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Livro de pré-coisas, de Manoel de Barros

by Lucas Gomes

Livro de pré-coisas

, é uma prosa-poética de Manoel de Barros em que ele
conduz o leitor pelas entrâncias do Pantanal. Nos três capítulos do livro o
poeta apresenta seus rios, personagens e cenários, falando sobretudo de seus
bichos e coisas.

Ele adverte na abertura do livro que o trabalho não é sobre o Pantanal. A natureza
não funciona nem como cenário, nem como arsenal retórico. Ela é, isto sim, a
matéria-prima da poesia. O poeta conduz o livro como se fosse um roteiro em que o
narrador apresenta sua terra e viaja por ela. Sua dicção é particular, a partir do
uso da linguagem regional trabalhada, com ecos da ficção de Guimarães Rosa. Aqui
está presente a característica principal da poesia do escritor: a utilização de
lirismo e delicadeza para falar das coisas e bichos “menos importantes” da natureza.
O homem mais importante dessa terra é Bernardo, o primeiro habitante da cidade
pantaneira, um andarilho que atravessa a obra de Manoel de Barros. Seus textos
geralmente combinam, unem o ser e a coisa: a lagartixa e a parede, o homem e a
água, a boca e a terra, a criança e a árvore, a rã e a pedra.

Através da leitura, percebemos que a poesia vai se revelando de pequenas coisas,
elementos corriqueiros, aparentemente banais, é um discurso sobre o nada, sobre
aquilo que está fora do eu-lírico. Há uma tendência deste eu-lírico de se coisificar,
de se aproximar da natureza. O poeta tenta se vegetalizar, lançando o seu olhar para
baixo na presença das pedras, dos animais e principalmente dos rios, para
transformá-los em palavras, em sua linguagem poética. É a poesia arrancada da terra,
o sujeito lírico constituído a partir do olhar rasteiro, mais próximo do sublime do
natural que iremos encontrar na leitura deste poeta.

Com o poeta, e com um de seus personagens, o Bernardo, vamos decifrando os rios
lúbricos, as ruas de água, as flores lassas, sobrados podres florindo, o branco das
garças, o latim dos sapos, a escritura da lesma, a caligrafia da chuva, o sânscrito
dos socós, tradução de borboletas, palavras de água ainda não registradas em dicionário
de urubus.

Nota: Bernardo aparece pela primeira neste livro como um personagem construído
a partir de restos: Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era. Veio de longe
com sua pré-história. (…) É muito apoderado pelo chão esse Bernardo.(…) Bernardo
está pronto a poema. Passa um rio gorjeado por perto. Com as mãos aplaina as águas.
Deus abrange ele.

Guiados pelos dois, vamos descobrindo, sempre pela primeira vez, o Agroval, onde
a poesia e a prosa copulam até o gozo das larvas, micróbios e embriões, armaus,
tênias implumes, até a festa uterina das blástulas e gástrulas, sementes e ovas,
baile de placentário, inaugural, dos protozoários e algas opalinas, como nos é
apresentado na orelha do livro.

Os recursos usados pelo poeta na elaboração de sua escrita são diversos. Metáforas,
sinestesias, anáforas, comparações, aliterações, paradoxos, símiles,
intertextualidades e enumerações, se cruzam na sua composição lírica, formando uma
colcha de retalhos onde tudo se junta e se fixa virando poesia. As palavras pulam,
pulsam ganham sentido próprio, ganham também defeitos e subversões, pois segundo o
próprio poeta, fazer defeito na frase é mais saudável. A palavra na sua composição
poética não tem um sentido só, vai além, não tem fronteiras: “Palavra é deslimite”.

Pode-se observar uma tendência biográfica nesta poesia das pequenas coisas, pois
o sujeito lírico vai se revelando aos poucos e construindo sua identidade, mesmo
não sabendo o local de nascimento do autor, através de sua poesia podemos identificar
sua origem. Isto ocorre porque o sujeito lírico de Manoel de Barros demarca para o
leitor uma vivência geográfica, o coração do Brasil, o Pantanal Mato-grossensse
construído através da matéria poética do autor. É um sujeito contador de estórias
que vai descrevendo e demarcando os elementos naturais. E é a partir desta sua
poesia de desaprender objetos, desinventar a utilidade das coisas e desvendando
o mistério da frutificação e da germinação do Pantanal que vamos aprendendo a gozar
através do nada, imposto pela poesia sublime e supostamente inútil deste poeta
pantaneiro.

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