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Sociedade e Comportamento – Impunidade no Brasil – Colônia e Império (parte 2)

by Lucas Gomes


No local apontado pela seta, onde é hoje a pista de
atletismo do Colégio Estadual “Luiz Reid”, foi montada
a forca que executou Coqueiro, a “Fera de Macabu”

Na época das ordenações foi rara a aplicação da pena de morte em pessoas de qualidade. A forca (com ou sem
o agravamento da mutilação posterior do cadáver), como pena desonrosa que era, não se aplicava a fidalgos,
executados, sempre, conforme o costume, pela degola no patíbulo ou no pelourinho.

Quem vasculhar os relatos da punição criminal no Brasil não encontrará mais do
que um punhado de casos envolvendo a elite de então – todos executados em Salvador.
Paulo de Carvalhal, degolado pelo assassinato, em 1607, de Francisco de Barbuda,
septuagenário e cavalheiro da casa real. Coronel Fernão Barbalho Bezerra, senhor
de um engenho na freguesia da Várzea, em Pernambuco, degolado em 1687 pelo assassinato
da mulher e de três de suas filhas, porque, “irado”, suspeitou que uma delas,
justamente a que conseguiu escapar da “carnificina”, recebia “a certo amante,
que coberto com o véu da noite se atrevia a profanar o seu lar doméstico”. Em
1721, foi a vez do coronel Antônio de Oliveira Leitão, pelo assassinato em, Vila
Rica, Minas, de sua própria filha, que suspeitava ter uma relação amorosa não-autorizada.
José Gurgel do Amaral, “célebre criminoso” em Minas, degolado em 1722, em “alto
cadafalso”. Em 1723, João Leme da Silva, preso em Itu, São Paulo: “a degola
era uma forma de suplício honroso, em que se reconhecia a nobreza dos bandeirantes”
.
Finalmente, conforme relato do Conde de Sabugosa, em 1732, foram decapitados o
mestre de campo Domingos Dias do Prado e seu irmão coronel Francisco Dias do Prado,
“filhos de S. Paulo, e das principais famílias daquela capitania”, pelos excessos
que cometeram. Em matéria de crime comum, não aparecem outras ocorrências.

No Império também seriam raras: num país acostumado ao enforcamento de escravos e assassinos pobres, a
execução do fazendeiro Manuel da Mota Coqueiro, a “fera de Macabú”, em Macaé, no Rio de Janeiro, em 1855,
foi uma exceção. O caso, situado no “ápice” da já mencionada luta da Nabuco de Araújo contra a impunidade,
entraria para a história, ironicamente, como erro judiciário.


Prisão de Felipe dos Santos,
Museu Antônio Parreiras, Niterói – RJ

O outro lado da moeda: a impunidade do arbítrio. Filipe dos Santos, o único enforcado
pela Revolta de Vila Rica, em 1720, foi vítima de um julgamento sumário, caracterizado
pelo atropelamento “das comezinhas fórmulas”. O Conde de Assumar, em justificativa
dirigida por carta ao rei de Portugal, diria depois: “Sei que não tinha competência
nem jurisdição para proceder tão sumariamente… mas uma coisa é experimentá-lo,
outra ouvi-lo; porque o aperto era tão grande, que não havia instante que perder”.
José César de Menezes, governador de Pernambuco entre 1774 e 1787, “infatigável
na punição dos delinqüentes”, seria lembrado depois por ter mandado executar um
famoso e sanguinário bandoleiro, “Cabeleira”, a despeito de apenas um dos membros
da junta de justiça (instituída na capitania em 1735) ter votado a favor da pena
de morte. Em 1834, Pinto Madeira foi executado, no Crato, Ceará, não como rebelde,
mas como assassino, sem que as autoridades locais lhe concedessem o direito de
recorrer da sentença, conforme a regras processuais em vigor34. Um despacho do
Ministro da Justiça Gama Cerqueira (1877) sobre a extinção de um quilombo em Iguaçu,
província do Rio de Janeiro, é peça eloqüente sobre o abismo entre a lei e a prática:
“Os meios empregados para suprimir esse valhacouto de ladrões, constante ameaça
contra os lavradores da circunvizinhança, não são dos mais confessáveis, mas surtiram
excelente efeito. Igual não resultaria de mais regulares”. Para o ministro, “na
esfera da atividade da polícia nem sempre é possível proceder de modo irrepreensível
perante a lei”
.

No processo de consolidação da Independência, dois episódios patrocinados por oficiais estrangeiros a
serviço do Império do Brasil chamam a atenção pela indiferença das autoridades.

