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O Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena

by Lucas Gomes

Análise da obra

O Juiz de Paz da Roça (1833), obra de Martins Pena, é considerada a primeira comédia de costumes do teatro brasileiro. Influenciada pelo teatro picaresco espanhol, possui, além da crítica social e do diálogo coloquial, características posteriormente encontradas na chanchada, no teatro de revista e outros gêneros populares, como a piada de duplo sentido e a utilização de danças e canções. Além disso, traz também, sob a influência dos franceses – o que o faz ser chamado de Molière brasileiro –, o teatro que, por meio do riso (outro ponto de contato gilvicentino), a descrição e a crítica aos costumes do Rio de Janeiro de meados do século XIX. E tudo de forma simples, natural, espontânea, ágil.

Espaço / Tempo

Rio de Janeiro – casa de Manuel João e casa do Juiz de paz. A peça é de 1837. O momento histórico da ação é o mesmo da Revolução Farroupilha, acontecida no Rio Grande do Sul, em 1834: é da convocação militar que José, noivo de Aninha, vem fugindo. 0 casamento seria justificativa legal para seu não recrutamento. Coincidentemente, é Manuel João o encarregado de conduzir o recruta ao serviço militar – o que não acaba acontecendo, naturalmente

Temática

Criticar as convenções sociais, o casamento, a família, o governo e satirizar figuras como padres, juízes, políticos inescrupulosos e novos ricos.

Estrutura da peça

Ato único com 23 cenas (incluindo a Cena Última)

Personagens

As personagens de Martins Pena são pessoas comuns em situações do dia-a-dia, como casamentos, festas, envolvidas em pequenas intrigas domésticas etc: juiz de Paz; escrivão do Juiz de Paz; Manuel João; Maria Rosa; Aninha; José da Fonseca; lavradores.

Enredo

O enredo é simples: trata-se de uma sátira à aplicação da justiça nas províncias remotas do Segundo Império, denunciando a corrupção e o abuso das autoridades. Sem dúvida foi esse o motivo do estrondoso sucesso da sua primeira encenação, em 1848. Faz menção à Guerra dos Farroupilhas, ao contrabando de escravos e outras mazelas sociais.

Peça de um ato, o texto é considerado o nosso Monólogo do Vaqueiro, já que é o inaugurador, literariamente, de nosso teatro. Como seu título indica, a trama dedica-se a descrever os costumes da zona rural, o que era a preocupação das primeiras obras do autor. Depois de infeliz passagem para a tragédia, o dramaturgo voltaria às comédias, mas ambientadas na Corte. No entanto, como se verá, o foco de sua crítica não mudou.

Assim como nas peças de Gil Vicente, somos jogados de chofre no meio da história. Essa técnica recebe o nome de “in media res”. Assim, por meio do diálogo de mãe (Maria Rosa) e filha (Aninha) sobre a labuta do pai (Manuel João), tomamos conhecimento de todo o sofrido universo de valores, costumes e tarefas da roça, como a necessidade de mais mão-de-obra escrava, atrapalhada por dificuldades econômicas. É interessante como essas preocupações por demais pragmáticas são apresentadas diante de um público romântico e com tendência à evasão e à idealização. Até que ponto estaria ocorrendo um desvio aos padrões estéticos burgueses?

Aninha, ciente da iminente chegada do pai, cansado do trabalho, lembra a mãe que este iria gostar de jacuba (um tipo de refresco). A senhora sai de cena, para a preparação da bebida. Tratava-se de um expediente da menina para que ficasse sozinha e recebesse seu namorado. Esses estratagemas são muito comuns no tipo de teatro que Martins Pena estava inaugurando. Dão mais agilidade à trama.

Aumentando a velocidade do texto, as cenas são curtas, tendo apenas a extensão necessária para o desenrolar dos fatos. Tudo é essencial, econômico, importante, inclusive as rubricas (marcações da cena), que são precisas e significativas até no vestuário. O autor demonstra aqui a consciência de que o teatro é encenação, é para ser visto principalmente. Isso explica a importância de se lembrar que o namorado de Aninha, José (note a simplicidade dos nomes) veste roupas brancas. Em plena roça, esses trajes reforçariam uma tendência, disseminada em outros momentos, da personagem a não enxergar que seu papel é trabalhar e não pensar em prazeres da vida apenas, como se fosse um bon vivant.

