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Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

by Lucas Gomes

Lavoura Arcaica, obra de Raduan Nassar, traz uma narrativa pesada, cheia de confusões; protestos; abstenções; amor de irmão com irmã deixando a narrativa ostensiva e cansativa. André se vê diferente de todos que cheio de pressões resolve fugir de casa, fato que remonta bem à narrativa bíblica do filho pródigo.

É um texto onde se entrelaçam o novelesco e o lírico, através de um narrador em primeira pessoa. André, o filho encarregado de revelar o avesso de sua própria imagem e, conseqüentemente, o avesso da imagem da família. Lavoura Arcaica é sobretudo uma aventura com a linguagem.

ARGUMENTO

André, o protagonista, é um jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para ir morar em uma pequena cidade (ainda no interior), fugindo, em parte, daquele mundo asfixiante da lavoura, onde o passar do tempo parecia consumir as gerações, onde a rigidez moral mantinha as estruturas sociais análogas às da Idade Média, um mundo em que a loucura das paixões primitivas consumia sua alma, como, por exemplo o relacionamento amoroso e incestuoso (fantasioso ou carnal) com sua irmã Ana.

Com sua fuga, André põe a perder o precário equilíbrio da família – baseada em uma estrutura patriarcal clássica e impregnada por um forte caráter religioso e bíblico. O pai, então, determina que o filho mais velho, Pedro, vá em busca do filho pródigo na cidade. Pedro encontra o irmão em um quarto de pensão marcado pela sordidez e, após inúmeros apelos, consegue convencê-lo a retornar ao lar. Este retorno explicitará ainda mais os aspectos doentios e perturbadores do relacionamento entre os membros da família, com destaque para outros dois personagens: o caçula, Lula, que também pretende, a exemplo de André, abandonar a fazenda em busca de um mundo que promete possibilidades infinitas (o drama do êxodo rural), e a figura cigana, sensual e mediterrânea da irmã Ana, personagem que posteriormente será o pivô da ruína final do clã.

A volta de André ao lar traz uma aparente (porém precária) paz ao ambiente já inviabilizado. A palavra do pai, oriunda da tradição dos Dez Mandamentos, das parábolas bíblicas, dos profetas e dos grandes pregadores cristãos, torna-se ineficaz, configurando a simbólica “lavoura arcaica”, e o resultado não poderia ser outro senão a tragédia: o pai mata a filha Ana, ao perceber que ela ama André, e depois, de modo não explícito no livro, também acaba por perder a vida.

O núcleo familiar em que se desencadeia a trama de Lavoura Arcaica é de imigrantes árabes do Líbano para o Brasil. O livro é dividido em duas partes: a primeira “A partida”; e a segunda “O retorno”. Esta divisão corresponde à temática e inversão que Nassar faz da história bíblica do filho que deixa a casa e retorna, a parábola do filho pródigo.

Como se verá mais adiante, Raduan Nassar utiliza-se fartamente dos recursos poéticos para compor a fala do personagem narrador, André. Contudo, a bela expressão lírica que André faz da sua inconformidade não muda o desenlace de suas ações. ‘Lavoura’ mostra a incongruência entre a beleza das palavra se o desastre das ações humanas levadas ao individualismo extremo.

A sua revolta nasce perante uma condição que ele considera absurda, em que a igualdade aparente de todos os membros da família oculta as grandes desigualdades entre eles e a opressão do discurso da tradição (encarnado pelas palavras do pai, Iohána). André nega o homem, a moral e Deus, não exatamente a existência deste último, mas sim o seu poder de transcendência, em nome do instinto sexual, no qual o impulso decreta a posse integral dos seres a troco da sua destruição.

Este conflito entre indivíduo, leis e sociedade compõe os conflitos do próprio personagem narrador. ‘Lavoura’ fala do problema da integração entre o indivíduo e a sociedade, em que a particularidade das vontades e das dores de André não consegue coexistir com o mundo em que ele vive.

O personagem busca a integração, o seu lugar na mesa da família, justamente por meio do que a destruiria, o amor incestuoso entre ele e Ana, sua irmã.

