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Impunidade no Brasil – Colônia e Império (parte 1)

by Lucas Gomes

Artigo de Lu�s Francisco Carvalho Filho *

Resumo

A IMPUNIDADE est� no centro do debate pol�tico brasileiro. Um olhar retrospectivo para a hist�ria do Brasil, tendo como refer�ncia a aplica��o da pena de morte para delitos comuns (em contraposi��o a delitos pol�ticos, militares e religiosos), a partir de documentos legais e do relato de historiadores, cronistas e viajantes, mostra que a impunidade sempre esteve na ordem do dia. A despeito da viol�ncia repressiva, marcante em diversos momentos, a aus�ncia de efetividade do direito penal tal como escrito, seja pela pr�tica do perd�o, seja pela falta de vontade pol�tica, seja pela dificuldade de meios, � uma constante nos per�odos colonial e imperial.

Conceito de impunidade

IMPUNIDADE SIGNIFICA falta de castigo. Do ponto de vista estritamente jur�dico, impunidade � a n�o aplica��o de determinada pena criminal a determinado caso concreto. A lei prev� para cada delito uma puni��o e quando o infrator n�o � alcan�ado por ela ? pela fuga, pela defici�ncia da investiga��o ou, at� mesmo, por algum ato posterior de “toler�ncia” ? o crime permanece impune.

Conforme o brocardo latino, impunidade estimula delinq��ncia: Impunitas peccandi illecebra. No Imp�rio, era ineficaz a criminaliza��o do tr�fico de escravos. Hoje parecem ineficazes as tentativas de repress�o � pedofilia na Internet: h� como punir, aqui, a distribui��o de fotografias de explora��o sexual de crian�as, mas n�o h� como impedir a utiliza��o de ferramentas de busca que permite a satisfa��o do desejo proibido em sites do leste europeu.

N�o punir nos termos da lei, por outro lado, pode ser gesto de engenharia governamental, como foram os decretos de anistia, necess�rios para a pacifica��o das rebeli�es do per�odo da Reg�ncia, ou como s�o os costumeiros indultos de Natal, importantes para a distens�o das pris�es superlotadas.

Do ponto de vista pol�tico, o significado � mais amplo. Fala-se em impunidade n�o apenas quando se verifica a incapacidade ou a falta de disposi��o de o Estado fazer prevalecer a puni��o estabelecida, mas tamb�m quando a pr�pria lei e/ou o magistrado que a aplica s�o considerados benevolentes para com determinado ato criminoso. Assim, h� pessoas que consideram brandas as atuais penas do homic�dio culposo (decorrente de um ato pun�vel n�o intencional), ou impr�prio o princ�pio da responsabilidade penal apenas aos dezoito anos, ou inadequado o princ�pio geral da presun��o da inoc�ncia que assegura ao r�u prim�rio responder ao processo em liberdade, ou necess�ria a exist�ncia de puni��es exemplares, como a inje��o letal ou a pris�o perp�tua, para transgress�es mais graves etc.

A quest�o da impunidade est� no centro do debate pol�tico brasileiro e, dado o car�ter aparentemente inexor�vel, pelo menos a curto prazo, da exclus�o econ�mica e social ? o motor principal da viol�ncia ?, ele tende a ser cada vez mais intenso, passional, ruidoso. Mesmo setores “progressistas”, tradicionalmente mais sens�veis ao que se convencionou chamar “direitos humanos”, pressionados pelo tom pragm�tico das disputas eleitorais, j� adotam um discurso relativo � criminalidade urbana que, poucos anos atr�s, era monop�lio de uma “direita n�o esclarecida”.

H�, de fato, um aumento vertiginoso da viol�ncia, assim como da popula��o carcer�ria, h� um sentimento de inseguran�a geral, assim como um investimento crescente de recursos p�blicos (desviados de outros setores carentes) para a constru��o de pres�dios e para o aparelhamento das pol�cias, e os ju�zes s�o cada vez mais rigorosos na aplica��o das leis penais, que, por sua vez, s�o cada vez mais dr�sticas. Mas n�o h� um projeto de seguran�a p�blica que ultrapasse a id�ia de punir.