Nesta segunda cena ocorre o encontro amoroso entre José e Aninha. Nela se manifesta uma característica comum do autor, que é a utilização do exagero caricaturesco, percebido no instante em que Aninha recusa o abraço de seu amado. Só depois do casamento é que pode! E ainda alfineta dizendo que esse “abuso” fora causado pelos maus costumes adquiridos na Corte.

Há também nesta cena, por meio do diálogo dos namorados, um elemento que é crucial na obra do autor: o contraste entre a roça e a Corte. O rapaz, após a estranha explicação de que não sobrara vintém do bananal que recebera de herança – revelador, no mínimo, da imaturidade da personagem –, diz como pretende se arranjar com sua amada: vão-se casar às escondidas e se mudarão para a Corte. Para seduzir Aninha, faz uma descrição completamente distorcida da Capital, apegado apenas ao aspecto exótico, como se a vida lá fosse prazer, diversão. Isso é percebido no diálogo abaixo transcrito:

JOSÉ – Vamos para a Corte, que você verá o que é bom.

ANINHA – Mas então o que é que há lá tão bonito?

JOSÉ – Eu te digo. Há três teatros, e um deles maior que o engenho do capitão-mor.

ANINHA – Oh, como é grande!

JOSÉ – Representa-se todas as noites. Pois uma mágica… Oh, isto é cousa grande!

ANINHA – O que é mágica?

JOSÉ – Mágica é uma peça de muito maquinismo.

ANINHA – Maquinismo?

JOSÉ – Sim, maquinismo. Eu te explico. Uma árvore se vira em uma barraca; paus viram-se em cobras, e um homem vira-se em macaco.

ANINHA – Em macaco! Coitado do homem!

JOSÉ – Mas não é de verdade.

ANINHA – Ah, como deve ser bonito! E tem rabo?

JOSÉ – Tem rabo, tem. Essa visão distorcida provoca riso na platéia, composta de burgueses da Corte. No entanto, fica subentendida uma crítica de Martins Pena à mania desse grupo em tentar se equiparar à Europa, não se tocando de que é tão provinciana – trata-se de uma nação recente – quanto a roça. A maneira como Aninha imagina a Corte (em que acaba até comicamente misturando tudo o que José descreveu) deve ser a mesma maneira como enxergávamos e ainda enxergamos o Primeiro Mundo.

Enfim, o encontro é abreviado por causa da iminência da chegada de Manuel João. Assim, combinam o casamento para o dia seguinte, de manhã.

A chegada do pai serve para que mais uma vez entremos no cotidiano simples da classe baixa rural. Ficamos sabendo das lamentações por uma vida trabalhosa, das tarefas feitas e a serem realizadas e até da janta (carne seca, feijão e laranjas).  Não se poupa nem mesmo a menção ao fato de já ter acabado carne seca. Lembra o esforço, muitas vezes fracassado, que algumas novelas globais tentam de retratar o dia-a-dia.

Ao bater da porta, mais uma vez o ridículo será utilizado, dessa vez por aspectos visuais (um procedimento também comum em Martins Pena, que remonta à tradição circense e que deu origem ao pastelão): Manuel João trata de esconder a comida e ainda – beiramos o grotesco – lambe os dedos. É pobreza extrema misturada a mesquinharia e sovinice.

Quem entra em cena é o Escrivão, que traz uma intimação do Juiz de Paz: Manuel João tem de levar até a cidade um prisioneiro como recruta para a revolta que estava havendo no Rio Grande do Sul. João não entende por que justo ele tem de realizar tal tarefa, o que representaria a perda de um dia de trabalho. As preocupações imediatas, ligadas à sobrevivência, entram mais uma vez em foco. O Escrivão informa que ninguém a aceitava. João mais uma vez protesta, dizendo que ele não tinha culpa nenhuma dos problemas arranjados pelo governo. Nem mesmo dá atenção ao argumento ligado a patriotismo. No entanto, cede, diante da ameaça de prisão.

Observe-se que há críticas fortes aqui que chegam a se chocar com o conjunto de valores burgueses. Seu efeito só não é de imediato fulminante porque tudo se dilui em meio ao humor e principalmente por estar na boca de uma personagem que age de forma tão estabanada.

A partida de Manuel João é feita em meio a inúmeras recomendações sobre as tarefas a serem feitas de ambos os lados, tanto para os que ficam, quanto para o que vai. Mais uma vez o cotidiano simples retratado de forma viva, natural e colorida. Destaque seja feito ao pedido que Aninha faz ao pai: já que vai à cidade, que lhe trouxesse sapatos franceses. Outra crítica que se dirige não à roça, mas à Corte e ao seu apego à ostentação das superficialidades do universo europeu.

