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Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga

by Lucas Gomes

Análise da obra

É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa – 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal – foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo.”

Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : “Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores”.

Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

Temas e formas

I

1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,

que viva de guardar alheio gado,

de tosco trato, de expressões grosseiro,

4 dos frios gelos e dos sóis queimado.

5  Tenho próprio casal e nele assisto;

6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;

7  das brancas ovelhinhas tiro o leite

8 e mais as finas lãs, de que me visto.

9 Graças, Mar flua bela,

10  graças à minha estrela!

11 Eu vi o meu semblante numa fonte:

12    dos anos inda não está cortado;

13    Os pastores que habitam este monte

14 respeitam o poder do meu cajado.

15    Com tal destreza toco a sanfoninha,

16    que inveja até me tem o próprio Alceste:

17    ao som dela concerto a voz celeste,

18    nem canto letra que não seja minha.

19 graças, Marília bela,

20   graças à minha estrela!

Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro”, “gado”, “ovelhinhas”, “fonte”, “pastores”, “monte”, “cajado”.

2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

Que prazer não terão os pais ao verem

Com as mães um dos filhos abraçados;

Jogar outros a luta, outros correrem

Nos cordeiros montados!

Que estado de ventura!

4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

II

A minha amada

é mais formosa

que branco lírio,

dobrada rosa,

que o cinamomo,

quando matiza

co’a folha a flor:

Vênus não chega

ao meu amor.

Vasta campina,

de trigo cheia,

quando na sesta

co vento ondeia,

ao seu cabelo,

quando flutua,

não é igual.

Tem a cor negra,

mas quanto val!

(…)

III

(…)

Aqui um regato

corria, sereno,

por margens cobertas

de flores e feno;

à esquerda se erguia

um bosque fechado;

e o tempo apressado,

que nada respeita,

já tudo mudou.

São estes os sítios?

São estes; mas eu

o mesmo não sou.

Marília, tu chamas?

Espera, que eu vou.

5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

IV

Tu não verás, Marília, cem cativos

tirarem o cascalho e a rica terra,

ou dos cercos dos rios caudalosos,

ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negro

do pesado esmeril a grossa areia,

e já brilharem os granetes de oiro

no fundo da batéia.

Não verás derrubar os virgens matos,

queimar as capoeiras inda novas,

servir de adubo à terra a fértil cinza,

lançar os grãos nas covas.

Não verás enrolar negros pacotes

das secas folhas do cheiroso fumo;

nem espremer entre as dentadas rodas

da doce cana o sumo.

(…)

  V

Com os anos, Marília, o gosto falta,

e se entorpece o corpo já cansado:

triste, o velho cordeiro está deitado,

e o leve filho, sempre alegre, salta.

A mesma formosura

é dote que só goza a mocidade:

rugam-se as faces, o cabelo alveja,

mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar Marília bela?

que vão passando os florescentes dias?

As glórias que vêm tarde, já vêm frias,

e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.

Ah! não, minha Marília,

aproveite-se o tempo, antes que faça

o estrago de roubar ao corpo as forças,

e ao semblante a graça!

7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

   VI

Porém se os justos céus, por fins ocultos,

em tão tirano mal me não socorrem,

verás então que os sábios,

bem como vivem, morrem.

Eu tenho um coração maior que o mundo,

tu, formosa Marília, bem o sabes:

um coração, e basta,

onde tu mesma cabes.

9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

Aqui Marília tem cabelos pretos:

VII

(…)

Os seus compridos cabelos,

que sobre as costas ondeiam,

são que os de ApoIo mais belos,

mas de loura cor não são.

Têm a cor da negra noite,

e com o branco do rosto

fazem, Marília, um composto

da mais formosa união.

(…)

Aqui tem cabelos loiros:

VIII

(…)

Os teus olhos espalham luz divina,

a quem a luz do sol em vão se atreve;

papoila ou rosa delicada e fina

te cobre as faces, que são cor da neve.

Os teus cabelos são uns fios d’ouro;

teu lindo corpo bálsamos vapora.

(…)

Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

IX

Ama a gente assisada  (1) (1) ajuizada
a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
que ponha uma ação destas (2)(2) a Inconfidência
nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3) (3) Tiradentes
E quando a comissão lhe confiasse,
não tinha pobre soma,
que por paga ou esmola lhe mandasse?

X

O mesmo autor do insulto

mais a riso do que a terror me move;

deu-lhe nesta loucura,

podia-se fazer Netuno ou Jove.

A prudência é tratá-lo por demente;

ou prendê-lo, ou entregá-lo,

para dele zombar a moça gente.

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