O sonho dourado das elites brasileiras � a repeti��o, abaixo da linha do Equador, do espet�culo punitivo patrocinado nos EUA, onde, de fato, em virtude de medidas aparentemente m�gicas, como a “toler�ncia zero”, os �ndices de criminalidade decresceram nos �ltimos trinta anos. Em contrapartida, o pa�s t�m a mais alta taxa de encarceramento do planeta: dados do Departamento de Justi�a indicam que, em junho de 2003, havia 2.078.570 homens e mulheres presos nos Estados Unidos(1), um n�mero assombroso, superior ao dos desempregados da regi�o metropolitana de S�o Paulo (2,044 milh�es) em abril de 2004, segundo pesquisa da Funda��o Seade/Dieese.

O objetivo deste artigo n�o � fazer a anatomia da impunidade criminal no Brasil ou encontrar supostas ra�zes hist�ricas para o sentimento de inseguran�a da imensa maioria da popula��o brasileira. Trata-se, apenas, de um olhar retrospectivo: a impunidade sempre esteve na ordem do dia.

A impunidade no Brasil Col�nia

que a marca preponderante das Ordena��es do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) que vigoraram aqui, na parte penal, at� 1830, era a severidade extrema. A mutila��o f�sica fazia parte das regras do jogo. A pena de morte era estabelecida para a maioria das infra��es. Como lembra Ant�nio Hespanha, conta-se que Frederico o Grande, da Pr�ssia, ao ler o Livro V das Ordena��es, no s�culo XVII, teria perguntado se em Portugal ainda “havia gente viva.”

Rei D. Afonso V, promulgou as Ordena��es Afonsinas em 1416.
Wikimedia Commons

Rei D. Manuel I, promulgou as Ordena��es Manuelinas em 1521.
Wikimedia Commons

Rei Filipe II, promulgou as Ordena��es Filipinas em 1595.

Wikimedia Commons

Continua��o: A impunidade no Imp�rio

Notas

(1) “Nation’s prison population increase largest in four years”, Bureau of Justice Statistics, U.S. Department of Justice, 27.5.2004.

(2) “Da ‘iustitia‘ � ‘disciplina’ ? Textos, poder e pol�tica penal no Antigo Regime”, Justi�a e litigiosidade: hist�ria e perspectiva, Lisboa, Funda��o Calouste Gulbenkian, 1993.

(3) Edgard Costa, Efem�rides judici�ria, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro (MEC), 1961, p. 50.

(4) Eduardo Correia, “Estudos sobre a evolu��o das penas no direito portugu�s”, separata do volume 53 (1977) do Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra, p. 45.

(5) Geraldo Pieroni, Os exclu�dos do reino, Bras�lia/S�o Paulo, UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000.

(6) Francisco Augusto Pereira da Costa, Anais pernambucanos, Recife, Arquivo P�blico Estadual, 1965, vol. 1, p. 237.

(7) Cap�tulos de hist�ria colonial, 6� ed, Rio de Janeiro/Bras�lia, Civiliza��o Brasileira/Instituto Nacional do Livro (MEC), 1976, p. 45.

(8) Hist�ria do Brasil, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1981, vol. 1, p. 169.

(9) Joaquim Romero Magalh�es, Tom� de Souza e a institui��o do governo geral. Documentos, Lisboa/Comiss�o Nacional para as Comemora��es dos Descobrimentos Portugueses, Mare Liberum (separata), n. 17, 1999.

(10) Francisco Adolfo de Varnhagen, Hist�ria geral do Brasil, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1981, t.1, p. 253.

(11) Cartas do 1� conde da Torre, Lisboa, Comiss�o Nacional para as Comemora��es dos Descobrimentos Portugueses/Centro de Hist�ria e Documenta��o Diplom�tica (MRE), 2001, vol. 3, p. 17,

(12) Jos� Pedro Xavier da Veiga, Ephemerides mineiras, Ouro Preto, Imprensa Oficial do Estado de Minas, 1897, vol. 4, p. 374.

