Home EstudosSala de AulaBiografias Herbert José de Souza

Herbert José de Souza

by Lucas Gomes

Herbert José de
Souza, o Betinho, nasceu em 3 de novembro de 1935, em Minas Gerais, região montanhosa
no interior do Brasil cujos habitantes são conhecidos por sua mansidão, pelo
jeito calmo e sutil. “É um mineiro”, diz-se das pessoas equilibradas,
que dificilmente se exaltam ou assumem posições contundentes. Isso talvez ajude
a explicar por que Betinho, assumindo integralmente as mais radicais utopias
de transformação social, fazendo da sua própria vida uma bandeira costurada
de bandeiras universais, sempre trabalhou no sentido de congregação, da união.

A militância nos movimentos estudantis nos anos 60, a presença dos pioneiros
impulsos de renovação do cristianismo, as campanhas contra a fome e pela reforma
agrária, a luta contra os regimes militares latino-americanos , o exílio, a
anistia conquistada e a contaminação pelo vírus da aids colocaram o Betinho
sempre abrindo caminhos, contra diversas formas de medo e autoritarismo.

Terceiro de uma série de oito irmãos, completou, em 1962, os cursos de Sociologia
e Política e de administração pública na Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade de Minas Gerais. Nessa época, atuou como liderança nacional dos
grupos de juventude católica que representavam as aspirações de transformação
social, depois reforçadas com o Concílio Vaticano II, e participou das conquistas
pelas chamadas “reformas de base”. Segundo testemunho do escritor
Otto Lara Rezende, da Academia Brasileira de Letras, Betinho, nas praças públicas,
pedia tudo que os comunistas pediam – e mais o céu. Nesse período de vida democrática
do Brasil, exerceu funções de coordenação e assessoria no Ministério da Educação
e Cultura e na Superintendência de Reforma Agrária, além de elaborar estudos
sobre a estrutura social brasileira para a Comissão Econômica para a América
Latina (Cepal), da ONU. Data desse período também a sua presença nos movimentos
operários brasileiros.

Com o golpe de 64, passou a atuar na resistência contra a ditadura militar,
dirigindo organizações de cunho democrático no combate ao regime que se instalava.
No começo da década de 70, foi para o exílio e, como no poema de Brecht, trocava
de país como quem trocava de sandálias. Morou primeiro no Chile: deu aula na
Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales, em Santiago, e atuou como
assessor do presidente Allende.

Conseguiu escapar do sangrento golpe militar do general Pinochet, indo para
a embaixada do Panamá, em 1974. Seguiu depois para o Canadá e México. Exerceu,
nessa época, diversos cargos, como o de diretor do Conselho Latino-Americano
de Pesquisa para a Paz (Ipra), consultor para a FAO sobre projetos e migrações
na América Latina e coordenador do Latin American Research Unit (Laru), entre
outros. Foi, ainda, professor efetivo no doutorado de economia da Divisão de
Estudos Superiores, na Faculdade de Economia da Universidade Nacional Autonoma
do Mexico
, e diretor de Brazilian Studies, no Canadá.

Com o crescimento dos movimentos pela democratização dos meios de comunicação
no Brasil, seu nome tornou-se um dos símbolos da campanha pela anistia. Em 1979,
voltou ao Brasil e entrou de cheio nas lutas sociais e políticas, sempre se
propondo a ampliar a democracia e a justiça social. Em 1981, fundou o Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). O Ibase, uma entidade governamental,
tem como objetivo principal democratizar a informação acerca das realidades
econômicas, políticas e sociais no Brasil.

Diante da grave questão da posse da terra, que acarreta a fome e o êxodo rural
– e representa um dos principais problemas estruturais dos chamados “países
subdesenvolvidos” – Betinho desempenhou um papel decisivo na articulação
da Campanha Nacional pela Reforma Agrária, em 1983, congregando entidades de
trabalhadores rurais em busca da “terra prometida”, um pedaço de chão
onde pudessem cultivar e produzir em paz.

Na sua luta pela democratização da terra, organizou, em 1990, o movimento Terra
e Democracia, que levou ao Aterro do Flamengo milhares de pessoas contagiadas
por mais um dos delírios do Betinho. Em 1992, assumiu uma das lideranças do
Movimento Pela Ética na Política, que culminou no impeachment do então presidente
Fernando Collor de Mello, em setembro do mesmo ano.

