Home EstudosSala de AulaPortuguês Vícios de Linguagem: 1. Estrangeirismo – a influência italiana na fala brasileira

Vícios de Linguagem: 1. Estrangeirismo – a influência italiana na fala brasileira

by Lucas Gomes

O centenário de Adoniran Barbosa reacende o debate sobre a influência
italiana na fala brasileira.

O sotaque e a cultura italiana nunca estiveram tão presentes no imaginário
popular quanto este ano em que se comemora o centenário de João
Rubinato, mais conhecido como Adoniran
Barbosa
. Cantor, compositor, humorista e ator, Adoniran imortalizou em suas
canções o linguajar típico dos italianos que viviam na
capital paulista na primeira metade do século 20. Além de sua
música, a televisão também contribuiu para fixar esse jeito
de falar, caso da novela Passione, da Rede Globo, que atualiza a tradição
do sotaque italiano televisivo, com direito a palavras como “amore”
e “tesoro” e cenas gravadas na Itália. Tudo pela verossimilhança
de um falar que já pertence à herança cultural brasileira.

Mesmo tanto tempo depois, a linguagem espontânea de Adoniran ainda se
faz sentir, sobretudo em bairros tradicionais paulistanos como Bexiga, Brás
e Barra Funda, além da própria Mooca, cujo sotaque característico
está em vias de ser tombado como patrimônio cultural. Adoniran
Barbosa nasceu no dia 6 de agosto de 1910 em Valinhos, interior de São
Paulo. Suas canções tinham o caráter de crônicas,
ora bem-humoradas, ora trágicas, sobre um povo que veio trabalhar principalmente
na construção civil da metrópole.

– Ele reproduzia o linguajar mais típico, direto e espontâneo
do povo, preocupando-se mais com a fluência e expressividade do que com
detalhes e “fricotes” gramaticais ou purismos. Era coisa profissional,
comercial, mas no melhor sentido, com base na “cutura” autêntica
do povo – garante Ayrton Mugnaini Jr, autor do livro Adoniran: Dá
Licença de Contar…

Vocabulário

Entre as expressões imortalizadas pelo compositor, estão “tiro
ao álvaro”, “adifício”, “homes”, “cobertô”,
“truxe”, “táuba”, “frechada”, “ponhado”,
“revórver”, “lâmpida” e os versos de Samba
do Arnesto
: “O Arnesto nos convidô prum samba, ele mora
no Brás / Nóis fumo e não encontremo ninguém / Nóis
vortemo cuma baita duma reiva / Da outra veiz nóis num vai mais
“.

Boa parte da memória e itens pessoais de Adoniran Barbosa, como cachecol,
isqueiro, gravata e chapéu, encontram-se preservados no Museu do Bixiga,
tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio
Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).
Também está no museu o primeiro registro do bairro, que data de
1559 e faz referência ao Sítio do Capão, do português
Antônio Pinto. O nome atual surgiu apenas na década de 1820, quando
a fazenda tornou-se propriedade de Antônio Bexiga, que ganhou esse apelido
em função de ter cicatrizes de varíola, doença popularmente
conhecida como “bexiga”.

De acordo com Paola Giustina Baccin, professora da Faculdade de Letras da Universidade
de São Paulo (USP), os italianismos foram introduzidos no Brasil por
meio de duas grandes correntes migratórias. A primeira ocorreu no final
do século 19 e início do 20, com italianos vindos principalmente
das regiões da Itália setentrional para o Sul e Sudeste do Brasil
a fim de trabalhar na lavoura. A segunda foi após a Segunda Guerra Mundial,
com imigrantes vindos da Itália setentrional novamente para a Grande
São Paulo, onde foram trabalhar na indústria.

– Os imigrantes trouxeram a cultura italiana no modo de se vestir, na religiosidade,
na língua e nos dialetos com os quais se comunicavam. Os italianismos
provenientes desse contato entraram para a nossa língua principalmente
por intermédio da forma oral, de pais para filhos, entre vizinhos, de
empregado para patrão etc., e, como estão há muito tempo
no léxico, adaptaram-se ou desapareceram. Algumas das unidades lexicais,
no entanto, ainda são sentidas como italianismos, apesar da total adaptação
fonética, caso de “espaguete”, “nhoque” e “lasanha”
– avalia Baccin.

