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Livro dos Homens, de Ronaldo Correia de Brito

by Lucas Gomes

Livro dos homens

, publicado em 2005, é o terceiro livro de
contos do autor cearense Ronaldo Correia de Brito, e deixa antever, na ambiguidade
do título, a matéria de que é entalhado todo o livro: o
designativo “livro dos homens” que enfeixa o volume remete tanto
ao título do último conto, que lhe é homônimo, quanto
a uma referência mais abrangente, como se antecipasse ao leitor que o
aguarda: uma sondagem do comportamento humano.

O autor conta histórias reinventadas por suas lembranças, pelo
que viveu, experimentou e ouviu dizer, no Ceará e no Recife. O cenário,
como em seus outros trabalhos, é o sertão nordestino. Mas ele
não aceita o rótulo de escritor regionalista. É fácil
entender. Quase todos os personagens que aparecem nos contos poderiam ter qualquer
nome e estar em qualquer lugar do mundo. A limitação geográfica
é “ilustrativa”. É uma forma de oferecer ao leitor um
reforço de imagens, já que ele viveu naqueles locais, passou por
aquelas gentes e ouviu seus sotaques. É uma opção do escritor,
que fala, sim, de assuntos que tocam a todos. O conto “Eufrásia
Meneses”, por exemplo, poderia ter se passado em Curitiba, Paris, Alabama
ou Tóquio. Trata de solidão, de desejos ocultos, de imaginações
nascidas das sombras:

A noite poderá trazer surpresas e eu devo me recolher cedo.
Estou só. Não há pai, nem mãe, nem sorriso de irmãos.
Só a casa espreita, querendo me tragar
.” (pág. 23).

A obra é ainda, o volume em que se registram as crianças batizadas
em uma paróquia, onde se lavram e se guardam o nome e a honra. Do particular
ao geral e, por fim, de volta a um dado específico, a multiplicidade
de significados de Livro dos homens define a natureza das treze narrativas
que compõem o livro, todas atadas ao retrato brutal – mas nem por
isso alheio à poeticidade da narrativa – de homens colocados em
situações que os submetem ao limite da própria existência.

E há que se falar em poeticidade da narrativa, expandindo o que se poderia
esperar de uma “poeticidade da linguagem”, pela maneira como Ronaldo
Correia de Brito constrói seus contos, sempre arquitetados em estruturas
temporais que colocam a fala do narrador em um interstício de presente
e passado, articulando tempos e espaços de modo a manter em suspenso
o ponto que sustenta cada narrativa, resvalando em desfechos quase sempre trágicos
em que o ponto final alinhava o silêncio do absurdo da vida ao sentido
morte.

É o que ocorre em “O que veio de longe”, conto sobre um
homem chamado Sebastião – santo inventado pela fé dos habitantes
de um povoado de passagem no sertão brasileiro. Este conto abre o livro
e narra a história de um corpo levado pela enchente do rio Jaguaribe
até o povoado de Monte Alverne, onde foi enterrado pela pequena população,
ao lado de uma oiticica que servia de sombra e pouso para quem conduzia seus
rebanhos. A história do corpo transforma-se em trajetória do homem
na medida em que os habitantes da cidade inventam um passado para o morto, feito
personagem de falas que o alçaram a santo e abençoaram os pertences
retirados do corpo mutilado e guardados como relíquia:

O corpo cravado de balas e a boiar, inchado e cinza, às margens
do rio, é o de um santo homem. A cidade toda sabe, e repassa, boca a
boca, a quem quiser ouvir. Ele é milagroso, esse Sebastião. E
veio de longe, muito longe. Nem se sabe de onde. Não interessa. O que
importa é que ele curou uma mulher marcada para morrer, vítima
do veneno de uma serpente. Ali, onde Sebastião foi enterrado, ela lhe
rogou por sua vida. E ele atendeu. Com clarão nos céus e sons
divinos. Tudo o que a mulher agonizante tinha direito. Era óbvio que
o moço, recém-chegado ao Paraíso, era a cura para aquele
povoado. Um santo próprio, só deles. Que eles descobriram e a
ele se apegaram. A alegria tomou conta daquele lugar e ninguém se importava
que a história tivesse sido montada, como uma criatura de Frankenstein,
com pedaços de outras. A fé que eles tinham não precisava
de provas. Ela se bastava. E tornava-se tão poderosa que, para mantê-la
viva, qualquer comportamento ou ação seria justificado. Mesmo
o extermínio de quem dela duvidasse.

As histórias de Livros dos Homems falam de fé (no que
quer que seja, desde que alivie o sentimento de abandono, de ser esquecido pelos
homens e, às vezes, pelo divino), de amor, de ódio, de dúvida,
de solidão, de alegria. De cometer erros e acertos. De vida e de morte.