Terminada a batalha do impeachment, o Betinho das causas impossíveis abraçou
a Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida. A campanha contra a fome ganhou
as ruas em 1993 e chegou ao final daquele ano com total aprovação da sociedade
– 96% de concordância, segundo o Ibope. Betinho metamorfoseou-se no grão da
cidadania, que se multiplica na solidariedade a cada dia.

Ao longo de sua trajetória, publicou diversos livros, artigos e ensaios, sempre
com a mesma preocupação de criticar as estruturas que tornam a vida difícil
e injusta para milhões de pessoas. Betinho nasceu hemofílico, como seus dois
irmãos, o cartunista e humorista Henfil e o compositor Francisco Mário. Os três
contraíram o vírus da aids por transfusão de sangue. No começo de 1988, seus
dois irmãos morreram, mas Betinho agregou, em sua luta pela liberdade, a denúncia
de uma epidemia que mexe em temas como medo, sexualidade e morte. Sua presença
nos meios de comunicação transformou-o em símbolo das vítimas da aids e da luta
pela saúde da população. Em 1986, fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar
de Aids (Abia).

No ano de 1994, lança a Campanha “Natal sem Fome”, que arrecada, no
primeiro ano, 600 toneladas de alimentos. Em agosto do mesmo ano, faz um pronunciamento
na ONU, na reunião preparatória para a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento
Social.

Dois momentos marcantes: a Caminhada pela Paz do Movimento reage Rio, em novembro
de 1995; e o desfile no carnaval de 1996, quando Betinho foi enredo da Escola
de Samba Império Serrano, no Rio de Janeiro. O tema foi: “E verás que um
filho teu não foge à luta”.

Quando a cidade do Rio de Janeiro empenhava-se em sua candidatura à sede olímpica,
em 1996, Betinho procurou o Comitê Olímpico Internacional e apresentou sua proposta
para a Agenda Social Rio 2004. Ainda no ano de 1997, o Ibase lançará a Agenda
Social Rio 2000 e Sempre, lutando pela melhoria das qualidade de vida no Estado
do Rio de Janeiro, por meio da implantação das metas sociais idealizadas por
Betinho.

Em, julho de 1997, num encontro com empresários de todo o Pais, Betinho lança
a campanha de adesões ao Balanço Social, uma espécie de balanço financeiro onde
os indicadores são os investimentos sociais feitos por empresas.

No dia 5 de julho deste ano, Betinho é internado no Hospital da Beneficência
Portuguesa, no Rio, vítima de uma infecção oral. Vinte e seis dias depois, pede
para voltar para casa.

Herbert de Souza morreu em sua casa, no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro,
dia 9 de agosto de 1997, com 61 anos de idade, vítima da hepatite C. em 11 de
agosto, o corpo do sociólogo é cremado. A pedido de Betinho, as cinzas foram
espelhadas em seu sítio em Itatiaia.

Formado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1962, Herbert
de Souza é o símbolo da determinação e do trabalho incansável pela cidadania,
pela restauração da verdadeira democracia participativa, pela valorização da
solidariedade e dos direitos humanos em uma sociedade injusta. Fundador, em
1986, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – ABIA, uma das primeiras
e mais influentes instituições do País, lutou pela organização da defesa dos
direitos das pessoas portadoras do HIV ou doentes com aids. A figura humana
de Herbert de Souza, o Betinho, adquiriu notoriedade definitiva como o incansável
Coordenador da “Ação pela Cidadania contra a Fome e a Miséria”, que
pretendia ir mais além de um movimento social de caráter assistencialista, inicialmente,
para aglutinar outros movimentos e iniciativas individuais e comunitárias em
todo o País. A “Campanha do Betinho” foi tão polêmica quanto popular,
a ponto de contar com o apoio expresso de, praticamente, 100% da população brasileira.
O seu sentido político maior, e razão principal da polemização em torno das
suas ações, tinha por objetivo final a promoção da cidadania, do direito ao
emprego e da luta pela terra, etapa final do programa de ação planejado, sem
dúvida, o maior legado público da vida deste brasileiro humanista.