Às ambigüidades das palavras de André confrontadas com suas atitudes somam-se às ambigüidades do tempo construídas na narrativa. Neste confronto pode-se explorar no texto o trabalho que Raduan Nassar realiza entre o que se pode chamar de aventura romântica e destino trágico no ‘Lavoura’. A aventura romântica é o conflito apresentado pelas palavras entre a busca pela experiência e a vivência do acaso, o ímpeto de sair a campo e transformar sua história e seu entendimento do mundo. O destino trágico é a vivência de uma história prefigurada, escrita antes mesmo da personagem tomar ciência dela, em que o destino impera sobre a vontade. Assim, na aventura romântica, o tempo é o tempo que se abre aos acasos e ações humanas. E no destino trágico, o tempo trava seus ponteiros, deixando de existir, acontecendo à parte da história; ou confunde-se com o tempo mítico (da tradição milenar da costa pobre do Mediterrâneo), que é aquele em que o destino retorna, num tempo cíclico.

Quando André resolve conduzir a sua história, o seu tempo é o da aventura; mas quando o mundo lhe diz não, o tempo se torna aquele já marcado pelo destino das coisas, que retorna como uma maldição, num ciclo repetitivo. O tempo do destino e da aventura é um tempo constituído pela palavra. A busca de André é compor tempo e palavra “como gêmeos com as mesmas costas”, pela narrativa. Esta busca tenta fundir palavra e coisa, sentido e sentimento, mas sabe do perigo que corre, sabe da impossibilidadede levar até o fim este projeto. A palavra, senhora do tempo, verbo oleoso, reúne a lucidez e o delírio de André. Esta palavra nasce no lodo, no charco, no lugar daqueles que não têm lugar. O tempo na palavra do narrador é o tempo que quer explodir, corroer o mundo que produziu o fosso onde o relegado sente-se jogado. Pois, para André, àqueles que não ganham do mundo o seu quinhão restam duas alternativas: dar as costas a tudo ou alimentar uma expectativa de destruição deste mundo. É o tempo na narrativa de Nassar que não se deixa capturar, parecendo indicar algo numa das partes do romance que em outras páginas se desfaz, apontando possibilidades de interpretação e sendo a principal mola para dissolvê-las.

O romance é constituído por vários tempos num mesmo tempo e também vários tempos que parecem não se conciliar, senão por um final destruidor. A falta de síntese entre os tempos, ou o tempo no ‘Lavoura’, fala sobretudo da condição do homem, em que o conflito das diferenças, a violência, a imposição de uma tradição e, o outro lado da moeda, o individualismo, põem em xeque a existência da própria humanidade, as suas instituições e a viabilidade da sua reprodução. Nassar semeia as palavras para compor o tempo da narrativa, que é múltiplo. A história e a temporalidade estão concentradas na própria narrativa de André, onde os dramas, conflitos e percepções humanas constituem a marca da própria linguagem. A busca pela escrita do tempo é uma atividade arcaica, uma lavoura arcaica, da qual os homens se ocupam há milênios.

LINGUAGEM

Narrado em primeira pessoa, Lavoura arcaica está longe de ser uma narrativa linear, embora a ordem dos fatos possa ser apreendida sem maior esforço. A grande dificuldade do livro (simultaneamente fonte de sua riqueza) é a linguagem. De uma riqueza só superada na moderna prosa brasileira por Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Lavoura arcaica, no entanto, não pode ser considerado um romance de invenção ou de resgate léxico-sintático como é o do escritor mineiro. Muito antes pelo contrário. O estilo da prosa de Lavoura arcaica é dos mais elegantes e elevados, é patente o cuidado e a meticulosidade na escolha das palavras e na construção das frases. A inovação se dá no modo elíptico com que o narrador se expressa, nesse fluxo de consciência terrível e assustador, adquirindo assim extrema funcionalidade, permitindo que o narrador tenha um modo singular de revelar, por meio de meias-palavras, as grandes atrocidades que cometeu na sua Odisséia às avessas.