Em novembro de 1822 foram executados, sem processo, 51 negros aquilombados a mando
do general francês Pedro Labatut, comandante do Exército Pacificador da Bahia.
Segundo o relato do próprio Labatut, “mesmo presos e amarrados, insultavam
os nossos com o nome de ‘caibras’, que lhes foi ensinado pelos lusitanos; eu os
mandei fuzilar […]”
. João José Reis assinala ser esta “a mais brutal punição
contra escravos rebeldes baianos que se tem notícia”.


John Pascoe Grenfell

Em Belém, província do Pará, em outubro de 1823, o oficial inglês John Pascoe
Grenfell determinou o aprisionamento de 256 soldados e paisanos, envolvidos em
“desordens”, nos porões do brigue Diligente, ancorado no porto, dando ensejo a
uma experiência precursora de massacre de presos que jamais deixaria de ocorrer
entre nós. A descrição, a partir do relato de quatro sobreviventes:

“Encerrados ou atochados em tão estreito recinto, esses infelizes, que pertenciam
a diversos partidos e cores, que convinha extremar, romperam logo em gritos e
lamentos, exasperados pelo calor e falta de ar, que experimentavam, ouviram-se
algumas ameaças contra a guarnição de bordo […] Seguiu-se um violento frenesi,
sucedido logo depois por acessos de raiva e furor, que os levou a lançarem-se
uns contra os outros […] A bárbara guarnição do navio […] dirigiu alguns tiros
de fuzil para o porão e derramou dentro uma grande porção de cal, cerrando-se
logo a escotilha […] Por espaço de duas horas ainda se ouviu um rumor surdo
e agonizante […] Eram sete horas da manhã do dia 22 quando se correu a escotilha
do navio em presença do comandante […] Um monte de duzentos e cinqüenta e dois
corpos, mortos, lívidos, cobertos de sangue, dilacerados […]”
.

Como informa o Barão do Rio Branco, Grenfell seria submetido a conselho de guerra,
mas como a ele “nenhuma responsabilidade podia caber pela desgraça ocorrida a
bordo do Diligente”, foi absolvido, depois promovido a almirante e lembrado como
um “dos maiores nomes da nossa História Naval.

Nossos príncipes também exercitaram a dialética do terror e da clemência. D. João
VI, ao ser coroado no Rio de Janeiro, determinou o encerramento das devassas da
“revolução pernambucana” de 1817 e concedeu perdão aos que ainda não se achavam
presos: vários líderes do movimento já haviam sido executados em Salvador e em
Recife. Oliveira Lima registra a existência de 83 presos condenados à morte na
Corte, em julho de 1818, não executados por falta de “assentimento real”.

D. Pedro I (depois inclemente para com os rebeldes da Confederação do Equador, em 1824), para que os
“desgraçados” também fossem “participantes da geral alegria” decorrente da sua coroação, comutou, “nas
imediatas”, a pena de morte dos réus que “há largo tempo se acham presos […] sofrendo miséria, provações
e horrores” (Decreto de 26.11.1822). A justificativa, além de todo o simbolismo ideológico da graça no
perfil do novo imperador, foi a de que, pelo grande lapso de tempo decorrido, as execuções “em vez de
produzir o saudável horror do delito” haveria de estimular um sentimento de “piedade”.

Durante o Império, são editados no Brasil o Código Criminal (1830) e o Código de Processo Criminal (1832).
Não fosse o paradoxo da escravidão, da pena de açoite, poder-se-ia dizer que adotamos um regime punitivo
tecnicamente liberal. A incidência da pena de morte foi drasticamente reduzida (apenas para casos de
homicídio, latrocínio e rebelião de escravos), as execuções passaram a ser realizadas de forma austera,
sem o espetáculo da mutilação e da exposição do cadáver, com os julgamentos se efetivando por um conselho
de jurados formado por doze cidadãos, todos “eleitores” (o que, na época, significava dispor de poder
econômico) e de “reconhecido bom senso e probidade”.

Aliás, os argumentos para a manutenção da pena de morte no Código Criminal do Império, após intenso debate
político, foi a própria escravidão e a necessidade de produzir exemplos. O pronunciamento de Paula e Souza
na Assembléia Legislativa é revelador:

Quem duvida que tendo o Brasil três milhões de gente livre, incluídos ambos os sexos e todas as idades,
este número não chegue para arrostar dois milhões de escravos, todos ou quase todos capazes de pegarem em
armas! Quem, senão o temor da morte, fará conter essa gente imoral nos seus limites? A experiência tem
mostrado que toda vez que há execuções em qualquer lugar do Brasil, os assassinos e outros crimes cessam,
e que ao contrário, se se passam alguns anos sem execuções públicas, os malfeitores fazem desatinos e
cometem todo o gênero de atrocidades. Daqui se vê que essa pena é eficacíssima.