Sociólogo dos mais atuantes na convulsiva sociedade brasileira dos anos 60,
nunca deixou de pautar a sua vida pela simplicidade e honestidade de propósitos
na participação política, no envolvimento social e na defesa dos direitos humanos.
No início dos anos 80, ajudou a fundar o ISER, Instituto de Estudos da Religião,
e, além de Presidente da ABIA, vinha se dedicando à Coordenação-Geral do IBASE,
Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas, cargo ocupado por ele até
os seus últimos dias de firme resistência física e brilhante lucidez e consciência
da realidade brasileira, que cuja perversidade da exclusão social, concentração
de renda e controle político, nunca deixou de denunciar.

Sua morte

Às 21h10min do dia 9 de agosto, momento exato de sua morte, Betinho
pesava 39 quilos e estava sendo alimentado através de um tubo nasal.
Fim emblemático para um homem que nos últimos anos havia ajudado
a colocar comida na boca de 32 milhões de brasileiros que viviam na miséria
absoluta. Betinho era hemofílico e soropositivo há pelo menos
12 anos. Teve uma existência marcada pelo sofrimento físico e pela
ameaça constante da morte.

Logo ao nascer, sofreu uma hemorragia no umbigo, quase sempre fatal para hemofílicos.
Na adolescência, uma tuberculose forçou-o a um isolamento de três
anos no quarto dos fundos da casa da família. Foi salvo pela descoberta
de uma droga chamada Hidrazida, ainda hoje usada no tratamento da tuberculose.
Nos anos 60, quando teve de se esconder do regime militar, uma úlcera
no duodeno levou-o a uma internação arriscada no Hospital das
Clínicas de São Paulo, onde foi operado, sob nome falso, por um
médico que o conhecia.

Há onze anos, uma das tantas transfusões de sangue que era obrigado
a fazer regular-mente carregou para dentro de seu corpo o vírus HIV.
“O país que ele queria salvar condenou-o à morte; foi o descaso
oficial com a Saúde que matou Betinho”, protestou Frei Betto, referindo-se
à ausência de um controle eficaz sobre o plasma dos bancos de sangue
no país. Betinho morreu em consequência de uma hepatite do
tipo B, contraída em uma transfusão de sangue recente. O frade
dominicano que conhecia o ex-integrante da Juventude Universitária Católica
(JUC) desde 1959, foi encarregado da oração de despedida. Pouco
antes de completar 30 anos, Betinho renegara a fé católica, ao
descobrir que não precisava se conservar virgem para se curar da tuberculose.

Temos sociólogos bons e medíocres.
Uns acabam professores, outros presidentes da república

(Herbert de Souza, Betinho, sociólogo)

Otimista, Betinho acreditava na descoberta da cura da AIDS. Mas ela não
chegou a tempo de alcançá-lo. Antes de enfrentar o próprio
destino, o sociólogo assistiu às mortes de dois de seus sete irmãos,
o cartunista Henfil e o músico Chico Mário. Ambos hemofílicos
como ele e vítimas de transfusões sanguíneas.

Nos últimos momentos de lucidez, pediu ao filho Daniel para ouvir músicas
de Vivaldi, enquanto saboreava uma cerveja gelada. Betinho deixa também
uma herança sonora. O disco “Canto da Cidadania” está
sendo gravado em Belo Horizonte, será lançado em setembro e a
renda revertida para a campanha contra a fome.

Nele, uma letra inédita de Betinho, no estilo característico
do matuto mineiro. “Às vezes a vida, o sofrimento, as injustiças
é maior que nóis./Mas se a gente acreditá numa luzinha
que mora no fundo de dentro da gente, a gente vorta a sonhá./Vorta a
sabê que nóis, que gente foi feito prá inventá o
mundo de novo, prá muda e desmudá, carregando alegria.”

A família atendeu ao último pedido de Betinho. Seu corpo foi
cremado e as cinzas polvilharam o solo do sítio que ele tinha em Itatiaia,
região de montanhas. Em breve, vão nascer ali alguns pés
de pequizeiros, que nas madrugadas do futuro vão deixar cair seus frutos
e ajudar a saciar a fome dos matutos brasileiros.

Posts Relacionados