As sombras, paradoxalmente, realçam as feridas familiares, que no escuro acabam por se tornar ainda mais ofuscantes (basta lembrar da sutilíssima cena de incesto entre André e o irmão caçula, ou da morte do pai ao final do relato). Em Lavoura arcaica o não dito parece ser mais importante do que a narração dos fatos, contrariando a perspectiva clássica da ficção ocidental a partir do século XIX e principalmente a tendência real-naturalista, muito em voga na ficção brasileira desde a retomada promovida pela chamada geração do Romance de 30. No entanto, as relações do livro com sua época e com a crise da ficção nacional nos anos 1970 são evidentes.

O dramático em Lavoura arcaica

É inquestionável que romance e teatro têm pontos de contato entre si. Cada um, a sua maneira, narra uma história (enredo) de algumas pessoas (personagens) num certo tempo e espaço. Contudo, no romance, personagem, enredo e significado são indissociáveis. Pensar em um romance é pensar na fusão desses três elementos. No resultado da síntese entre os traços e ações das personagens, o enredo que estas desenrolam, o tempo e o espaço nos quais tudo isso acontece e, enfim, no significado que gera. Já no teatro, a personagem concentra toda a carga de expressividade do texto. Um romance pode falar através da descrição de paisagens, através do simples desenvolver de idéias, sem para isso pedir a presença de um personagem. Já é impossível no teatro algo ser contado fora dos limites de um sujeito/ ator. Enquanto o romance se constrói através da combinação de seus elementos, no teatro, todo foco fica na personagem.

E isso é o primeiro ponto merecedor de atenção em Lavoura arcaica. Todo o romance é contado pela voz de André. Isso não teria nada de especial se não levássemos em conta a carga de expressividade concentrada nas palavras de André. Não se trata de mais um caso de narrador personagem. Em Lavoura arcaica o valor à voz de André parece ir bem além. Os fatos não só se desenrolam a partir do contar do protagonista, como todo o texto, toda a ação do enredo parece se voltar para ele, assemelhando-se mais ao teatro que ao romance. André não é simplesmente o narrador da história, mas pivô de toda ela. Mais que narrar uma história, André traça um longo monólogo. Um monólogo em que ele, ao mesmo tempo, conta e questiona os acontecimentos. Não é uma visão de narrador que olha para a história na perspectiva do passado, mas de um ator que a vive, como se pode constatar no seguinte trecho do romance:

(…) eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta terra, e ama também o trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um milagre, querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode reverter (…) (NASSAR, 1989, p. 120)

Esses dois papéis, de narrador e de ator, ora se distinguem ora se misturam no romance. Há o André que relembra e o André que vive. Há o André que retoma o passado e o André que age no presente. Contudo os dois aparecem dentro do mesmo contexto. Quando relembra, André também atua e virce-versa.

Por exemplo, a conversa entre o protagonista e seu irmão Pedro pode ser classificada como muito mais teatral que romanesca. Ela tem a marca do presente, parece que está acontecendo exatamente no tempo em que está sendo escrita. Porém, nessa conversa, há interferências do André narrador. Nos trechos a seguir, fica evidente o caráter teatral desse diálogo:

Pedro, meu irmão, engorde os olhos nessa memória escusa, nesses mistérios roxos, na coleção mais lúdica desse escuro poço. (NASSAR, 1989, p. 73)

não faz mal a gente beber” eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há muito devia ter-se dado em casa “eu sou um epilético” fui explodindo, convulsionando mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue (…) (NASSAR, 1989, p. 41)

No primeiro trecho, há somente a presença do ator. Na seqüência do trecho no livro, há a total concentração no depoimento de André. Todo o desenrolar do texto se dá através daquilo que André diz naquele momento. Todo esclarecimento vem da palavra de André. Nele se fixa a expressividade do texto. É na intensidade de suas palavras que vai se imaginar suas expressões e as reações do seu irmão. Já na segunda passagem, temos ainda o mesmo diálogo entre Pedro e André, mas agora com a interferência do narrador.

