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O Caso da Chácara Chão, de Domingos Pellegrini

by Lucas Gomes

Análise da obra

O livro O caso da Chacára Chão foi inspirado num episódio real, um assalto ao sítio do próprio
autor, Domingos Pellegrini, que decidiu romancear o fato e criar a história.

Publicado em 2000, O Caso da Chácara Chão, segue, até no título, o que há de mais chamativo no mercado
editorial, do qual o autor é um dos seus expoentes, famosamente conhecido por sua produção juvenil.

A obra tem, na opinião do autor, ingredientes bem brasileiros como violência, drogas, corrupção policial,
jornalismo sensacionalista, racismo, conformismo mas também amor, perdão e amizade. Traça painéis críticos
da realidade brasileira.

Segundo Pellegrini, a obra “é um policial social, mas no fundo, como sempre, trata dos conceitos de
caráter e de conduta”.

Linguagem / Tempo

Sua linguagem é simples, direta, despojada de enfeites artificiais. Há beleza em suas imagens poéticas,
principalmente àquelas ligadas à descrição de elementos da Natureza, mas sem o emprego de recursos que
tornem o texto pesado, de leitura arrastada.

O narrador-personagem usa alguns ingredientes bem brasileiros são forças presentes na narrativa, tais
como – violência, drogas, corrupção policial, burocracia, jornalismo sensacionalista, racismo,
conformismo e também amor, perdão, revolta e amizade.

Há beleza em suas imagens poéticas, principalmente àquelas ligadas à descrição de elementos da Natureza,
mas sem o emprego de recursos que tornem o texto pesado, de leitura arrastada.

Outro elemento digno de nota é a movimentação das cenas, ágil, precisa, quase que dotada de um caráter
cinematográfico. Os flashbacks estão nos locais exatos e na medida correta. A manipulação do tempo da
narrativa é quase sinfônica (quanto a esse aspecto, não se deve esquecer que a obra, num esquema de
diário, muitas vezes metalingüístico, acaba tendo uma proximidade muito forte entre o tempo da narrativa
(tempo da história, dos fatos narrados – passado não muito remoto em muitas das vezes) e o tempo da
enunciação (tempo do ato contar a história, sempre presente). Aliada à já citada limpeza de sua
linguagem, contribui para que a degustação da obra seja fluente, sem obstáculos inúteis e
desnecessários.

Personagens

O protagonista da obra é um jornalista e escritor que mora numa chácara, como o
próprio Pellegrini: há três anos e meio, para fugir do barulho do centro da
cidade, Pellegrini mudou para a Chácara Chão, nos arredores de Londrina, onde
pretende passar o resto de seus dias.

Deve-se também elogiar a forma coerente com que o narrador consegue dar vida e caráter às suas
personagens, até mesmo nas que se apresentam caricaturizadas, como a família Filipov, à qual pertence a
cônjuge do narrador. Há inclusive atenção na substanciação da caracterização dos animais, como Miau
(a gata assassinada), Minie (cadela idosa) e Morena (cadela que havia chegado filhote e que cresce no
decorrer da narrativa).

Para reforçar o que se apresentou quanto ao domínio na construção das personagens, basta observar Verali,
filha do narrador, que, de menina urbana e, portanto, isolada e dona de amigas invisíveis, torna-se a
garota feliz, realizada quando vai para a chácara. Outra personagem é Olga, ex-militante de esquerda e
que “cai” para preocupações mais ligadas ao chão, como ter uma filha praticamente por produção
independente com Manfredini, esforçando-se por manter-se por meio da confecção de chocolates.

Mas a personagem mais rica é o narrador, um sujeito decepcionado com a esquerda, ou mais precisamente
com os militantes, que, ao invés da luta aberta, preocupavam-se em se encostar no funcionalismo
público.

Seu desencanto, no entanto, não significa inércia. Torna-se uma figura que tem um pouco de misantropo,
impaciente e quixotesco ao lutar pelos direitos do cidadão, pela aplicação da lei, principalmente no que
se refere ao silêncio. O ruído urbano é a mais simbólica forma de invasão e agressão do mundo moderno.