Não é difícil imaginar que Ronaldo Correia de Brito adorava
sentar no chão e ouvir os mais velhos contarem “causos”, lendas,
histórias da cidade e de Deus. Os personagens ouvidos devem ter povoado
sua imaginação e pulado para o papel. Ali, escritos, continuaram
vivos. Muito do que ele ouviu foi, certamente, assentado nos contos de Livro
dos homens
. Os caboclos de lança do maracatu pernambucano, as lendas
de santos e suas eternas brigas contra os enviados do “coisa-ruim”,
os animais que acabavam na mesa ou aliviavam os sonhos eróticos de adolescentes
fogosos. A sua versão das histórias. A interpretação
do que está escrito fica a critério do leitor.

A Bíblia, o livro de Deus, é referência recorrente nos
contos de Brito. Afinal, as histórias bíblicas foram escritas
pelos homens, com suas interpretações e sua linguagem – que nem
sempre abarca todo o mistério daquele que tudo criou. A referência
mais explícita ao livro sagrado dos cristãos está no conto
“Qohélet” (Coélet, aquele que sabe, filho de Davi),
em que a Bíblia e o maracatu misturam-se à procura pelo sentido
da vida, empreendida por um personagem submetido aos horrores de um hospital
para tuberculosos. O texto trata da fé em Deus, a partir da leitura das
sagradas escrituras (especialmente do Eclesiastes), e da fé nos homens,
representados pela força e o brilho dos caboclos de lança. O divino
e a tentação. O tempo de viver e o tempo de morrer. A morte, aliás,
permeia todo o livro. Explícita ou veladamente está sempre ali,
à espreita, fungando no cangote dos personagens desavisados. Em “Mexicanos”,
é descrita pelo ponto de vista de um garoto, que vai – muito a contragosto,
porque era carnaval e dia de sair no bloco dos mexicanos – no enterro do tio
assassino e suicida:

De um lado e de outro dos velórios em contenda, ninguém
chorava, como se não houvesse o que lamentar naquelas mortes. À
luz cinzenta da tarde, a cidade parecia mais feia. Olhei as flores, ansiando
por uma revelação de alegria. Mamãe me arrastava para seus
abismos, negando-me a vida a que eu tinha direito. Aspirei o perfume das rosas
e recusei-me a afundar com o morto. Ele que descesse sozinho os sete palmos
de terra.
” (págs. 91 e 92)

A construção do passado por meio do imaginário popular
evoca os meandros da tradição, emoldurada na palavra e na crença
de um povo que precisava de uma história para se (re)conhecer. Nos contos
de Ronaldo Correia de Brito, os movimentos dessas vozes que serpenteiam como
cobra e tecem o tempo são desvendados com a aparição de
outro estranho, desta vez vivo, que revela a identidade do morto: o assassino
de uma moça inocente, tirado da vida e jogado no rio pelo forasteiro
que ali estava, agora morto pelo povo, descrente na história por ele
“inventada”. O rio que carrega o corpo é o mesmo que apaga
a verdade e mantém acesa a chama da crença popular, salva pelo
apagamento de qualquer referência ao fato mitificado.

As histórias dos homens que compõem o livro de Ronaldo se entretecem,
elas mesmas, ao emaranhado do imaginário popular nordestino, trazido
para o texto como pano de fundo que acaba por emprestar seu significado ao primeiro
plano da narrativa, como em contos como “Qohélet”, já
citado, ou “A peleja de Sebastião Candeia”, trajetória
de Sebastião, que se dedicara à banda tocada por ele e seus filhos
em louvor a Nossa Senhora da Penha: a temporalidade da vida ata-se à
tradição do ritual religioso, de modo que, perto da morte, o personagem
reencontra o significado da existência na repetição dos
movimentos da dança.
Misticismo, arte popular, tradição e uma certa violência
íntima do cotidiano do sertanejo e do habitante de pequenas cidades do
interior nordestino fazem parte do universo de composição de Ronaldo
Correia de Brito, que, com seu Livro dos homens, confirma e reafirma
um modo de tecer a narrativa que recupera traços da ficção
regionalista, desenvolvida ao longo da literatura brasileira desde finais do
século XIX, e os insere em um contexto diverso, em que o tradicional
convive com o contemporâneo e as angústias do novo – como
ocorre em “Milagre em Juazeiro”, em que o ceticismo científico
do médico Afonso é turvado pela crença da esposa Maria
Antônia, também médica, em uma peregrinação
a Juazeiro, onde encontra o passado da mãe e o presente da religião.