A presença do teatro no texto nassariano, não se verifica pela total ausência do narrador, mas sim pela contundência que é dada ao discurso de André. Como já exemplificado, o narrador se faz presente em várias passagens, sendo usado, como é comum nos romances, para descrição de personagens e retomada de posições. Em contrapartida, as descrições mais esclarecedoras se fazem através do que as personagens dizem e da maneira como estas se comportam dentro da trama.

Os conflitos que são estabelecidos, os campos de força que vão sendo construídos através do discurso de cada personagem delimitam o espaço de cada um dentro do texto. Através dos diálogos é que se percebe que o pai e Pedro estão do lado oposto ao de André, enquanto Ana e a mãe parecem ter dois lados em conflito: um real e outro aparente. O lado aparente mantém a tradição familiar, a real rompe diretamente com ela.

Outra característica do teatro, presente em Lavoura arcaica, é a limitação de tempo. Na obra em questão, o desenrolar de fatos da infância, desembocam na adolescência e desfecham no André já adulto. Mas isso não toma um tempo grande no desenrolar do texto. Os fatos vão sendo contados entrecortados, de forma que todo o panorama do “como”, “quando” e “porque” se reduzem a poucas páginas.

No trecho a seguir, retirado de um dos diálogos entre André e o pai, fica bem clara a dramaticidade nas vozes de ambos:

– Não há proveito em atrapalhar nossas idéias, esqueça os teus caprichos, meu filho, não afaste o teu pai da discussão dos teus problemas.
– Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.
(NASSAR, 1989, p.162)

Analisando assim as características do teatro, percebe-se que o viés dramático marca intensa presença no romance nassariano. Esses elementos emprestam vigor e veracidade ao texto, colocando o leitor diante de personagens ricos de diversas facetas e, por isso, verdadeiramente humanos.

O poético em Lavoura arcaica

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiros os objetos do corpo (…) (NASSAR, 1989, p. 9)

É desta maneira que Raduan Nassar inicia seu romance. Não com um diálogo, não com a descrição de um personagem, nem com nada que possa esclarecer a idéia que perpassará as páginas seguintes. Não há nada de enunciativo, nada que possa dar uma idéia do porvir. Raduan Nassar começa seu romance como um texto poético, uma poesia de André para o seu quarto e os limites que ele estabelece. Não seria necessário que nada viesse depois para explicá-la. O trecho já se completa por si só. Dispensa laços, renega qualquer fundamentação.

Todo o romance nassariano é marcado por passagens, frases e expressões recheadas de carga poética, repletas de metáforas e musicalidade. O texto de Raduan Nassar nega-se a se prestar unicamente a fazer um relato. O texto é material de criação em si mesmo.

É no uso da linguagem poética na construção da sua obra que Raduan Nassar coloca a poesia como o gênero essencialmente literário, o gênero que tira a linguagem do seu eixo norteador.

O discurso de André é, ao mesmo tempo, forma e conteúdo: narra o enredo do livro e constrói, através da linguagem, o caráter do texto e das suas personagens. Nas palavras de André, estão escondidos todos os enigmas do texto, e sua poeticidade o tira do campo das certezas, deixando que os significados voem, se multipliquem, se espalhem.

Renata Pimentel, em seu estudo acerca de Lavoura arcaica, chama bastante atenção para a presença do poético na obra de Raduan Nassar. Em meio à narração, ela percebe “doses concentradas de fazer poético”, efeito que ela chama de desautomatização da linguagem. É desautomatizando o texto, buscando maneiras novas de falar sobre o que todos já conhecem, que Raduan Nassar consegue causar estranhamento e deslumbramento no leitor. O autor tira o leitor do conforto do conhecido para jogá-lo diante de formas inesperadas que remetem a um mundo essencialmente real.

