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O matador, de Patrícia Melo

by Lucas Gomes

Com foco narrativo em primeira pessoa do singular, O Matador, de Patrícia
Melo, publicado em 1995, narra a ascensão e a derrocada de Máiquel,
um jovem de periferia que, por acaso, se transforma em um assassino profissional,
admirado e querido por seus vizinhos, pois é visto como um justiceiro
que se livra dos bandidos que ameaçam a ordem de seu bairro.

A narração se dá através de Máiquel que,
em decorrência de uma simples aposta, se vê envolvido numa série
de crimes, se transformando num criminoso brutal, num matador profissional.
Para esse romance Patrícia Melo desenvolveu uma intensa pesquisa sobre
o mundo do crime, presídios e matadores, apresentando uma narrativa ágil,
densa e bem-humorada pelos meandros da violência urbana.

Pode-se ainda afirmar que a temática do crime e da violência,
na qual se centra a obra da autora, é recorrente em toda ahistória
da literatura.

Nesta obra, a autora retoma o estilo urbano violento das primeiras obras de
Rubem Fonseca e recria-o para retratar as novas facetas da sociedade brasileira
no fim do século XX, levando a uma relação inevitável
entre o mundo retratado nos textos consagrados do autor na década de
70 e a realidade social dos anos 90.

Nesse universo, em que predominam as ações, descritas de maneira
realista e minuciosa, a violência exerce um papel fundamental, justamente
pelo fato de ser o próprio matador quem narra. É interessante
perceber como essa narrativa da violência vai se construindo às
custas da publicidade, das notícias de telejornal, dos anúncios,
reportagens e manchetes jornalísticas, do vídeo clipe, do cinema,
além de se valer da música popular, do rap, da poesia, da piada
etc. O fragmento abaixo exemplifica esse comportamento da linguagem literária:

Justiceiros matam cinco em São Paulo, dizia a manchete. Eu estava
na casa de um cliente, lendo o jornal que ele havia acabado de me dar, o menor
R.S.P. conseguiu se salvar fingindo-se de morto, e está no hospital
fora de perigo, dizia a reportagem. Puta merda, eu falei, como esse desgraçado
conseguiu fugir?
(p.150)

Pode-se dizer que em O Matador impera uma promiscuidade discursiva,
isto é, uma mistura desordenada da linguagem literária com outras
linguagens, sendo raros os parágrafos em que isso não se concretiza.
Aparentemente, essa narrativa associa-se ao que Manfred Pfister (1991) denomina
intertextualidade eclética pós-moderna, ou seja, um diálogo
com textos advindos dos mais diversos meios culturais, canonizados ou não,
sem que haja um propósito crítico ou analítico, mas simplesmente
o estímulo dos prazeres proporcionados pela heterogeneidade.

Observe agora a trajetória de Máiquel, o narrador-protagonista
desta obra:

1. O chamado da aventura
O primeiro passo da aventura de Máiquel começa sempre por um incidente,
um “erro”, aparentemente um mero acaso, mas que se trata do primeiro
indício de um mundo insuspeito, um mundo fabuloso no qual Máiquel
irá se aventurar.

No romance O matador, esse primeiro passo está logo no primeiro
capítulo. A frase que dá início à narração
deixa bem claro o caráter de acaso da história que será
narrada: “Tudo começou quando perdi uma aposta“.

A aposta que Máiquel havia perdido era sobre o resultado do jogo entre
São Paulo e Palmeiras e o pagamento era pintar o cabelo de castanho-aloirado.
Por uma distração, um “erro”, a pintura fica mais tempo
do que deveria e o cabelo de Máiquel torna-se loiro. E eis que acontece
a transformação de Máiquel:

Sempre me achei um homem feio. Há muitas curvas em meu rosto,
muita carne também, nunca gostei. Meus olhos de sapo, meu nariz arredondado,
sempre evitei espelhos. Naquele dia foi diferente. Fiquei admirando a imagem
daquele ser humano que não era eu, um loiro, um desconhecido, um estranho.
Não era só o cabelo que havia ficado mais claro. A pele, os
olhos, tudo tinha uma luz, um moldura de luz. De repente todos os meus traços
tornaram-se harmônicos, a boca, que sempre fora caída, continuava
caída, o nariz continuava arredondado, as pálpebras inchadas,
porém tudo isso era bobagem porque havia algo maior, mais importante,
a moldura. Havia Luz na minha face, e não era uma luz artificial de
refletores. Era aquela luz que a gente vê em imagens religiosas, luz
de quem é iluminado por Deus. Foi assim que me senti, próximo
de Deus.

