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Sociedade e Comportamento – Impunidade no Brasil – Colônia e Império (parte 1)

by Lucas Gomes

IMPUNIDADE SIGNIFICA falta de castigo. Do ponto de vista estritamente jurídico, impunidade é a não
aplicação de determinada pena criminal a determinado caso concreto. A lei prevê para cada delito uma
punição e quando o infrator não é alcançado por ela – pela fuga, pela deficiência da investigação ou, até
mesmo, por algum ato posterior de “tolerância” – o crime permanece impune.

Conforme o brocardo latino, impunidade estimula delinqüência: Impunitas peccandi illecebra. No Império,
era ineficaz a criminalização do tráfico de escravos. Hoje parecem ineficazes as tentativas de repressão à
pedofilia na Internet: há como punir, aqui, a distribuição de fotografias de exploração sexual de crianças,
mas não há como impedir a utilização de ferramentas de busca que permite a satisfação do desejo proibido em
sites do leste europeu.

Não punir nos termos da lei, por outro lado, pode ser gesto de engenharia governamental, como foram os
decretos de anistia, necessários para a pacificação das rebeliões do período da Regência, ou como são os
costumeiros indultos de Natal, importantes para a distensão das prisões superlotadas.

Do ponto de vista político, o significado é mais amplo. Fala-se em impunidade não apenas quando se verifica
a incapacidade ou a falta de disposição de o Estado fazer prevalecer a punição estabelecida, mas também
quando a própria lei e/ou o magistrado que a aplica são considerados benevolentes para com determinado ato
criminoso. Assim, há pessoas que consideram brandas as atuais penas do homicídio culposo (decorrente de um
ato punível não intencional), ou impróprio o princípio da responsabilidade penal apenas aos dezoito anos,
ou inadequado o princípio geral da presunção da inocência que assegura ao réu primário responder ao
processo em liberdade, ou necessária a existência de punições exemplares, como a injeção letal ou a prisão
perpétua, para transgressões mais graves etc.

A questão da impunidade está no centro do debate político brasileiro e, dado o caráter aparentemente
inexorável, pelo menos a curto prazo, da exclusão econômica e social – o motor principal da violência -,
ele tende a ser cada vez mais intenso, passional, ruidoso. Mesmo setores “progressistas”, tradicionalmente
mais sensíveis ao que se convencionou chamar “direitos humanos”, pressionados pelo tom pragmático das
disputas eleitorais, já adotam um discurso relativo à criminalidade urbana que, poucos anos atrás, era
monopólio de uma “direita não esclarecida”.

Há, de fato, um aumento vertiginoso da violência, assim como da população carcerária, há um sentimento de
insegurança geral, assim como um investimento crescente de recursos públicos (desviados de outros setores
carentes) para a construção de presídios e para o aparelhamento das polícias, e os juízes são cada vez mais
rigorosos na aplicação das leis penais, que, por sua vez, são cada vez mais drásticas. Mas não há um
projeto de segurança pública que ultrapasse a idéia de punir.

O sonho dourado das elites brasileiras é a repetição, abaixo da linha do Equador,
do espetáculo punitivo patrocinado nos EUA, onde, de fato, em virtude de medidas
aparentemente mágicas, como a “tolerância zero”, os índices de criminalidade decresceram
nos últimos trinta anos. Em contrapartida, o país têm a mais alta taxa de encarceramento
do planeta: dados do Departamento de Justiça indicam que, em junho de 2003, havia
2.078.570 homens e mulheres presos nos Estados Unidos, um número assombroso, superior
ao dos desempregados da região metropolitana de São Paulo (2,044 milhões) em abril
de 2004, segundo pesquisa da Fundação Seade/Dieese.

O objetivo deste artigo não é fazer a anatomia da impunidade criminal no Brasil ou encontrar supostas
raízes históricas para o sentimento de insegurança da imensa maioria da população brasileira. Trata-se,
apenas, de um olhar retrospectivo: a impunidade sempre esteve na ordem do dia.


Filipe II, rei de Portugal
Decretou as Ordenações Filipinas,
em 1603

Antes de qualquer consideração sobre a efetividade da punição criminal no Brasil Colônia é preciso ter em
mente que a marca preponderante das Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) que vigoraram
aqui, na parte penal, até 1830, era a severidade extrema. A mutilação física fazia parte das regras do
jogo. A pena de morte era estabelecida para a maioria das infrações. Como lembra António Hespanha, conta-se
que Frederico o Grande, da Prússia, ao ler o Livro V das Ordenações, no século XVII, teria perguntado se
em Portugal ainda “havia gente viva.”