(13) Os donos do poder: A forma��o do patronato pol�tico brasileiro, 3� ed., S�o Paulo, Globo, 2001, p. 189.

(14) Joaquim Jos� Caetano Pereira e Souza, “Repertorio”, Primeiras linhas sobre o processo criminal com hum repert�rio dos lugares das leis extravagantes, regimentos, alvar�s, decretos, assentos e resolu��es regias, 4� ed., Lisboa, Impress�o Regia, 1831, p. 47.

(15) Mem�ria da justi�a brasileira: Do condado portucalense a D. Jo�o de Bragan�a, Salvador, Tribunal de Justi�a da Bahia, s/d, vol.1, caps. 8 e 10. Na Internet: www.tj.ba.gov.br.

(16) A fronda dos mazombos ? Nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715, 2� ed., S�o Paulo, Editora 34, 2003, p. 335.

(17) Publica��o oficial de documentos interessantes para a hist�ria e costumes de S�o Paulo, S�o Paulo, Arquivo do Estado, vol. 20.

(18) Jos� Al�pio Goulart, Da palmat�ria ao pat�bulo (Castigo de escravos no Brasil), Rio de Janeiro, Conquista, 1971, p. 190.

(19) Hist�ria do Brasil: 1500-1627, 7� ed., Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1982, p. 183.

(20) Joaquim Nabuco, Um estadista do Imp�rio, 5� ed., Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, vol. 1, p. 323.

(21) Jean Marcel Carvalho Fran�a, Vis�es do Rio de Janeiro colonial: Antologia de textos (1531-1800), 2� ed., Rio de Janeiro, EdUERJ/Jos� Olympio, 2000, p. 119.

(22) Viagens ao nordeste do Brasil, Recife, Funda��o Joaquim Nabuco/Massangana, 2002, p. 266.

(23) Viagem �s prov�ncias do Rio de Janeiro e S�o Paulo, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 85.

(24) J. Teixeira Barros, “Execu��es capitaes na Bahia”, Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, Salvador, Imprensa Official do Estado, 1918, vol. 43.

(25) Pereira da Costa, vol. 4, p. 292.

(26) Diogo de Vasconcelos, Hist�ria antiga das Minas Gerais, 4� ed., Belo Horizonte, Itatiaia, 1999, p. 348. [ Links ]Francisco de Assis Francisco Carvalho Franco (Dicion�rio de bandeirantes e sertanistas do Brasil, Belo Horizonte/S�o Paulo, Itatiaia/Edusp, 1989, p. 209) apresenta vers� [ Links ]o diversa e acusa Diogo de Vasconcelos de fazer uma “novela” do caso: “Homem de seu tempo”, o r�u “havia morto em S�o Paulo a v�rias pessoas e nas Minas Gerais matou outras, inclusive uma sua filha, que se achava gr�vida…”.

(27) Carvalho Franco, op. cit., p. 197.

(28) Pedro Otavio Carneiro da Cunha, “Pol�tica e administra��o de 1640 a 1763”, Hist�ria geral da civiliza��o brasileira (dir. S�rgio Buarque de Holanda), 6� ed., S�o Paulo, Difel, 1985, vol. 2, p. 35.

(29) Barros, op. cit., p. 103.

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* Lu�s Francisco Carvalho Filho � advogado, articulista da Folha de S. Paulo, ex-presidente da Comiss�o Especial de Mortos e Desaparecidos Pol�ticos institu�da pela Lei 9.140/95, autor de O que � pena de morte (S�o Paulo, Brasiliense, 1995), Nada mais foi dito nem perguntado (S�o Paulo, Editora 34, 2001) e A pris�o (S�o Paulo, Publifolha, 2002).

Impunidade no Brasil: Col�nia e Imp�rio. Estud. av., S�o Paulo, v. 18, n. 51, Aug. 2004. Dispon�vel em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000200011&script=sci_arttext. Acessado em 01 Fev. 2011.

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