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Horto, de Auta de Souza

by Lucas Gomes

O livro Horto, de Auta de Souza, é a história de uma
grande dor. Formou-o a autora recordando, sentindo, penando. Não se tratava
apenas de um relato de vida em versos, tampouco de uma escritora feminina oitocentista,
preparada apenas para amar Cristo sob todas as circunstâncias, ela também
rompia as barreiras da escrita feminina, pois nessa época, a sociedade
estava voltada em especial, para conferir visibilidade social ao homem, não
a mulher, havia o sexismo da crítica, a figura femina era prepaprada
para “anjo do lar”.

Sua poesia é dotada de um lirismo cheio de pureza e com uma vocação
legitimada que marca um estilo próprio, vocação essa reconhecida
por ela mesma, ao se definir como “noiva da poesia”, amava o verso.
Despreocupada com qualquer engajemento literário, não se filiou
a nenhuma escola. O gosto pelo individual em detrimento a objetividade da vida,
mística de seus versos, permite o questionamento dos críticos
literários em torno de seu estilo: simbolista? parnasiano? romântico?
Do ponto de vista da técnica inconfundível do uso de letras maiúsculas
nos substantivos comuns, na busca de evidenciar um conteúdo sugestivo
e ainda, se considerarmos o caráter místico e religioso de sua
obra, revela-se o Simbolismo, a exemplo disso “Crepúsculo”:

O Ângelus soa vagarosamente
A noite desce plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
chorando a tarde, a noiva peregrina.

Evidentemente o título do livro Horto, numa construção
metafórica, faz menção ao local em que Jesus se refugiou
para os seus últimos momentos de agonia na cruz e menção
ao interior do eu-poético, marcando assim a religiosidade e o subjetivismo,
marcas também do Simbolismo. Percebe-se que em seus escritos também
se refletem as leituras de românticos como Castro Alves, Álvares
de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias, esses
dois últimos responsáveis pela entrada da literatura em sua vida.
Não há como negar que o estilo desses autores se presenteia em
sua poesia, há um forte apelo do momento com marcas de romantismo. Atrelando-se
a esse estilo, de certa forma o Simbolismo, que é nela uma continuação
do Romantismo, tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização,
o subjetivo, o vago, o misterioso, o ilógico, há sim um neo-romanatismo,
até porque os dois em sua obra não se anulam, se complementam.

Há ainda um inegável conhecimento da forma: soneto com 16 versos,
que abre com os dois primeiros decassílabos do segundo quarteto, como
epígrafe:

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da igrejinha em ruínas…

Um prestígio parnasiano em sua obra, o que explica a presença
de Olavo Bilac como responsável pelo prefácio da obra. O poeta
compartilha com a criação poética de Auta de Souza ao fazer
referência à obra “Horto”: “[…] O labor
pertinaz de uma artista, transformando as suas idéias, as suas torturas,
as suas eperança em pequenas jóias
”.

Tratava-se antes de tudo, de uma jovem solitária que buscava em sua
poesia a aceitação da existência, versos de sua alma e a
razão de viver. Trata-se de uma poeta do “sensível”
e “invisível”, que põe em seus versos o discurso de
Jesus, num diálogo de confiança.

[…] “Filha adorada que o teu gemido
Ergueste n’ asa de uma oração,
Na treva escura sempre envolvido,
Por que soluça teu coração?”
[…]

Nos versos da poeta pode-se estabelecer uma relação do sentimento
de vida do eu poético comparando-os ao momento de sofrimento de Jesus
na cruz, Auta de Souza sofreu unida à cruz do Salvador. E foi esse o
grande e iluminoso consolo, principalmente para familiares e amigos que viam
a cada momento definhando uma jovem pela doença conhecida como mal-do
século (tuberculose), também como “A dama branca”.
Não se pode esquecer que o modelo católico ocidental da época
preparava as moças católicas para a morte, identificando-a com
os sofrimentos do Cristo.

Em palestra pronunciada em Macaíba, pequena cidade Rio Grande do Norte,
no dia 12 de setembro de 1976, em comemoração ao centenário
de nascimento da poeta (1876-1976), o professor e membro da Academia de Letras,
José Melquiades, considerou exagero a afirmação de que
a poesia de Auta de Souza fosse apenas uma poesia essencialmente católica.
Se considerarmos o poema “Versos ligeiros”, percebemos a amplitude
de uma escritora que não está emblemática a um tema, mas
sim a um “devaneio cósmico que se insere em sua realidade”,
que ousa quebrar tabu e que não deve apenas ser reconhecida como poesia
“católica”, mesmo que seus textos sejam marcados com alusões
aos cânones católicos e influência de formação
da época. Na obra, eles são reisignificados como
metáforas, numa busca do eu-poético em alcançar a plenitude
em Jesus Cristo, independentemente de sua condição humana . Ela
deixou sim, uma mensagem espiritual, não apenas para igreja, mas para
as crianças de sua terra, para a sua família, para os amigos,
desnudando o seu cotidiano de forma sublime, poética e não divina.
Assim, a sua poesia como “Num leque”, abre-se para possibilitar
um sopro novo e não apenas crenças cristalizadas. É possível
perceber em Auta de Souza uma poesia simples, mas madura, que rompe a barreira
de um Romantismo “piegas” e navega na imaginação “doce”
de uma realidade “dura”, marcada muitas vezes pelo realismo que
se projeta em temas do cotidiano, a conferir-lhes em sua obra os poemas: “Versos
ligeiros”, “No álbum de Dolores”.

“A noiva do verso” despediu-se cedo da vida, não cantou
“amores” como era de esperar de uma jovem de sua idade, a convivência
com “a dama branca” impedia-lhe de uma vida natural e assim o sofrimento
diário, junto à intimidade do verso, levou-a uma relação
maior com um outro amado, Jesus Cristo, sentimento esse que aparece como exemplo
de contemplação ao divino e refúgio para lhe aliviar o
constante sofrimento. “A via crucis de Jesus” se repete no livro
Horto, através de um eu lírico carregado de um sentimento
panteísta que junto ao cotidiano dessa jovem poeta, promove a transformação
do universo poético e místico em um sentimento paradoxal de viver
e morrer em plenitude.

RENASCIMENTO

A Olegária Siqueira
Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!
Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto!

Créditos: Adelina Maria, especialista em Literatura, professora
de Língua Portuguesa e Literatura

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