O “erro” de Máiquel, na verdade, era resultado de desejos
e conflitos inconscientes, se observarmos o que diz Máiquel logo a seguir:

Aquela tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu
minha autoconfiança, meu amor-próprio. Foi a primeira vez, em
vinte e dois anos, que olhei o espelho e não tive vontade de quebrá-lo
com um murro.

Esse momento de transfiguração pode significar a passagem da
adolescência para a fase adulta.

2. A recusa do chamado
Nesse segundo momento Máiquel tenta de todas as maneiras recusar o chamado,
mas de alguma maneira o destino faz com que cumpra sua jornada.

Em O matador, o episódio que marca esse momento é quando
Máiquel faz sua primeira vítima. Máiquel havia marcado
um duelo e não entende por que fez aquilo:

No dia seguinte, acordei com dor de dente e não fui trabalhar.
Estava arrependido de ter proposto um duelo, aquilo tinha sido uma bobagem,
uma estupidez sem fim. Quis dar uma de bacana para impressionar a Cledir e
me ferrei todo.

Vê-se que Máiquel de fato não deseja duelar. Ou seja,
se recusa ao chamado da aventura; no entanto:

Cledir soluçava, implorava, não faça isso, não
estrague sua vida. Tudo bem, Cledir, não precisa chorar, você
tem razão. Apartamento com dois dormitórios, sem entrada, aproveite.
Não vou duelar. Móveis para a cozinha. Vou me casar com você.
Tudo para o seu lar. Vou trabalhar direito naquela loja de carros usados,
vou melhorar devida. Coisas boas passaram pela minha cabeça, mas eu
não disse nada disso para Cledir. Eu disse: nem fodendo (…).

Dei o primeiro tiro, Suel voou no chão, deve ter morrido na hora.

Apesar de racionalmente não querer matar, Máiquel não
consegue realmente desviar-se do caminho que já estava traçado
por Deus para ele, conforme acredita.

Realmente não dá entender como é que um sujeito
faz uma bobagem dessas. Só há uma explicação:
Destino. Antes da gente nascer, alguém, sei lá quem, talvez
Deus, Deus define direitinho como vai foder com sua vida. É isso. Era
a minha teoria. Deus só pensa no homem quando tem que decidir como
é que vai destruí-lo. Quando ele não tem tempo, faz uma
guerra, um furacão, mata um monte. Em mim ele pensou.

Máiquel atribui a Deus o seu gesto de morte, “o jogo do sagrado
e da violência é apenas um”.

A repercussão da atitude de Máiquel, a execução
de Suel, parece confirmar que quando a ação do herói coincide
com a ação para qual sua própria sociedade está
pronta, ele parece seguir o grande ritmo do processo histórico:

Gonzaga, assim que me viu, estendeu a mão molhada, aquela mão
objetiva e úmida apertando minha mão, sorrindo e dizendo que
eu poderia pedir o que quisesse, que era por conta da casa, que a partir de
agora seria assim, tudo o que você quiser. Ele estava feliz por eu ter
matado o Suel. O Suel era um miserável filho da puta, roubou o toca-fitas
do carro da minha irmã, todo o mundo odeia o Suel, eu odeio o Suel
ele disse.

(…) Robinson apareceu, puxou-me para o brilhar, só se fala
disso no bairro, estão todos orgulhosos de você, ele disse.

3. O auxílio sobrenatural

Uma figura representa o poder benigno e protetor do destino e que auxiliou Máiquel
na sua aventura:

Eu vou te dizer uma coisa, rapaz, você tem os dentes ruins, eu
sou dentista, eu tenho um problema e você tem os dentes ruins. Podemos
nos ajudar. Você me ajuda, eu te ajudo. Eu trato dos seus dentes de
graça e você faz alguma coisa para mim. Você concorda?
Eu quero ter dentes bons. Matar um desgraçado, é isso que eu
quero de você.

A figura protetora na aventura de Máiquel é o dr. Carvalho.
Máiquel deverá matar o estuprador de sua filha em troca de ter
dentes tratados. Também será dr. Carvalho quem lhe irá
agenciar as outras mortes, ou seja, o condutor, o iniciador da sua carreira/aventura
de matador profissional:

(…) dr. Carvalho voltou com um copo de uísque, mandou a Gabriela
deixar nós dois sozinhos, você tem que se animar, garoto, tome
isso. Tomei, o uísque era bom, me aqueceu. A vida melhorou um ponto.
Você pensou melhor na proposta do Sílvio? Fiz sim com a cabeça,
antes mesmo de lembrar que o Sílvio era aquele homem que eu tinha conhecido
no jantar na casa do dr.Carvalho, aquele homem que reciclava lixo e que queria
que eu matasse alguém. A televisão mostrava propaganda de comida,
boceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes,
colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela,
sorvete, bola de futebol, xarope, meia, cinema, filé mignon. E isso
aí garoto.Você fez bem. Vamos para o meu escritório. Vamos
conversar sobre aquele filho da puta que está atormentando a vida do
Sílvio.