A próxima cena é já na casa do Juiz de Paz, funcionário que tem a função de conciliador dos conflitos de sua jurisdição. É provavelmente o melhor momento da obra, por causa principalmente dos jogos de palavra que se estabelecem.

Em primeiro, ficamos sabendo de um presente recebido pela autoridade: 

“Tomo a liberdade de mandar a V. Sª um caicho de bananas maçãs para V. Sª comer com a sua boca e dar também a comer à V. Sª Juíza e aos Srs. Juizinhos. V. Sª há de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim as ditas reformas, V. Sª fará o favor de aceitar as ditas bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas.” É saborosa a maneira com que o autor enfoca a simplicidade do povo, por meio, primeiro, de pleonasmos (“comer com a boca”) e por expressões inadequadas, mas cômicas (“V. Sª Juíza”, no lugar de “esposa do Juiz”, e “Srs. Juizinhos”, no lugar de “filhos do Juiz”). Há também a confusão que se faz entre o tom cerimonioso, adequado à situação, e o familiar, íntimo, inadequado. Mas há ainda uma crítica à corrupção do magistrado, pois Manuel André, a personagem que presenteia o juiz, participará, como se verá, de uma ação litigiosa. Além disso, olha a visão distorcida (será?) que se tem sobre os efeitos da Nova Constituição.

O primeiro caso a ser resolvido envolve Gregório, Inácio José e sua esposa Josefa Joaquina. A transcrição de um trecho apresenta elementos suficientes para análise: 
JUIZ – É verdade, Sr. Gregório, que o senhor deu uma embigada na senhora?

GREGÓRIO – É mentira, Sr. Juiz de paz, eu não dou embigadas em bruxas.

JOSEFA JOAQUINA – Bruxa é a marafona de tua mulher, malcriado! Já não se lembra que me deu uma embigada, e que me deixou uma marca roxa na barriga? Se o senhor quer ver, posso mostrar.

JUIZ – Nada, nada, não é preciso; eu o creio. Martins Pena manipula com eficiência e colorido os elementos dramáticos, reproduzindo com fidelidade não só a linguagem coloquial, mas também a psicologia das personagens. Prova disso é que Gregório e Joaquina desviam-se da resolução de sua contenda em meio a ofensas. Fica nítido, por exemplo, que o aspecto infantil do raciocínio de Joaquina, que, ao invés de apresentar argumentos na discussão, devolve ofensa, atacando a mãe do oponente.

O mais incrível é a decisão do Juiz, que, além de paternalista, é contraditória. Se por um lado dispensa Inácio e Joaquina, sob a alegação de que umbigada não constitui crime em nenhuma lei, por outro ameaça Gregório de aplicar a lei “às costas” se este continuar a praticar umbigadas. E arbitrariamente encerra o caso com um “Estão conciliados”, o seu bordão.

Em seguida é lido um outro requerimento de Manuel André. E mais uma vez o suborno: na introdução do requerimento, antes de anunciado o assunto, avisa-se, meio que en passant, que um cacho de bananas será enviado ao Juiz. E novamente a mistura cômica do tom familiar com o solene.

Tratava-se de uma questão de divisa de terra. O Juiz delega ao suplente a decisão. O problema é que ambos estavam atarefados com seus próprios roçados. Note-se que o suborno não foi eficiente. Note-se também o descaso e incompetência no exercício das funções jurídicas.

Manuel André protesta. O Juiz ameaça com cadeia. O pleiteante faz lembrar a Constituição, fortemente desprezada pelo magistrado. Confusão é formada – mais um elemento de gosto popular no corpo da peça – e Manuel André acaba fugindo.

O outro caso é entre João de Sampaio e Tomás. O primeiro é dono de um leitão, que invadiu as terras do segundo. Estabelece-se uma briga até física – mais uma cena à pastelão, com os dois reclamos puxando, um de cada lado, o objeto de disputa. O problema é resolvido com a determinação do Juiz – um tanto egoísta – de ficar com o bicho. Ainda manda que seja trazida ervilha para a complementação de um prato que imaginara. E, pior, folgadamente determina que um dos contendores coloque o suíno no chiqueiro. Exibe-se a aplicação torta da lei, apenas para atingir interesses pessoais. No fim, o bordão: “estão conciliados”.