Ainda em “Milagre em Juazeiro”, é possível ver a alma
sertaneja no rosto dos romeiros. Movidos pela fé, eles buscam sua história.
Por si mesmos, em meio a tantos iguais:

Cansados e cobertos de poeira, já nem contemplavam as estrelas,
escondidas por uma nuvem que se derramou em chuva fina. Obrigados a se proteger,
deitavam-se uns sobre os outros. A chuva, mesmo molhando-os e aumentando o frio
no turno do sertão, era sempre a mais amada das bênçãos.
Bendita sempre, mil vezes bendita, mesmo que causasse estragos. Que dano nenhum
era molhar as roupas e o rosto de Antônia, de pé, recebendo os
pingos d’água na cabeça, batizando-se romeira, em busca da Terra
Santa e de seu povo.
” (págs. 74 e 75)

Assim como em Faca, livro de contos publicado em 2003, aqui o autor
revela um olhar rigoroso da realidade que, entremeado pelas cores do imaginário
popular, compõe um todo em que a crueza do trágico contrasta com
a leveza do estilo, dissonâncias que, ao final, harmonizam-se. Partindo,
muitas vezes, do dado local e da mais singela particularidade do cotidiano popular,
Ronaldo atinge uma aguda observação da natureza humana, vista
tanto em sua realidade carnal quanto em sua dimensão mítico-espiritual
– leia-se o conto “Cravinho”, em que a história de
José Gonzaga dos Passos ata o teatro popular nordestino ao significado
humano dos personagens da Ópera de Pequim, remetendo o leitor à
atmosfera artística e social de “Adeus, minha concubina”.

A alma sertaneja, mais regional e explicitamente, aparece nos contos em que
a cultura nordestina se mostra em toda sua cor e som. Como em “Cravinho”,
já citado, em que o protagonista, Mateus Cravo Branco, é personagem
de reisado nordestino. Ele conta sua história, fala de seu envolvimento
com o folguedo. E de como foi confundido com uma bela moça. A peleja
de Sebastião Candeia também tem as cores ensolaradas do nordeste.
É uma referência às lendas e à força do homem,
que consegue, com sua dança, adormecer o jacaré-serpente em cujo
lombo repousa a Virgem, sobre uma pedra.

O amor feito de silêncios e memórias, e o que só conhece
o desejo e a indiferença estão nos contos “Da morte de Francisco
Vieira” e “O amor das sombras”. No primeiro, Clara Duarte recorda-se
do amor, feliz e colorido, mas interrompido tão cedo pela morte de Chiquinho,
seu único homem, que acumulou tralhas que agora enchem dois quartos inteiros
de um vazio terrível. Laerte Pereira, na segunda história, também
conheceu apenas um tipo de amor. Mas era um amor feito de migalhas. Concedido
para aplacar os desejos da mulher que nunca poderia ser sua:

A estreiteza do batente obrigava-os a uma proximidade de aconchego.
Laerte foi tomado de um enlevo que adormecia o corpo, como se milhares de formigas
o percorressem em todas as direções. Uma tontura queria desmaiá-lo
e o coração se acovardava acima das cem pulsações.

(págs.116 e 117)

A lembrança da escravidão e a ilusão permeiam o conto
“Maria Caboré”. A personagem-título é uma negra
que vive de pilar arroz e fazer serviços nas casas da vizinhança
em troca de comida e uns poucos trocados. Exatamente como faziam muitos de seus
antepassados, gente que não chegou a conhecer. Apenas ouve os tambores
e os sons que parecem vir de além-mar. Como não quer se deitar
com os homens da região, porque sonha em ser amada por homens de “rostos
escuros, de uma terra de muito sol
“, a comunidade local brinca com
ela. Diz que Príncipe Odilon e o Rei-do-Congo vêm da África
para buscá-la e com ela se casar. E ela acredita. Porque para diminuir
a dor de não ter casa ou família, essa é a verdade. Foi
para isso que nasceu.

O último conto é o que dá nome ao livro. Fala do apego
à família e às tradições, mas, sobretudo,
fala de honra. Oliveira Francisco e o primo Antônio Samuel tinham a incumbência
de vender as reses da família ao coronel Júlio Targino, que fez
a proposta mais alta pelo gado, mas só poderia pagá-los em três
meses. Resolveram esperar na fazenda do coronel mesmo, para evitar que o homem
deixasse de cumprir com o negócio. Enquanto Oliveira se apegou ao comprador
do gado, Antônio Samuel fazia de tudo para cumprir a promessa que fizera
ao pai, na saída de casa:

– Oliveira, você vela pelo sangue de Samuel e pagará
pelo que acontecer a ele. Samuel, você é bem jovem ainda, porém
já responde pela vida de seu primo.
” (págs. 162 e 163)

Os contos de Ronaldo Correia de Brito partem da referência particular
de sujeitos marcados por uma tradição local que lhes dá
nome e determinação geográfica para alcançarem a
generalização de uma poética narrativa que busca, antes,
o Homem. Com esse seu terceiro volume de contos, o autor cearense encontra na
palavra o fundamento que cria e sustenta a tradição e o imaginário
do Nordeste brasileiro e, mais do que isso, os insere em um conjunto mais amplo,
fiador da alma humana: livro de homens e de coisas, de imagens e escuridão,
vozes e silêncios, vida e morte.

Créditos: Juliana Santini, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista – UNESP
| Andrea Ribeiro, Jornal Rascunho

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