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Autores: 3. Modernismo – A obra de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes


Guimarães Rosa (imagem ao centro), no dia da posse na ABL, em 16 de novembro
de 1967. Cortesia IEB-USP Fundo Guimarães Rosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rosa e o Modernismo

O início da carreira literária de Guimarães Rosa aconteceu oficialmente em 1946, com a publicação do livro de contos Sagarana, ao qual se sucederam a reportagem “Com o vaqueiro Mariano”, em 1952, (incluída depois em Estas Estórias), o volume de novelas Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, em 1956; Primeiras Estórias, em 1962, Tutaméia (Terceiras Estórias), em 1967. Em 1969, após a morte do escritor, foram publicados os contos de Estas Estórias, que ele vinha preparando antes de morrer. Em 1970, foram reunidos em Ave, Palavra, textos de diversas naturezas (crônicas, discursos etc) escritos durante toda a sua vida.

O livro Corpo de Baile é publicado atualmente em três volumes independentes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.

Como já visto, a obra de Guimarães Rosa tem início na terceira fase do Modernismo e se impõe como um marco na evolução da literatura brasileira. Os textos regionalistas até então costumavam abordar os problemas brasileiros de uma maneira superficial, transportando para a literatura diversos preconceitos. Nesse aspecto, além de Guimarães Rosa, são também exceções Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

O regionalismo de Guimarães Rosa deixa de dar ênfase à paisagem para focalizar o ser humano em conflito com o ambiente e consigo próprio. Dessa maneira, as personagens revelam tanto suas particularidades regionais como sua dimensão universal, ou seja, o que elas têm em comum com o restante da humanidade.
A valorização da cultura sertaneja num momento histórico em que predominava um discurso desenvolvimentista coloca o escritor na contramão da literatura brasileira que, praticamente desde seu início, defendeu a modernização do país. Por trás da atitude de Guimarães Rosa está a percepção de que o progresso condenaria ao silêncio o mundo dos contadores de histórias.

“Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens.”

É possível comparar as diferentes relações que Guimarães Rosa e Graciliano Ramos têm com suas personagens e com o ambiente que elas habitam. Graciliano Ramos aparece como uma consciência crítica, ajudando as personagens a enxergar a miséria de sua condição material e a exploração a que estão sujeitas. Guimarães Rosa tem uma relação de simpatia e identificação com as personagens e a paisagem.

Na obra de Guimarães Rosa, as dualidades e antíteses são comuns para que o conflito do sentimento seja enfatizado. Desse modo, homem e mundo, realidade e devaneio, mundano e divino aparecem sempre em contraste e nos colocam diante de muita angústia, aridez e ceticismo; mas a poesia que perpassa tal obra nos remete a momentos do próprio mundo interior daquelas personagens que, por vezes, retratam nosso desejo de lutas, perdas e glórias.

O sertão e o mundo

Os contos e romances escritos por João Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se sobretudo pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, unindo à sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.

Em Guimarães Rosa transparece todo o misticismo do sertão, uma religiosidade quase medieval, baseada apenas nos dois extremos e marcada pelo medo, pelo pavor, em que há até mesmo a preocupação de não invocar o demo, para que ele não “forme forma”; daí o diabo ser tratado por “o que não existe” ou “o que não é mas finge ser” e expressões semelhantes.

Assim é o sertão de Rosa: ora particular, pequeno e próximo; ora universal e infinito, pois “o sertão é o mundo” ou, melhor ainda, “o sertão é dentro da gente”. Por isso, logo na abertura de Grande sertão: veredas, o autor nos situa diante do problema:

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo Jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões… O sertão está em toda a parte.”

O sertão aparece como um lugar político e econômico, mas também como um lugar metafórico e metafísico, refletindo as perturbações interiores das personagens e seus grandes questionamentos. Mais do que um lugar no espaço, entretanto, o sertão rosiano é uma região criada na linguagem, como observou o crítico Antonio Candido.

“Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos […] O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda parte.”

Em Guimarães Rosa, os elementos próprios do sertão são apenas condutores para uma abordagem dos grandes problemas do homem. Suas estórias extraem do regional a elaboração de temas universais, revelando uma visão global da existência: indagações sobre o destino, o significado da vida e da morte, a existência ou não de Deus etc.

As disputas de terra, a utilização de mão-de-obra escrava ou semi-escrava, as gritantes diferenças sócio-econômicas e culturais permeiam toda a obra de Rosa, contemporânea a questões sobretudo relativas a meio-ambiente e sustentabilidade. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo, narrador do romance, explica a seu entrevistador que, se ele foi conhecer as potencialidades ambientais e culturais do sertão, havia chegado tarde, pois, naquele momento, tudo já se achava em estado de degradação, em vias de desaparecimento.