Hespanha ressalta, porém, que o direito penal no Antigo Regime, em termos de punição efetiva,
caracterizava-se “mais do que por uma presença, por uma ausência”. A falta de efetividade decorria de
vários fatores, a começar pelos “conflitos de competência”, que prolongavam infinitamente os processos,
até questões de natureza prática, como a deficiência logística e a incapacidade de controle, por exemplo,
do cumprimento da pena de degredo no ultramar. O historiador sustenta que até a pena de morte, de aplicação
momentânea, era, estatisticamente, muito pouco utilizada em Portugal.

Outro aspecto importante da não-efetividade do direito penal escrito no período
era o caráter massivo da política de perdão, decorrente de necessidades conjunturais
– como o esvaziamento de cárceres – e da própria legitimação ideológica do poder
real: “A mesma mão que ameaçava com castigos impiedosos, prodigalizava, chegado
o momento, as medidas de graça. Por esta dialética do terror e da clemência, o
rei constituía-se, ao mesmo tempo, em senhor da Justiça e mediador da graça”
.
O perdão não tinha o caráter de imprevisibilidade que, teoricamente, o caracteriza:
era um “expediente de rotina”.

É só a partir da segunda metade do século XVIII, com o “despotismo iluminista”, que novas intenções iriam
vigorar em Portugal, entre elas a de conversão do direito penal da Coroa “num instrumento efetivo,
funcionando eficazmente e sendo, por isso, crível e temido”.

Uma carta régia de D. João V ao corregedor do crime (a redação do documento é
atribuída ao ministro e diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão) explicitou,
em 1745, como orientação, a não-efetividade das Ordenações: “[…] as leis
costumam ser feitas com muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com
aceleração, e … nos casos crimes sempre ameaçam mais do que na realidade mandam
[…]”
.

Pois bem, era da tradição portuguesa que o instituto do perdão fosse utilizado para fins de povoamento.
Vilas como Marvão, Sabugal e Miranda, em algum momento, foram declaradas locais de refúgio, coutos, onde
criminosos foragidos podiam se instalar, “sem temor de nossas justiças”. Com o Brasil não seria diferente.

Logo após a divisão do território da colônia em capitanias hereditárias, uma carta de privilégio de D. João
III estabeleceu que, exceção feita aos crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa, qualquer pessoa
que estivesse “ausente”, por qualquer delito que tivesse cometido, não poderia aqui “ser presa, nem
acusada, nem proibida, nem forçada, nem executada, de maneira alguma”.

A distância de Portugal e as precárias condições de vida na colônia representavam, por si só, uma grave
punição. O degredo para o Brasil, depois estabelecido formalmente como pena criminal e aplicada em escala
importante pelos tribunais civis de Portugal e pela Inquisição (a ponto de prevalecer na historiografia
tradicional a idéia de que a vinda de colonos “de má qualidade” fosse um dos nossos defeitos de formação),
era medida severa. Mas a transformação do território brasileiro em local de couto e homizio talvez seja o
mais remoto reflexo da questão da impunidade entre nós.

Os governadores e seus ouvidores dispunham do poder de julgar escravos, o “gentio”,
“peões e cristãos e homens livres”, até em caso de “morte natural”, mas a necessidade
do povoar era imperiosa. Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco,
escreveu pelo menos quatro cartas ao rei reclamando da vinda dos degredados, “que
nenhum fruto nem bem fazem na terra”, revelando essa contradição. Diria ele em
1546: “[…] o que Deus nem a natureza remediou, como eu posso remediar, Senhor,
senão com cada dia os mandar enforcar […]”
.

A instalação do governo-geral, em 1549, revogou, em parte, o poder judicial fracionado
entre os donatários. Com a fixação de uma autoridade suprema, Tomé de Souza, seu
corregedor, pôde ingressar nas diversas capitanias e, assim, distribuir justiça.
Capistrano de Abreu explica que “estando as capitanias na condição de estados
estrangeiros relativamente às outras, impossibilitava-se qualquer ação coletiva:
os crimes proliferavam na impunidade, a pirataria surgia como função normal …”
.
O projeto era estabelecer na colônia uma organização mais vigorosa, centralizada,
“forte bastante para garantir a ordem interna”.