O resultado de todo esse processo é que, segundo Baccin, muitos italianismos
acabaram dicionarizados, caso de “adaggio”, “allegro” e
“andante”, no campo musical; “arlequim”, “colombina”
e “vedeta”, no teatro; “afresco”, “aquarela” e
“caricatura”, nas artes plásticas; e “amainar”, “escolta”
e “piloto”, na navegação. Outras palavras que têm
a mesma origem são “bandido”, “canhão”, “baderna”,
“gelatina”, “ágio” e “capricho”.

Assim como esses vocábulos, tão bem adaptados ao português
que nem parecem ter vindo de outro idioma, os ítalo-brasileiros também
já fazem parte da paisagem multicultural brasileira. Os quadros nesta
página funcionam como um inventário da influência linguística
italiana, seja personificada pelo sotaque caricato das telenovelas, atualizado
por Passione; seja no processo de tombamento do sotaque da Mooca, em São
Paulo; ou ainda na pele do personagem Juó Bananére, criado pelo
jornalista Alexandre Marcondes no início do século 20.

À espera do tombamento
O
bairro paulistano da Mooca pode ter seu sotaque tombado.

Para que parte do linguajar com influência italiana não se perca
com o tempo, o vereador de São Paulo Juscelino Gadelha (PSDB), que foi
do Compresp, apresentou um projeto de lei, no final de 2009, que visa tombar
o sotaque da Mooca, fundada em 1556 e palco de colonização italiana
no início do século 20.

– O sotaque, fui criado na Mooca (nasceu no Estado de Mato Grosso) e tenho
o sotaque até hoje, é uma das identidades de quem mora na Mooca
e espalhou-se por toda a cidade. Hoje, o paulistano carrega esse sotaque. Por
exemplo, a expressão “ô meu!”, “fala belo!”
ou mesmo “me dá dois pastel e um chopps”. Certamente, esse
linguajar não desaparecerá pois a quarta geração
dos descendentes de italianos ainda carrega muito no sotaque, mas o processo
de verticalização do bairro trouxe pessoas de outros locais e
representa uma ameaça direta à identidade local, não só
do ponto de vista urbanístico, mas também toda uma vertente da
memória histórica da Mooca, em especial o sotaque – analisa Gadelha
que, em 2007, já havia solicitado o tombamento da Festa de San Gennaro,
tradicional no bairro.

Caso o projeto seja aprovado, o sotaque será preservado em gravações
e transcrições e esse será o primeiro bem imaterial tombado
na cidade. Há atualmente 15 no país, como acarajé, capoeira,
Festa do Divino Espírito Santo de Goiás, frevo de Olinda e a voz
do intérprete da escola de samba Mangueira, Jamelão.

– O cotidiano do paulistano antigo morador da Mooca foi muito bem ilustrado
e imortalizado na voz de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa. Porém,
é visitar o tradicional bairro, basta adentrar em estabelecimentos comerciais
mais antigos ou pedir uma informação na rua, que o sotaque aparece
naturalmente e você percebe aquela fala cantada – finaliza Gadelha.

Passione retoma filão do italianismo de araque
Tony
Ramos nos bastidores da novela Passione: sotaque caricato e cenas gravadas na
Itália para garantir a verossimilhança cultural Novela da Globo
mantém núcleo de personagens com sotaque forçado.

Há um gênero de telenovela brasileira que inventa para si mesmo
os seus italianismos. Com Passione, atual trama das 21 horas da Rede Globo,
a emissora revigora desde maio seu arsenal de sotaques que salpica frases em
português com termos pretensamente italianos, como “amore”,
“tesoro”, “capisce”, “ecco”, “caspita”
e “amore mio”. Na história, a personagem interpretada por Fernanda
Montenegro se envolve com o núcleo de tipos italianos encabeçado
por Tony Ramos.

De maneira semelhante, muitos italianismos foram popularizados pelas telenovelas,
principalmente aquelas que tratavam da imigração italiana, muitas
delas escritas por Benedito Ruy Barbosa, caso de Os Imigrantes (Bandeirantes,
1981), O Rei do Gado (1996), Terra Nostra (1999) e Esperança (2002).