Revolução na linguagem

“A música da linguagem deve expressar o que a lógica da linguagem obriga a crer […]. O melhor dos conteúdos de nada vale, se a linguagem não lhe faz justiça.”

A maior inovação nos livros de Guimarães Rosa é a linguagem: criativa, que explora a sonoridade das palavras, incorpora a fala regional, cria termos adaptando expressões de outras línguas. Essa novidade obriga o leitor a refletir sobre o significado das palavras para compreender a nova dimensão dada a conteúdos já conhecidos.

Sobre esse aspecto da obra de Rosa, o professor Eduardo Coutinho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esclarece: “Como tudo na vida, as formas da linguagem também envelhecem e se tornam completamente inexpressivas após uso prolongado: palavras perdem o seu significado originário, expressões se tornam obsoletas, construções sintáticas inteiras caem em desuso e são substituídas por outras. Cabe, então, ao escritor, consciente de sua missão, refletir sobre cada palavra ou construção que utiliza e fazê-la recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso. Em outras palavras, ele tem que revitalizar a linguagem”.

A fala do povo é utilizada na obra de Guimarães Rosa como linguagem literária, aparecendo não só na fala do sertanejo, mas na própria voz do narrador. Assim, o autor rompe com a tradição em que o narrador escreve “certo” e as personagens falam “errado”.

“Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um estilo próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.”

A princípio, percebe-se uma revalorização da linguagem; a seguir, a universalização do regional. O valor da linguagem particular de Guimarães Rosa não está no rebuscamento das palavras no uso de arcaísmos, mas sim nos neologismos, na recriação, na invenção das palavras, sempre tendo como ponto de partida a fala dos sertanejos, suas expressões, suas particularidades. Com isso, as palavras recriadas ganham força e significado novos, como afirma o crítico português Oscar Lopes:

“As metáforas de Guimarães Rosa são tantas e tão originais que produzem um efeito poético radical: o efeito de ressaca do significado novo sobre o significado corrente. A gente lê, por exemplo, que `o sabiá veio molhar o pio no poço, que é bom ressoador’, e não fica apenas com uma admirável vocação acústica; as palavras `molhar’ e `poço’ descongelam-se, libertam-se da sua hibernação dicionarística ou corrente, e perturbam como um reachado todavia surpreendente.”

O mesmo estranhamento que a linguagem de Guimarães Rosa provocou no crítico lusitano, podemos perceber em passagens como:

“Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:

– Êpa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez! …

E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.

– O gostosura de fim-de-mundo!…”

Trânsito livre da prosa à poesia

Guimarães Rosa aboliu as fronteiras entre prosa e poesia: seus textos são sempre em prosa, mas apresentam inúmeras características que se costumam considerar próprias da poesia, como as rimas, aliterações, onomatopéias etc. É certamente reflexo disso o fato de que as duas narrativas que constituem o livro Manuelzão e Miguilim (Campo geral e Uma estória de amor) são anunciadas no índice como poemas, porque para Guimarães Rosa importa tanto o que é dito (conteúdo) quanto como é dito (forma).

Mesmo a pontuação em seus textos não desempenha uma função ortográfica, mas estética, procurando fazer a escrita se aproximar do ritmo da fala, com travessões, reticências, exclamações, interrogações e, muitas vezes, vírgulas que separam sujeito e predicado, o que evidencia o rompimento do autor com os padrões gramaticais tradicionais, para aderir a uma estética da liberdade.

É importante ressaltar, no entanto, ainda com Eduardo Coutinho, que criando novas formas para a língua portuguesa, Guimarães Rosa “não ultrapassa, em momento algum, as barreiras impostas pela sua estrutura”.

Trabalhador detalhista, Rosa estava atento a cada palavra que compunha suas criações e um testemunho de seu processo criativo são os inúmeros cadernos, cadernetas e diários em que anotava fragmentos de realidade que depois usaria na ficção: nomes de animais e plantas, expressões, nomes de lugares e pessoas, tudo.

“Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada momento.”

Todo esse trabalho com a linguagem confere mais força ao imaginário mágico criado em suas “estórias”. Aproximando-se do que está além da realidade, o contista explora os mistérios do pré-consciente e dos mitos inseridos no ser humano. A linguagem – recriada – do sertão ajuda a revelar esse espaço como um espelho do mundo. Partindo da fala peculiar do sertanejo, o autor a submete a um processo de reelaboração e invenção que a leva a atingir significados absolutamente inesperados. Sem dúvida, identifica-se como matéria-prima o sertão brasileiro com sua fauna, flora, o sertanejo e sua cultura. Mas a magia que desabrocha desse espaço é o que garante a universalidade. O espaço torna-se uma extensão das personagens, que estão sob minuciosa investigação psicológica do autor.