Raduan Nassar garimpa a língua em busca da palavra mais certa, da expressão mais pura, do conceito mais distante do comum. O texto se constrói através de metáforas, repetições e se desenlaça num compasso que mais encontra identidade no campo da poesia que no da prosa, como se observa na passagem a seguir, na qual se encontra os delírios poéticos de André:

(…) que essa mão respire como a minha, ó Deus, e eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre o Teu corpo, e com meus dedos aplicados removerei o anzol de ouro que Te fisgou um dia a boca, limpando depois com rigor Teu rosto machucado, afastando com cuidado as teias de aranha que cobriram a luz antiga dos Teus olhos (…) (NASSAR, 1989, p. 104, 105)

Em Lavoura arcaica, não há a busca por uma organização rigorosamente lógica. O texto flui na corrente dos pensamentos e sentimentos das personagens. Isso se verifica na ausência de parágrafos e no uso diferenciado da pontuação. Só há pontos finais no final de cada capítulo. No mais, a pontuação do texto se faz, sobretudo, através das vírgulas. E em alguns trechos, como em “(…) branco branco o rosto branco(…)” (NASSAR, 1989, p. 98), o efeito do poético é tão forte que até essas são dispensadas.

A repetição é um dos elementos que caracterizam o fazer poético. Repetição não para retomar uma idéia, mas para criar uma nova e, além disso, gerar cadência e musicalidade no texto, como se vê presente nos trechos abaixo:

O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros (…) (NASSAR, 1989, p. 95)

(…) que paixão mais pressentida, que pestilências, que gritos! (NASSAR, 1989, p. 94)

(…) róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual (…) (NASSAR, 1989, p. 9)

Em Lavoura arcaica, Raduan Nassar repete sons, palavras e até uma passagem inteira. O trecho da festa está presente no início e no final do livro, sendo repetido quase integralmente. Mas cada um com uma função distinta: em primeiro, o trecho é o anúncio do romance entre Ana e André (p. 29 e 30); no final, ele é o enlace final do amor proibido (p. 186,187).

Assim: buscando o sentimento definitivo de cada expressão. Fazendo do seu texto não somente material de apreensão, também de degustação, Raduan Nassar inova escrevendo o que se hoje denomina na moderna literatura de prosa poética, mistura de forma e conteúdo, concreto e sublime.

PERSONAGENS

André: filho de fazendeiro que, ao apaixonar pela irmã foge de casa.

Ana: irmã apaixonada pelo irmão André.

Mãe de André: sofre muito com a fuga do filho.

Pedro: irmão de André que foi buscá-lo no vilarejo onde morava num quarto de pensão.

Iohána: pai de André, morreu logo que percebeu o amor do filho pela irmã Ana.

Lula: irmão de André que também pretendia fugir.

Rosa, Zuleika, Huda – irmãs de André.

ENREDO

O enredo de Lavoura Arcaica revisita, em pequena medida, a história de Amon e Tamar, os incestuosos filhos de Davi, segundo Rei de Israel. Faminto de um tipo de amor que não viceja nos leitos meretriciais que assiduamente freqüenta, André, adolescente instável e presa de uma psique tumultuada, acaba encontrando em Ana, sua irmã mais nova, o combustível do seu desejo sexual e de suas afeições.

Se constitui numa trama dos costumes de uma família onde é mostrado a fuga de André, um adolescente que sempre fora criado na fazenda sob um duro modelo educativo passado por seu pai, o chefe do modelo familiar.

Tal fuga de casa pode ser entendida pelo grande amor que André sentia por Ana, sua própria irmã. Paixão esta que nunca poderia ser compreendida por seu pai. Assim, ele foge para um vilarejo.

A reação de Pedro, seu irmão mais velho, foi a de ir até a pensão onde ele estava e tentar trazê-lo de volta para sua casa na fazenda, onde sua mãe o esperava com ansiedade, sofria bastante com seu filho longe.

Ao achar André, Pedro começou a contar sobre os acontecimentos que estavam ocorrendo na fazenda sem ele. O irmão o recebeu contando lições sobre questões e preceitos da família como a história de um homem faminto que pediu comida. Demonstrou seus pensamentos, apesar de pouca idade acreditava que não valia a pena esperar em algum momento, em certas ocasiões era necessário agir, e logo. Contudo, nada disse sobre sua volta à fazenda.