4 e 5. Passagem pelo primeiro limiar e o ventre da baleia

Este momento refere-se ao aspecto externo e o quinto às questões
de ordem interna com as quais Máiquel deverá se deparar. É
o lugar das trevas, do desconhecido.

Estuprador. Gênios caprípedes e broncos / Estupram virgens
hamadríades, quinta série, d.Leda, professora de português
(…) Decorei alguns versos para agradar d. Leda, às vezes, no meio
de nada, eles aparecem dançando na minha mente. Ezequiel era um estuprador,
diziam.

O limite que Máiquel teria de transcender era matar, matar sob encomenda,
para isso teria de transformar seus valores, enfrentar seus medos, fortalecer
seu ego , fazendo coisas importantes para si mesmo.
Um homem para matar, aquilo me incomodava.

(…) O que é que guardaram de especial para mim? Posso vender
sapatos, descascar batatas, qualquer coisa. Foda-se. Posso também matar.
É fácil matar, você pega o revólver, aperta o gatilho
e pronto, um gesto simples, morrer é que difícil. Eu ainda não
tinha certeza se ia matar Ezequiel.(…) O homem para matar, os pensamentos
vieram como carneirinhos e eu deixei que eles pulassem obstáculos.
Pularam. As coisas foram ficando claras, fui alinhando tudo. Eu mataria Ezequiel
porque era importante para mim. Dentes bons, cavalo dado, caça. Não
preciso ter medo.

Esse momento está relacionado às indagações sobre
a vida e morte, mesmo a condição sócio-cultural de Maiquel
não lhe permitindo grandes vôos filosóficos e indagações
sobre a vida e morte, como as enfrentadas pelos heróis literários:
Abandonei a escola e hoje não me sinto mais digno de entrar
em sua morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo
“.
6. O caminho das provas
Depois da morte de Ezequiel, sua primeira prova, Máiquel começa
uma jornada por um mundo, no mínimo, estranho ao seu cotidiano:

A casa do dr. Carvalho tinha muito mogno e cetim, leque chinês,
laca, penachos coloridos plantados em vasos gigantes e tapetes que batiam
na canela da gente (…) Chegaram os abacaxis tropicais, uma espécie
de maionese que é servida em porções individuais dentro
do próprio abacaxi, eu nunca tinha visto aquilo, que espécie
de maluquice é esta? (…) Experimente esse cigarro americano. Percebi
que ele notou meu sapato todo fodido. Os cigarros americanos são os
melhores do mundo.

Enquanto caminhava e olhava para os meus sapatos fodidos, eu pensava
que a vida é uma coisa engraçada. Ela vai sozinha, como um rio,
se você deixar. Você também pode botar um cabresto, fazer
da vida seu cavalo. A gente faz o que quer. Cada um escolhe sua sina, cavalo
ourio.

Irá Máiquel desistir da sua jornada como matador, colocará
“cabresto” na sua vida e não matará mais ninguém
ou navegará pelo “rio” de sangue que a vida está lhe
apresentando? Essas são as questões com que Máiquel se
defronta, entre o livre-arbítrio ou o destino, entre as ações
conscientes e as inconscientes, incontroláveis.
7 e 8. O encontro com a deusa e a mulher com tentação

Em síntese, esses momentos representam o encontro do herói, Máiquel,
com a figura arquetípica da mãe. Essa figura é tanto “boa”
como “má” e espera-se que o
devoto contemple as duas com a mesma equanimidade, pois é por meio desse
exercício que seu espírito é purgado de toda sentimentalidade
e ressentimento, infantis e inadequados. Em O matador, a “boa”
e a “má” figura são representadas por Cledir e Érica,
respectivamente:

Érica era uma garota inteligente, e cada vez mais eu gostava de
ficar com ela. Olhos espertos, músculos, muito diferente de Cledir.
Érica adorava beber e dançar. Gostava de rir. E Cledir me esperando
para o jantar. Criando meu filho dentro da barriga, cozinhando, uma coisa
pura, sincera, certa. Érica era sacana e iria me trair. Iria me trair,
eu sentia isso em cada palavra que saía de sua boca. (…) Cledir nunca
iria me trair (…)

Voltava para Érica e voltava para Cledir. Fodia com Érica
e fodia com Cledir. Com Érica era bom, com Cledir era bom.