Além das rebeliões, havia a ameaça constante do crime de morte praticado pelo escravo contra seu senhor. E
em relação a tal delito, a monarquia não poderia ser tolerante. Em 1829, Pedro I decretou que o homicídio
do senhor por escravo era indigno da “imperial clemência”: execuções imediatas.

Em 10 de junho de 1835, como subproduto das revoltas de Carrancas em Minas Gerais (1833) e dos Malês na
Bahia (1835), foi editada uma lei que criou um estatuto jurídico criminal diverso para os escravos. Pena
de morte para os que matarem, por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou
fizerem qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que
em sua companhia morarem, a administrador ou feitor e às suas mulheres.

Além disso, não seria necessária a unanimidade dos votos dos jurados e da decisão condenatória não caberia
qualquer recurso. Com o tempo, voltaria a ser admitido o pedido de graça ao imperador – a única chance para
o escravo condenado.

O enforcamento de escravos era rotineiro, mas o sentimento de impunidade permanecia intacto. Em 25 de maio
de 1836, o Correio Oficial noticiou o sepultamento de um negociante, ferido com uma facada no peito, dada
por um negro. A opinião do redator parece despida de lógica:

“De nada aproveitou a esse malvado assassino a pena última aplicada nesse mesmo dia a outro de sua cor e
costume: assim a impunidade, tornada habitual, anima os perversos a esses crimes, e expõem a vida dos
cidadãos tranqüilos à faca de um negro, que sempre é instrumento da vingança de outrem. Fugiu o assassino.
Graças à doçura do nosso Código”.

A pena de morte sem recurso, a princípio considerada fundamental para o controle da escravatura e para a
proteção de seus proprietários, transformou-se num problema político para a monarquia, cada vez mais acuada
no plano interno e externo pela pressão abolicionista. Sua aplicação foi rareando até ser sistematicamente
comutada por Pedro II, como ato de “generosidade” do Poder Moderador, e abolida de fato: o último
enforcamento por crime comum no Brasil, um escravo, ocorreu em 1876, em Alagoas.

Em 1860, um parecer de Eusébio de Queirós favorável à comutação da pena de morte imposta a um escravo
paulista já registrava “a conveniência de ir tornando cada vez mais rara a execução da pena última”.

A mudança de atitude do regime escravocrata em relação à pena de morte foi considerada
fator de incentivo à violência. Em 1866, o juiz de Araraquara encaminhou relatório
ao presidente de São Paulo em que explicita a causa dos crimes praticados pela
escravatura: “[…] é a convicção que nutrem […] de que a pena de morte
não é mais exeqüível no país, e que a comutação dessa pena a galés perpétuas lhes
trará a isenção do cativeiro, uma espécie de alforria”
. Dez anos depois,
o juiz de Barra Mansa expôs pensamento semelhante ao presidente do Rio de Janeiro:
“Em verdade, porém, o que mais tem influído neste município para a produção
de tais crimes, é a convicção que reina entre os escravos de que já não há mais
forca para eles, e que quem mata o senhor, feitor ou administrador vai trabalhar
para o rei em uma ilha, o que consideram eles mil vezes preferível a seu cativeiro”
.

No mesmo sentido, as impressões de Richard Burton, que viajou por Minas Gerais
durante o ano de 1867: “A impossibilidade moral de aplicar a pena última –
retirar o criminoso da lista dos vivos – a facilidade de fugir da cadeia e o pouco
receio dos trabalhos forçados entre escravos, são fatores que estimulam a vingança”
.

Raciocínio curioso: os atentados dos escravos contra a vida dos seus senhores e feitores era decorrência da
impunidade e não da própria escravidão… Há algo de semelhante entre exclusão e violência nos dias atuais.

O sonho das nossas elites de “higienizar e disciplinar” o espaço urbano na República Velha, com a construção
de instituições modelares para o confinamento de vadios, alienados e delinqüentes, a partir de um padrão
“civilizado” de tratamento da parcela enferma da sociedade, viraria pó. Esse percurso histórico, até as
prisões de hoje, repletas de miséria, de violação de direitos e de réus indefesos, a ponto de explodirem
rebeliões quase que semanalmente, seria matéria para outro artigo. Mas se Frederico o Grande pudesse
observar, a partir do que está escrito nas leis penais, o que há de furto, roubo, apropriações, tortura,
abuso de poder, sonegação de tributos (em pequena e em larga escala), corrupção, tráfico, águas poluídas,
mortes no trânsito, no campo e nas favelas, certamente perguntaria se no Brasil ainda há gente livre.

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Fonte: Luís Francisco Carvalho Filho, advogado, articulista da Folha de S. Paulo

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