Enredo

Alfredo Manfredi, um escritor de livros juvenis, ex-exilado, cansado da pasmaceira do povo, além de
amadurecido seu relacionamento com Olga e depois de ter ganhado muito dinheiro trabalhando na redação de
discursos de uma campanha política, resolve morar com Olga. Compram, para tanto, uma chácara, a que dá
título ao livro. Tal imóvel se torna a utopia, o grande sonho de mundo e de vida dos dois, o que se
percebe pelo nome. Baseia-se na idéia de que tudo o que foi gerado pelo chão, por ele será aproveitado.
É, pois, um microcosmo perfeito (já que o macrocosmo fracassou) em que se dedicam na reciclagem e
aproveitamento de tudo. Tudo natural, ecológico, planejado, perfeito. Até a invasão urbana, representada
pelo assalto realizado durante o Carnaval.

Quer fugir do estresse dos centros urbanos e refugia-se com a família na chácara, em
busca de tranqüilidade. Mas não será isso que ele terá: um assalto à propriedade transforma
completamente a vida do escritor e de sua família.

A história básica passa-se, como citado, durante o Carnaval. A chácara do personagem-narrador,
Manfredini (é praticamente um alter-ego do autor, pois ambos mantêm muitos pontos de contato em relação
à personalidade e ao histórico de vida), é invadida por dois bandidos, que estão em busca de jóias e
dólares. Crentes que o ambiente estaria vazio, começam a ver seus planos frustrados quando encontram os
donos. Descontrolam-se, chegando, para ameaçar, a matar a gata de estimação do casal, Miau.

A situação piora quando são ouvidos os gritos do caseiro João, que, ao não ser respondido, pula o mulo da
propriedade. O narrador consegue escapar, mas é perseguido por um dos malfeitores, até que consegue se
trancar em um cômodo, não sem antes ferir gravemente com um facão o opositor que tentava impedir o
fechamento da porta. Machucado, foge.

Seguindo o caminho mais simples, os donos registram queixa na delegacia e esperam a atuação da polícia
para a captura dos criminosos, o que de fato foi feito. No entanto, obteve-se um resultado completamente
diferente. Os bandidos alegaram que a esposa do narrador os havia convidado para um encontro conjugal no
momento em que o marido não estava presente. Este, voltando inesperadamente, surpreendera a dupla e,
ferido na honra, vingara-se ferindo um dos supostos traidores.

O que piora a situação é que o aparelho do Estado começa, ao invés de defender a vítima, a permitir que
esta tivesse sua reputação atacada. É nesse momento que entra em ação o melhor aspecto dos romances
policiais: a exposição crua das feridas do sistema social.

Esse episódio só piora a relação do personagem com o Estado, pois, como se disse, mostra a violência se
voltando contra eles. Pedem ajuda para punir bandidos e acabam sendo castigados de várias formas. Em
primeiro lugar, pela possibilidade de se tornarem de vítimas a réus. Há ainda a indiferença, a zombaria
e o desrespeito com que são atendidos. Além disso, a polícia faz uma perícia completamente incompetente,
como se estivesse mais interessada em não resolver o caso (não procuram direito a arma do crime. Não
fazem autópsia da gata, não retiram na hora correta as balas incrustadas no teto e no chão da sala da
chácara. Nem sequer verificam a presença de resíduos de pólvora das mãos dos bandidos). Sem contar que
são pressionados por um ação de indenização, o que constitui um acinte típico da literatura de Kafka.

Conforme se luta por mais justiça, mais lama vai sendo jogada. Acaba-se esbarrando em obstáculos
gigantescos. Um dos bandidos, Florindo dos Santos, era policial licenciado. Entra em jogo, portanto,
toda a força de uma corporação protegendo um dos seus integrantes. O pior é que ele faz parte de um
esquema gigantesco arquitetado por uma máfia dentro da própria polícia, responsável pelo desvio de
material apreendido, inclusive drogas. Detalhe sórdido: o soldado tinha desvios graves de comportamento,
sendo até toxicômano.

O outro bandido, Pedro Paulo Machado de Mello Cavalcante, como a extensão do nome indica, é de família
tão rica quanto poderosa, acostumada a usar um advogado por demais eficiente que sempre afasta o jovem
de crimes ligados ao vício, como o presente caso.