(…)

Senti um amor tão grande por ela (Érica), eu te amo,
eu disse, ama nada, amo sim, amo muito.Você quer o quê? (…)
o que você quiser, eu faço, faço tudo, eu quero que
você mate a Cledir, ela disse. Ela disse isso mesmo: eu quero que
você mate a Cledir.

9. A sintonia com o pai

Esse momento é, em O matador, aquele em Máiquel, depois
chamado divino, depois de ter se debatido com seus precários valores
morais e se tornado um matador com o auxílio do dr.Carvalho, depois de
ter desfrutado de algumas benesses daquele mundo encantado que a propaganda
mostra e de ter encontrado o amor e suas provações, tem agora
o reconhecimento pelos seus feitos sendo convidado, enfim, para assumir um lugar
no “reino”:

Senti uma paz calma dentro do meu peito, uma paz quente, sei lá
o que me deu, não foi o uísque, foram as palavras do delegado
que me trouxeram aquela paz, aquele orgulho, um delegado me propondo sociedade,
eu era mesmo uma pessoa muito querida no bairro, eles passavam e buzinavam,
acenavam as mãos, senti uma paz (…) Daríamos segurança
para o bairro. (…) Santana, era esse o nome do delegado, Santana entraria
com o escritório, as secretárias, o telefone, a placa da firma,
o advogado e, claro, ele disse com o poder, as influências, a cobertura.
Eu entraria comigo mesmo, com minha equipe, com que eu sabia fazer, ele disse.

10. A apoteose

Esse é momento da divinização, da expansão da consciência,
é quando Máqiuel encontra o “troféu transmutador de
vida”:

E finalmente a hora da medalha. Houve uma época que eu acreditava
que talão de cheques e mulheres eram a base da felicidade. Subi no
palco. Dinheiro ajuda, mulher melhora tudo, mas é a fama que reinventa
a vida de um homem, foi isso que eles me ensinaram naquela noite. Abraçaram-me.
Fotografaram-me. Pediram para que eu falasse. Eu falei que estava pensando
em me candidatar a vereador. Eles gostaram muito. A medalha, que coisa bonita
é uma medalha.

11. A bênção última

Em O matador, nesse momento da narrativa, Máiquel prova ser
um herói comum — depois de ter sido abandonado por Érica,
portanto sem a benção de sua deusa — cometendo um erro fatal:

Por que, Érica, por que você não me levou junto?
Pai pediatra. Como é que eu ia saber? Como é que eu ia saber
que o garoto era um bom estudante? À noite correndo de skate, parecia
um ladrão de Reebok. Como é que eu ia saber? Foi um engano.
Admito que errei. Matei por engano. Agora, me diga, as pessoas vivem fazendo
cagadas por aí. As pessoas erram, às vezes.

Máiquel também não encontra mais o apoio de seu “patrono
universal”, Dr. Carvalho:

Ele se levantou, fora daqui, ele disse, cachorro sarnento, lenço
na boca para segurar aquele sangue todo, dr. Carvalho atrás de mim,
mancando e me xingando de cachorro sarnento, cachorro filho da puta e outros
nomes assim.

12. O retorno

Pegamos a estrada, eu no volante. Um vento frio. Enoque ligou o rádio.
A polícia, o locutor dizia, ainda não encontrou o bandido Máiquel,
acusado de mais – meti o pé com força no rádio, quebrei
aquela joça. Parei o carro. Salta, eu disse para o Enoque, os caras
não estão atrás de você. Empurrei ele para fora
do carro e arranquei. Eu não queria saber de nada do que estava acontecendo,
queria deixar tudo para trás, ir em frente até encontrar um
buraco e me meter nele, no buraco, me esconder, no buraco, até o frio
acabar, até chegar a hora de sair.

Assim termina a aventura de Máiquel no romance O matador,de
Patrícia Melo.
As vítimas de Máiquel são os bodes expiatórios,
as vítimas sacrificais sobre os quais uma sociedade com um sistema judiciário
e um poder político enfraquecido desvia uma violência que pode
golpear seus próprios membros. E Máiquel é o herói
que em todos os mitos atrai para sua pessoa, como um imã, uma violência
que afeta toda a comunidade, uma violência maléfica e contagiosa,
que será transformada em ordem e segurança pela sua morte ou triunfo.

Cada pessoa no bairro me trazia um naco de ódio para eu engolir.
(…) começei a gostar de ouvir aquelas histórias podres, eu
ouvia e era como se tivesse dando um naco de carne para o meu ódio,
e mais outro naco, fui ficando viciado naquilo, o exercício funciona
mesmo, eu odeio, ele odeia, odiamos.

Fonte parcial: Eliane Pereira da Silveira, Mestranda, Universidade
Federal da Santa Maria | Rosana Cacciatore Silveira, Mestranda, Universidade
Federal de Santa Cataria

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