tomando conta das moscas e dos bondes e de mim”.

Comum ao impressionismo, constatamos, nessa narrativa, o interesse no ambiente como um
fator que influencia o estado dos personagens. Aqui, a chuva não é apenas o cenário de
uma ação. O texto é dividido em seis partes, sendo que a última, a da entrega, logo de
início, anuncia a chuva, com pinceladas multiforme, que vão espalhando a imagem mesma
dela por toda a parte, numa repetição tanto mais freqüente, até a última frase, que
podemos ver a chuva cair. Com a descrição da chuva, há uma reação em cadeia de toda a
paisagem ao movimento de um simples elemento. Todos esses efeitos fornecem um contraponto
dinâmico ao fluxo do sentimento, ao desejo, às respostas dos indivíduos aos estímulos
mutáveis, aos efeitos difundidos de uma mudança súbita na consciência. Assim, no decorrer
dessa última parte, o protagonista se funde à paisagem e se transforma como ela e, num
impulso, satisfaz o seu desejo. Sobre essa relação da paisagem e o indivíduo, que traz à
tona aspectos impressionistas incontestáveis nessas descrições.

Numa disposição anímica, o sujeito da narrativa transforma-se no que deseja. Já que
não pode responder pelo seu olho que vê ou o seu corpo que sente, ele é o seu próprio
desejo. Está condenado, não reluta mais. Os seios quentes de Fujie, metáfora avessa do
gélido monte Fuji, carrega de sensualidade e calor a transfiguração do desejoso no
desejado. Agora, são as luzes que, num paradoxo do desejo, influenciam o seu sentido
ausente: “Luzes iam, sumiam na avenida. O luminoso de seu Teikan brilhava, se apagava,
brilhava. […] Zonzo, caminhei para ele. Ia quase chorando”. Inebriado pelo calor dos
seios, pela vertigem das luzes e, conseqüentemente, transformado no seu próprio desejo,
está felizmente condenado. Só resta-lhe satisfazer-se; nem relutar, nem chorar. O modo
abrupto com que a descrição vai da rua ao quarto dá a medida certa do avanço rápido e
decidido a caminho da sua satisfação: “Os autos me espirravam água da chuva. / Eu a enlacei”.

Como nas narrativas poéticas, o caráter do narrador e dos personagens de “Fujie” não
é previsível, e nem, moralmente, pré-fabricado. A moral masculina, tecida na primeira rede
empreendida, rui e dá lugar a um narrador fascinado, testemunho alucinado, irresponsável.
Pouco a pouco, os encontros de Fujie com o narrador, até seu auge sexual, vão apresentando
análises morais e uma recusa igualmente falhas. No momento do encontro inexorável,
qualquer culpa é absolvida, pois o sujeito narrativo se encontra embriagado pelo lirismo da
noite quente, da avenida vertiginosa, da chuva divina:

Eu só sabia que estava fazendo uma canalhice. Ia chover mais, ia chover muito. Era
chuva que Deus mandava. Eu fazia um esforço para me agarrar a idéia de que não era
culpado. Culpada era a avenida, era a noite, era a chuva, era qualquer coisa […] Chuva lá fora, zoeira de moscas atribuladas.
Dentro do quarto, amor.

As convenções morais, sociais são sublimadas pelas convenções líricas do indivíduo.
O ponto final que separa o dentro e o fora traz a imagem desse desprendimento moral: nem
chuva, nem zoeira de moscas atribuladas, os sentidos desaparecem, tudo que é externo,
conseqüentemente. Os personagens são, portanto, objetos que provocam o movimento de
Eros. Tudo fica fora, convenções, amizades, culpas e dentro o espaço se purifica e
protege um amor que se consuma.

É, enfim, uma narrativa que traz a dicotomia entre realidade e prazer. Nesse caso,
a transgressão social e moral sublimada pela poesia transforma o sujeito social em
objeto da ação poética. A realidade se transforma em fantasia, que está protegida das
alterações culturais e mantém-se vinculada ao princípio do prazer. Também o leitor
participa dessa transposição, pois os sons, os impulsos rítmicos e as imagens são
capazes de mesclar a intelecção do significado com correspondências sinestésicas entre
o universo da matéria, o seu corpo e o mundo.

Texto proveniente de:
Jane Christina Pereira
– Doutoranda em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Luciana Cristina Corrêa – Pós-Graduada em Letras da Universidade Estadual
Paulista (UNESP)

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