Os relatos da administração Tomé de Souza indicam que ele exerceu o poder de punir
conforme as conveniências do momento. Ainda no ano da fundação de Salvador, morto
um colono por um índio e exigida a entrega do “criminoso”, este, por ordem do
governador-geral, foi amarrado à boca de um canhão e atirado “pelos ares, desfeito
em pedaços”. O simbolismo do ato seria captado por Robert Southey: “Mais humano
para o padecente, mais terrível para os espectadores, não há suplício imaginável.
Encheu de terror os Tupinambás e foi útil lição aos colonos […]”
.

Porém, para dois franceses presos no sul do país, em 1550, por contrabando de
pau brasil – atividade que a Coroa considerava intolerável -, o futuro seria diferente.
Em carta ao rei, Tomé de Souza se justificaria depois: “Não os mandei enforcar
porque tenho necessidade de gente que não me custe dinheiro”
, ressaltando,
no entanto, que “daqui por diante se fará o que Vossa Alteza mandar”.
O ferreiro, “hábil homem”, fazia “bestas e espingardas e todas as armas”, e o
outro, que era “língua”, ficou “aferrolhado” a um “bergantim”.

Em 1553, os crimes praticados na colônia antes da chegada do primeiro governador-geral
foram perdoados, “não havendo parte que acuse e residindo o criminoso algum
tempo nas povoações”
. O perdão não alcançou, evidentemente, heresia, sodomia,
traição, moeda falsa e, acrescente-se, morte de homem cristão.


Manuel de Borba Gato,
bandeirante

Vejamos outros episódios de perdão por conveniência, agora no século XVII. D. Fernando Mascarenhas, o
primeiro conde da Torre, comandante da armada que em 1639 veio ao país para combater os holandeses, lançou
na Bahia um bando (proclamação) incentivando o alistamento para a “guerra de Pernambuco” e assegurando que
quem tivesse “alguma culpa”, excetuados os casos de lesa-majestade, divina e humana, sodomia e moeda falsa,
a pena seria comutada: terminada a luta, estariam “desobrigados”. Em 1678, um bando na capitania de São
Paulo concedeu perdão aos criminosos, exceto para casos de lesa-majestade divina e humana, que se
apresentassem para “entrar para o sertão” com D. Rodrigo de Castelo Branco “em descoberta de minas”. Em
1682, Borba Gato seria formalmente acusado pela Câmara de São Paulo de ter assassinado o mesmo D. Rodrigo.
Depois de vagar pelo interior, foragido, o bandeirante seria perdoado em nome do rei. Raimundo Faoro
registra: “o indulto foi negociado, com a revelação das minas”.

Castigo existia, sobretudo para índios, escravos e peões. O pelourinho, símbolo da justiça, era monumento
obrigatório nas vilas e muita gente permaneceu presa, indefinidamente, à espera de julgamento, em uma época
em que a prisão, especificamente, não existia na lei como pena. As “guerras justas” , empreendidas contra
nações indígenas, promoveram extermínio e escravidão: como retaliação, os caetés foram praticamente
extintos após a morte do primeiro bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, no repasto antropofágico
(1556). Mas a partir do exame da aplicação formal da pena de morte, para crimes comuns (em contraposição a
delitos militares, políticos e religiosos), é possível verificar a não- efetividade do direito penal no
Brasil, tal como escrito nas leis.

Em 1557, um alvará estabeleceu que, da condenação a “morte natural” em “peões
cristãos, homens livres, haja sempre apelação dos capitães da terra do Brasil
para mor alçada”
– medida que limitou bastante o poder judicial das capitanias.

Com a efetiva instalação do Tribunal da Relação na Bahia, no século XVII, essa perda de poder e de
efetividade punitiva seria ainda mais acentuada – seja pela distância entre o local do crime e o local da
punição (Salvador), seja pelas delongas burocráticas. Em 1616, um alvará reduziu para dois,
excepcionalmente, o número de votos necessários para a confirmação das sentenças de morte na Relação: é
que, desfalcado o tribunal, os réus permaneciam longos períodos nas cadeias à espera do veredito.

Havia também uma aparente insegurança institucional. A Coroa foi consultada sobre a condenação à pena de
morte, pelo Tribunal da Relação, de dois franceses e de dois ingleses, presos em Ilha Grande, capitania do
Rio de Janeiro, por tráfico de pau brasil. A resposta (1614) foi um inequívoco puxão de orelha nos
magistrados, por “haverem dilatado a execução”. Lisboa ordenou “que para o diante se não faça mais”, mas,
paradoxalmente, comutou a pena de morte dos quatro estrangeiros “em degredo para sempre nas galés”.

A impossibilidade de aplicação da pena de morte nas próprias capitanias incomodava as autoridades locais e
era considerada fator de incentivo à criminalidade.