Vale lembrar que João Guimarães Rosa juntamente com Clarice Lispector foram dois grandes destaques da prosa na terceira fase do Modernismo. Extremamente preocupados com a elaboração da linguagem em seu grau máximo de expressão, são chamados pela crítica de romancistas instrumentalistas. Une-os ainda o caráter de sondagem psicológica que insere suas obras entre outras grandes de cunho universalista – isto é, de abordagem de temas atemporais, que refletem a alma humana. Mas as aproximações param por aí: enquanto Clarice Lispector intensificava a abordagem psicológica, afastando seus personagens de um enredo tradicional, Guimarães Rosa preocupou-se em trabalhar enredo e suspense, descobrindo o místico em acontecimentos do cotidiano.

A musicalidade na obra de Guimarães Rosa


Guimarães Rosa com seus gatos, uma
de suas paixões (1944)

“Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer”, afirmou João Guimarães Rosa, dialogando com o crítico alemão Günter Lorenz. As confissões de Rosa a Lorenz evidenciam como o escritor pensava (e sentia) a tensão dinâmica que rege a musicalidade das palavras. O que quer dizer essa musicalidade? Todos os seus significados apresentados pelo Dicionário Houaiss – “caráter, qualidade ou estado do que é musical”; “talento ou sensibilidade para criar ou executar música”; “sensibilidade para apreciar música; conhecimento musical”; “expressão do talento musical de alguém”; e “cadência harmoniosa; ritmo” (Houaiss, 2001) – se mostram oportunos para motivar uma leitura original da obra de Guimarães Rosa.

A prosa do Corpo de Baile, ao encontrar-se tão próxima da poesia em sua essência e origem, contém uma disposição musical que transparece e faz soar sentidos inauditos. Quase desnecessário afirmar que é preciso gostar para dar um acolhimento amoroso. Gostar, verbo que vem da mesma raiz do grego geúo, quer dizer provar ou experimentar. Ler em voz alta ou silenciosamente. Circular na tríade que envolve o leitor, a leitura e o ato de ler. Musicar a obra literária na medida em que o ritmo da leitura venha trazer inevitáveis sugestões melódicas e harmônicas. Aproximar-se da sonoridade de cada palavra.

O encadeamento, a abertura das vogais e a alternância consonantal, por si sós, são elementos que têm como propriedade dar ao leitor a musicalidade do texto. No entanto, a obra de Rosa oferece mais. Faz vibrar a celebração poética dos sons constituídos nas palavras. Sons que prescindem da apreensão representacional do mundo. Palavras que confluem “na alegria de tudo, como quando tudo era falante, no inteiro dos campos-gerais…” (Rosa, 1965, p. 67). Poética no transe de sua sagração sonora, onde o nome e a coisa nomeada se fundem. Unificam-se concomitantemente no mesmo destino cósmico a presença e o som. Consagram-se.

O papel de Guimarães Rosa na Literatura Brasileira

Críticos como Antônio Cândido, Cavalcanti Proença e Benedito Nunes perceberam, desde as primeiras publicações de Rosa, a exuberante e inovadadora riqueza temática, lingüística e estrutural das obras do escritor. Em Grande sertão: veredas, a narrativa radicalmente inovadora se estrutura como um grande diálogo resultante da entrevista concedida pelo ex-jagunço Riobaldo a um homem culto que vem de fora para saber notícias do sertão no tempo da jagunçagem, de suas guerras geradas pelas truculentas disputas de poder e terras. Trata-se de diálogo, ou monodiálogo, em que se houve apenas a voz do entrevistado, como se essa fosse a hora e a vez de um sujeito subalterno pronunciar sua versão da história.

Do ponto de vista lingüístico, Guimarães Rosa operou grandes transformações na sintaxe, na morfologia, nos usos literários em geral, tendo em vista a forma como tais padrões eram empregados até então na literatura brasileira. Além de fragmentar a linearidade das frases para, por exemplo, sugerir a descontinuidade do tempo ou da linguagem oral, ele cria neologismos ou recupera arcaísmos já esquecidos da língua portuguesa. Vale-se, ainda, de construções de palavras que implicam a aglutinação de dois ou mais idiomas no sentido de obrigar sua língua literária a dizer e significar mais do que o habitual, de criar situações inusitadas, de instituir uma espécie de princípio, de inteligibilidade universal, não apenas para sua língua, mas também para os espaços e contextos em que personagens estrangeiros conseguem interagir.

Fonte: José Vinícius Pessoa, Mestre e doutorando em Letras pela UFRJ

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