No entanto, poucos personagens são mais lembrados no se que refere ao
sotaque dos bairros tipicamente dos italianos em São Paulo do que a feirante
Tancinha, interpretada por Claudia Raia, em Sassaricando (1987), de Silvio de
Abreu. Com vários melões nas mãos, ela popularizou as palavras
no plural sem o s, “parteleira” ao invés de “prateleira”
e bordões como “me tô divididinha”, que expressava a
dificuldade dela em escolher, como namorado, um publicitário (Marcos
Frota) ou um rapaz musculoso (Alexandre Frota).

O autor tentaria repetir o sucesso, mas sem o mesmo resultado, com Pascoal,
interpretado por Reynaldo Gianecchini em Belíssima (2005).

– As telenovelas sempre acabam contribuindo, por meio da repetição,
para a divulgação de expressões não só italianas,
mas de qualquer língua, até mesmo da língua portuguesa.
Geralmente, terminada a novela, as expressões também vão
desaparecendo, alguns ainda se lembrarão do “maledetto Berdinazzi”,
de O Rei do Gado? É interessante observar que o tema da imigração
italiana tratada nas novelas desperta nos descendentes a vontade de conhecer
mais sobre a cultura dos seus antepassados e notamos um ligeiro aumento na procura
dos cursos da língua italiana no período dessas novelas – garante
Baccin.

Tipos aclimatam idioma italiano no Brasil
Juó
Bananére e Alcântara Machado levaram sotaque para as páginas
literárias

O personagem Juó Bananére, criado pelo jornalista Alexandre Marcondes
Machado, foi um dos primeiros a se destacar pela utilização de
expressões dos imigrantes italianos em São Paulo e, em função
de ter forte carga humorística, ficou conhecido como “principal
cômico-macarrônico brasileiro”.

Os textos foram originalmente publicados na revista O Pirralho e, em 1915,
reunidos no livro La Divina Increnca. Na década de 1930, o personagem
gravou discos em que interpretava o falar macarrônico. Entre as expressões
que imortalizou, estão palavras portuguesas e italianas que recebiam
um a como prefixo, caso de “acunhecidos e “abisogna”; o ditongo
“ão” sempre virava “ó”, caso de Juó;
e finais de palavras com o grupo “or” ganhavam como apoio a vogal
“e”, como “tambore” e “carregatore”. Também
apareceram “parlare”, “dare”, “tratare”, “circunferenza”
(entrevista) e “insgugliambaçó” (esculhambação).

– É inegável a importância dos escritos de Juó Bananére
para a divulgação da linguagem “estropiada” falada pelos
imigrantes italianos pobres de São Paulo. Claro que é necessário
levar em conta que modos de falar divulgam-se por si mesmos, em especial nos
espaços sociais em que os falantes se inserem. Porém, o trabalho
dele fez com que segmentos da população, em especial paulistana,
tomassem consciência de algo que acontecia ali, sob seus narizes, nos
Bons Retiros, Bexigas, Brás e Moocas da periferia – destaca Carlos Eduardo
Schmidt Capela, professor de Teoria Literária na Universidade Federal
de Santa Catarina e autor do livro Juó Bananére, Irrisor Irrisório.

Em 1912, o próprio Alexandre Machado explicaria a linguagem que utilizava,
em crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo: “A artograffia
muderna é una maniera de scrivê, chi a genti scrive uguali come
dice. Per insempio: – si a genti dice Capitó, scrive Kapitó; si
si dice Alengaro, si scrive Lenkaro; si si dice dice, non si dice dice, ma si
dice ditche
“.

Outro marco da utilização do linguajar dos “ítalo-paulistas”
e do registro da vida cotidiana dos imigrantes italianos é o livro de
contos Brás, Bexiga e Barra Funda, do paulistano Antônio de Alcântara
Machado. Com linguagem leve e bem-humorada, ali aparecem expressões como
“lavorar”, “ciao”, “andiamo”, “repito un’altra
vez” e “banzando” (brincando), proferidas por personagens chamados
Beppino, Carmela, Nicolino, Lisetta, Rocco e Genarinho.

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