Evaldo Cabral de Mello narra o episódio, no contexto da Guerra dos Mascates (1710-1711), de libertação dos
presos de Olinda, inclusive os que eram acusados de “judaizarem”. Só um preso, o escravo conhecido como “o
Aferventa”, réu que “havia muito” esperava o julgamento pelo Tribunal da Relação, “distante e lerdo”, não
seria solto, mas “arcabuzado”, como protesto pela recusa da Coroa em dar à justiça local “competência para
sentenciar à morte”. Desde os anos de 1670, a Câmara de Olinda pleiteava o poder de condenar, sem apelação,
“escravos, índios ou peões, homens livres de condição subalterna”.

Em 1721, Rodrigo César de Menezes, governador de São Paulo, escreveu ao vice-rei, seu irmão, afirmando que
matar gente é “um vício muito antigo em os naturais desta cidade” e que havia mandado levantar a forca “na
mesma parte em que antigamente estava”, para que, à vista dela, “se pudessem abster de continuarem
semelhantes delitos”, mas advertiu: “isto não bastará sem que vejam castigados aqui os delinqüentes”.

Ao longo do século XVIII esse quadro se modificou. O poder de condenar à morte pessoas despidas de
qualidade superior, sem apelo, foi conferido a governadores e ouvidores de diversas capitanias,
paulatinamente, com a criação de juntas de justiça. O objetivo era acabar com a impunidade. A carta régia
que concedeu esta jurisdição às autoridades de Minas Gerais, em 1731, justificou a medida pelos “muitos e
continuados delitos que se estão fazendo […] por bastardos, carijós, mulatos e negros” porque “não viam
o exemplo de serem enforcados”.

O processo de colonização do Brasil permitiu que sobretudo nos centros políticos
periféricos, se formassem núcleos de mandonismo e redes de proteção que, na prática,
inviabilizavam a aplicação da lei penal. Frei Vicente de Salvador relata as dificuldades
encontradas pelo quarto governador-geral, Luis de Brito, para efetuar a prisão
(ordenada pelo rei de Portugal) de um homem, “aliás honrado e rico”, mas que “era
cruel em alguns castigos que dava a seus servos fossem brancos ou negros”, protegido
pelo bispo D. Antônio Barreiros. Três séculos depois, Nabuco de Araújo, ministro
da Justiça do imperador Pedro II (1853-1857) estaria empenhado em uma autêntica
cruzada contra o poder paralelo profundamente enraizado, disparando cartas aos
presidentes da províncias, ora reclamando de um crime de morte praticado por uma
“famigerada família” da Paraíba e da “indiferença da autoridade”, ora incentivando
os sinais de “energia” com que se perseguia o crime em Alagoas, ora orientando-os
a não terem escrúpulos de algum excesso que pudessem cometer. Seu biógrafo e filho
registra:

A indiferença da população diante dos crimes mais atrozes, a convivência de
todos com criminosos de morte, o sistema de vingança, o bárbaro feudalismo, que
transforma o morador em “capanga” ou em “espoleta” do potentado local, colocavam
a sociedade em muitos pontos do interior em uma espécie de estado de sítio permanente.
Nabuco por vezes esboçara na Câmara esse quadro de impunidade, a sobranceira das
influências que se encastelavam nas suas propriedades e desafiavam a justiça que
lá não ousava penetrar.

A situação não passou despercebida pelo olhar estrangeiro. O navegador Louis Antoine
de Bougainville, que esteve no Rio de Janeiro em 1767, ao mencionar conversa mantida
com o vice-rei sobre a promessa de punição do autor de homicídio ocorrido dias
antes, revelou-se cético: “é sabido que o ‘direito das gentes’, nessas plagas,
é inexistente”
. Henry Koster, que viajou pelo nordeste entre 1809 e 1815,
ao se referir à “moral” do sertanejo, dizia que “as ofensas muito dificilmente
são perdoadas e, em falta da lei, cada um exerce a justiça pelas próprias mãos”
.

Outro traço revelador da impunidade decorre do tratamento diferenciado dos segmentos
sociais, na colônia e no império, o que seria percebido por outro viajante, Johann
Jakob von Tschudi, que, interessado no estado das colônias suíças, visitou o país
na década de 1860: “quantas vezes aconteceu no Brasil que um homem rico e
influente tivesse sentado no banco dos réus a fim de se justificar de seus crimes?”

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Fonte: Luís Francisco Carvalho Filho, advogado, articulista da Folha de S. Paulo

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