Como um adendo, Sampaio quer que tudo seja citado na Assembléia Provincial. O Juiz não autoriza, achando o assunto irrelevante. Tomás convence-o do contrário, lembrando os votos que o magistrado havia-lhe pedido para os integrantes da tal instituição legislativa. Corrupção, troca de favores, compra de votos… Problemas de longa data!

O próximo caso é de Francisco Antônio, Rosa de Jesus e José da Silva. A transcrição abaixo do requerimento dá mais detalhes: 

“Diz Francisco Antônio, natural de Portugal, porém brasileiro, que tendo ele casado com Rosa de Jesus, trouxe esta por dote uma égua. ‘Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava tem um filho que é meu, peço a V. Sª mande o dito meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher’”. Observe-se como a manipulação da linguagem abre no texto uma ambigüidade saborosa, apesar de rasteira.

A decisão do Juiz seguiu o caminho que parecia mais lógico: em favor de Francisco e Rosa de Jesus. José da Silva protesta, diz que vai recorrer, mas o magistrado faz pouco caso – tem procedimentos jurídicos para invalidar os questionamentos. Há mais reclamações, sufocados quando o magistrado manda prender José da Silva e fazê-lo recruta. Diante do pior, o protestante abre mão das queixas.

Nesse momento, chega Manuel João para receber o preso. E, preocupado com coisas imediatas, obtém autorização para deixar em sua casa o prisioneiro, pois que já estava chegando a noite.

Na chegada à casa de Manuel João ocorre outro expediente típico da dramaturgia popular: a surpresa causada pela descoberta da identidade de uma personagem. Causa curiosidade o espanto de Aninha ao se deparar com o prisioneiro. Depois que pai e mãe saem, a filha solta o recruta e fica-se sabendo tratar-se de seu namorado, José. Havia sido preso, alega, de forma extremamente arbitrária: “Assim que botei os pés fora desta porta, encontrei com o juiz, que me mandou agarrar.” Há um potencial de crítica aqui, que, diluído, não é aproveitado.

O casal foge para se casar. Quando os pais descobrem o que ocorreu, surge alvoroço, revolta e decepção, mas engraçadamente há espaço para um certo alívio de Manuel João, que estava livre da tarefa de levar o prisioneiro no dia seguinte. No fim, toda a culpa recai, comicamente, sobre a guerra que se processava no Rio Grande do Sul. A culpa é do Governo (como dizia uma antiga personagem humorística da televisão). Talvez por isso Manuel João resolva dar parte ao Juiz.

No entanto, é interrompido com a chegada do casal fugitivo, já casado. Tudo acaba em abraços. É essa explosão de felicidade (estamos indo na direção do desfecho da obra) que retira da obra um fôlego mais forte para se dedicar a uma ferrenha crítica social, no estilo do Realismo.

Resolvem, então, dar outra parte ao Juiz, agora de tom mais positivo.

A próxima cena é na casa do magistrado, que comunica ao escrivão a necessidade de consultar um letrado – deixa claro que não entende muito de leis. Antigamente, toda vez que surgia um problema cuja solução não conhecia, simplesmente usava um “Não tem lugar.” e o empurrava. Deixou de utilizar esse expediente porque uma vez quase tinha sido suspenso. Esses são mais ingredientes para que possamos denegrir a imagem desse funcionário. O escrivão até pergunta se tudo isso não era motivo de vergonha. Resposta:  

“Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, quantos juízes há por estas comarcas que não sabem aonde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz…” Suas reflexões são interrompidas com a chegada de Manuel João, Maria Rosa, Aninha e José, que lhe comunicam o casamento. Dessa forma, livra-se a personagem da obrigatoriedade de se tornar recruta.

A primeira reação do Juiz é desmoralizar José, chamando-o de biltre. Mas depois pede para perdoar a ofensa. O magistrado é de fato uma personagem rica em suas contradições, tornando-se extremamente humana, tanto que decide comemorar o matrimônio em sua casa, caindo todos na dança e na cantoria, conforme atesta o trecho final abaixo transcrito: 

TOCADOR, cantando – Em cima daquele morro

Há um pé de ananás;

Não há homem neste mundo

Como o nosso juiz de paz.

TODOS – Se me dás que comê,

Se me dás que bebê,

Se me pagas as casas,

Vou morar com você.

JUIZ – Aferventa, aferventa!… Tudo termina bem, em festança, em folguedo, afugentando todo e qualquer elemento (e os há na obra em grande quantidade) que pudesse desagradar os padrões do público burguês romântico.

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