Esse advogado vai ser responsável por mais decepções. Eficientíssimo (não se deve esquecer que o advogado
do narrador é incompetente, mais preocupado em seguir protocolos – em busca de um arquivamento – do que
em resolver o problema), conseguirá armar esquemas para salvar seus clientes e prejudicar mais ainda
Manfredini. Fica a idéia de que o que funciona no Judiciário não é a justiça em si, mas a manipulação,
armação.

O clímax surge quando a história vaza para a Imprensa, tão preocupada com escândalo, sensacionalismo.
Cria-se uma mancha gritante na reputação daqueles que deveriam ser vistos como vítimas. Sempre que se
lembrava do caso da Chácara Chão, associava-se à imagem de Olga como tarada ou de Manfredini como o Louco
do Facão a fazer justiça com as próprias mãos, imagem esta que é piorada quando investe de maneira
explosiva (atira pedras e machado) contra os inúmeros carros de som que poluem auditivamente aquele que
deveria ser um bairro residencial.

Apesar dessa confusão toda, há alguns pontos de apoio. O primeiro é um amigo ligado à Imprensa, Binho,
que lhe permitirá, além do acesso a informações importantes, que sua versão seja veiculada na mídia. O
resultado é, de certa forma, torto. Se num primeiro instante é visto como um vilão, um louco, depois
passa a ser visto como um herói, pois encarnou o desejo de todo um povo massacrado: fazer justiça pelas
próprias mãos. Em suma, não é entendido, mas visto como uma caricatura.

O fundo do poço surge quando há com a Justiça uma audiência, eufemisticamente chamada de “entrevista”.
Nela, fica consagrada a incompetência do Estado, que não consegue representar e nem defender o cidadão.
O processo está para ser arquivado. O narrador, como sempre, explode, quase sendo preso por desacato.

A reviravolta, a princípio tímida, surge quando encontra, ainda no fórum, outro decepcionado ex-militante
esquerdista, Arcanjo. Tornara-se advogado de porta de cadeia não para fazer sacanagem contra o sistema ao
ajudar criminosos, mas para evitar que este atrapalhasse os direitos daqueles que não têm como se
defender. E em tal situação encontrava-se Manfredini.

Sua primeira ação, imediata, já se mostra útil. Evita que o “homem-bomba” seja preso. Ainda impede a
derrota fragorosa da ação. Contribui também para que seja bloqueado o processo de indenização. Mas,
diante de todo o quadro que se é apresentado, pois estão lidando com bandidos do mais pesado calibre,
consegue convencer o casal a retirar a queixa, na esperança de que a outra parte também o faça.

No fim, um ano se passa. Reforça-se a descrença em relação ao sistema, o que fica representado no fato de
a chácara, o paraíso, ter os muros agora todo coberto de plantas dotadas de espinhos. A decepção é tão
grande que o narrador já não abre mais tanto escândalo quando um salão de festas, por demais barulhento,
é inaugurado ao lado da chácara (é interessante lembrar que a fiscalização, quando aparece, fica
mancomunada com o salão. Note a tirada amarga quando o protagonista relata que os fiscais saíram alegres
e com alguns “presentes”).

O clímax surge num duplo combate. Os vizinhos armam uma barulheira musical para competir com o baile de
Carnaval do salão. A polícia baixa. E é nesse instante que Florindo surge, para se vingar, pois com toda
a questão judicial, não havia agüentado e cometera delitos, acabando por perder muitos dos seus direitos
na corporação. Acha que a culpa pelo fracasso recai sobre Manfredini e sua família.

Suas intenções criminosas são, no entanto, frustradas. Olga e Verali evadem-se. Manfredini consegue fugir
pela chácara. Sua enorme vantagem é que o vilão não conhece o terreno e, em meio à escuridão, acaba-se
ferindo sucessivamente pelas plantas, muitas delas espinhosas. Consegue a vitória humilhante ao mesmo
tempo em que o povo, irado, faz com que o salão respeite os vizinhos.

Tal final parece lembrar o campo juvenil em que o autor se especializou. Jogou-se tanta lama na cara do
leitor a ponto de poder sufocar sua visão de mundo. Essa vitória da natureza é uma luz de expectativa
positiva. O mundo está podre, mas não é motivo para desistência, derrotismo. É uma luta individualista,
mas é a melhor arma que se tem, na presente situação social. É a alimentação de esperanças diante da
vida, mais simples e mais natural possível, distante da doença em que se transformou a vida moderna.

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