Suas irmãs apenas rezavam para sua volta, cumpriam as ordens do pai e da mãe, e esta última apenas cumpria com suas funções de dona de casa.

André acaba voltando para casa, suas idéias não batiam com as dos pais que não entendiam a que se passava com o filho. E ele não aceitava a situação de amar a irmã e nada poder fazer. Porém desabafou ao pai que estava cansado, humilde, entendendo a solidão e a miséria, pedindo o seu perdão e amor.

Seu outro irmão, o Lula, acaba dizendo que também queria fugir de casa, que não agüenta mais aquela vida parada da fazenda.

No dia seguinte à chegada de André foi preparada uma festa por seu pai. E assim como iniciou a obra sua irmã Ana dança sensualmente para ele. Foi nesta festa que o pai percebeu o que realmente passava com os irmãos. Desesperado o pai sofre um ataque de tristeza e morre.

COMENTÁRIOS GERAIS

Lavoura arcaica possui a característica comum a toda grande obra de arte: a de nunca se esgotar. Há tantos signos há serem desvendados, tantos caminhos a serem percorridos que não se pode imaginar o dia em que um ponto final seja colocado nas questões que o livro abrange.

Já a partir de seu enredo, Lavoura arcaica começa a tumultuar: um jovem, André, sai de casa fugitivo do rigor do pai e da paixão por sua irmã, Ana. De volta para casa, ele trava uma longa conversa com seu irmão mais velho (uma espécie de sucessor do pai), permeada por uma série de conflitos que vão se desdobrar e refletir na própria estrutura do texto. Uma estrutura densa, capaz de adentrar as superfícies movediças de temáticas como religião, família, incesto, sem se deixar engolir pelo previsível. Raduan Nassar cria uma linguagem nova baseada em textos da Bíblia e do Alcorão, em que o poético se funde ao dramático para construção de um romance que pulsa no sentimento do novo.

Um estudo da obra nassariana intitulado Uma Lavoura de Insuspeitos Frutos, Renata Pimentel Teixeira chama atenção para o caráter desnorteador de Lavoura arcaica. Uma obra que pula a cerca das classificações e corre livre no campo do variado. À primeira vista poderia até ser chamada de romance, mas sua estrutura circular, sua linguagem poética e sua carga de dramaticidade vão além do que se espera desse, em sua formulação tradicional. O texto nassariano é, pois, uma obra de múltiplos gêneros. É romance por sua base mestra no encadeamento de episódios. É teatro por dirigir o vigor do texto para as personagens. É poesia por suas ricas metáforas, uso de aliterações, repetições e sinestesias.

Lavoura arcaica é a fala de André, sua ambigüidade é a de André, e da mesma forma sua indefinição é reflexo do não-enquadramento do André em um padrão. E como André está em todos da sua casa e ao mesmo tempo não está em nenhum, o texto nassariano não se fecha em um só gênero já que passeia por muitos.

A obras é sem dúvida um romance apaixonante tanto para os leitores leigos como para os especialistas em literatura. Oferece material de deleite tanto para um quanto para outro. Um texto que coloca o leitor diante da poesia e da intensidade escondida nos fatos mais corriqueiros da vida. Uma obra de todos os lugares que acaba por se fixar naquele que cada um particularmente busca. Que fala de tradição enquanto remete a um tempo imensurável e individual.

A obra mistura o hoje, o ontem e o sempre. Mistura repulsa e paixão. Mistura o perene à descoberta. Lavoura se desvencilha do pré-estabelecido como forma de se fazer pertencer. Sai da casa da tradição em busca do seu próprio caminho. É filha pródiga que escapa da vigilância do seu senhor, mas que logo volta ao lar, convicta de que nada poderá encontrar fora dos limites da história.

Fontes: Curso de Literatura Brasileira, Editora Leitura XXI, Porto Alegre | Lúcia Liberato Evangelista, Letras – Universidade Estadual do Ceará (UECE) | Revista Entre Livros | Publicação Orpheu Spam | Colégio Exathum (SC)

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