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Macho não ganha flor, de Dalton Trevisan

by Lucas Gomes

Em Macho não ganha flor, reunião de 22 contos inéditos, Dalton Trevisan
desfila ladrões, estupradores, sádicos e maníacos . Em 12 desses contos, são enfocados
os ambientes e as circunstâncias da criminalidade urbana. Os personagens dividem-se
entre ladrões, gigolôs e assassinos, sádicos e maníacos que desfilam por meio
de uma linguagem sem firulas, além das pessoas que com elas se relacionam. Nos
outros 10 contos abusos sexuais, taras e estupros permeiam as tramas.

São três as linhas narrativas. A primeira que se apresenta é a da
humanidade perversa e pervertida, violenta e tarada onde os estupradores são os
protagonistas e as belas e jovens meninas, as vítimas. Exatamente por ser o mais
hediondo dos crimes e o que mais apavora o imaginário social contemporâneo, o
autor o trata com proposital e apavorante crueza, nauseando o leitor, assustando
a leitora, tirando do mundo qualquer possibilidade de sentido. É assim o conto
que dá título e abre o volume, “Macho Não Ganha Flor”. E também o conto que o
fecha, “Você é Virgem?”, em que uma menina de 15 anos fica sozinha em uma loja
e atende o homem que a estupra, mesmo sendo virgem. Este, aliás, é um dos raros
contos em terceira pessoa.

Uma segunda e mesmo estética linha é a da humanidade erótica, não necessariamente
perversa, talvez apenas tarada, mas fundamentalmente excitada, desesperada pelo
gozo carnal e subversivo. Desta linha são os belos (e excitantes) contos “O Vestido
Vermelho” e “Prova de Redação”. Aqui a violência sexual do estupro dá lugar ao
sadismo e masoquismo das relações selvagens, a fêmea clama por prazer, incita
o parceiro a tê-la de todas as formas, a devolver o gozo perdido:

Nunca mais,
seu puto, me fará gozar? Ordene, que eu obedeço. Ficar de pé no armário, portas
e pernas abertas? Ou rendida me ajeitar de quatro? Me ofereço sem reserva às tuas
massagens erógenas do eunuco na odalisca preferida do Sultão – e você, indiferente,
nem pisca? Quero sentir os teus beijos pelo corpo me ungindo com o mais afrodisíaco
dos óleos. Quero mordida doída na bundinha em flor. Do macho a gente espera fatal!
o beijinho molhado e o tabefe ardido de mão aberta.
”

Uma terceira linha é a da representação de uma humanidade marginalizada. São pobres
coitados, assassinos por ocasião de uma briga na favela, prostitutas exploradas,
mães humilhadas por roubar ovo de Páscoa para os filhos. Contos que mais parecem
depoimentos, todos em primeira pessoa, e que lembram muito Contos Negreiros,
de Marcelino Freire. Expostos assim, em meio aos contos de violência física e
sexual, parecem justificar aquela selvageria do mundo, parecem mesmo julgar e
condenar a marginalidade por todos os crimes, mas se pinçarmos estes contos um
a um veremos uma face de Trevisan que não é das mais exploradas, a de um crítico
social disposto a denunciar desigualdades, injustiças, desmandos.

Trevisan forja uma versão marginal do Conde Nelsinho, o Tibinha, redução do diminutivo
Curitibinha, ladrão gago de boné vermelho e dentinho de ouro. Tibinha assalta
a casa e se aproveita da filha de família. É ela quem narra o conto que dá título
ao livro. E, mesmo horrorizada com o marginal, com sua brutalidade, com seu bafo
de morte e droga, por um momento, ela se entrega: “essa carne, com fúria manuseada,
já não era minha”
(pág. 8). A moça, apesar de assustada, sente que seu corpo
foi despertado e vive uma alteridade, como a mulher de bandido que gosta de apanhar.
Ele a submete a tudo, mas não consegue a satisfação.

Tibinha evita o sentimentalismo e o romantismo, declarando conhecer a fraqueza
das fêmeas. Conta que uma mulher, durante um assalto, também gostou dele e até
lhe ofereceu uma rosa ou um cravo: “Mas eu avisei: ‘Macho não ganha flor.’
O que eu quero… vou lá e me sirvo”
(pág. 11). E esta lógica proprietária
que lhe dá os distintivos. Ele não pede, toma. É um assaltante também do corpo
das mulheres. Findo o roubo, a vida da moça volta à normalidade, ela se casa,
mas seu relacionamento não dá certo, porque à sombra daquele entusiasmante sofrimento.

A mulher, nesses contos, sempre aceita o macho e o valoriza na mesma proporção
que ele a despreza. A tudo elas se entregam, como no conto “Vestido Vermelho”,
em que a amada escreve a seu homem: “Ordene, que eu obedeço” (pág. 21).
Ou: “Do macho a gente espera fatal! o beijinho molhado e o tabefe ardido de
mão aberta”
(pág. 23). Uma outra personagem, que também escreve ao sedutor,
oferecendo-se, confessa: “Sabe que de apanhar eu gosto?” (pág. 112).
E, mesmo tendo medo, aceita ser sodomizada.

Essas personagens apenas assumem, na ótica dos anti-heróis de Trevisan, a inevitável
queda pelo machão. Um outro personagem, que nunca abusou da mulher, diz que, se
ela quiser, ele a espanca, pois “sou macho muito inteiro” (pág. 64).
Esse super-homem não respeita nem as crianças, como em “Tio Beto”, história
das bolinações que um motorista de van faz em uma menininha. Mas o bruto não aceita
ser sodomizado por um velho pederasta, matando-o quando ele tenta inverter os
papéis – “A festa é você”.

Nesta esfera social, a lei da vida é ainda selvagem. Sobrevive o forte, despertando nas mulheres uma pulsão
masoquista, reconhecimento do fascínio pela anormalidade. A marginalização ressuscita, em tempos de
direitos da mulher, esse homem todo-poderoso, criando uma lógica de cafetão para as relações humanas, com
as conseqüências inevitáveis: traumas nos personagens mais fracos e taras nos mais fortes.

Se esta é a lógica narrativa dos contos, a linguagem de Dalton Trevisan também
a segue. Cada vez mais, ela deixa de pertencer ao campo da ficção para se aproximar
da poesia. Além de narrar episódios de prazer, Dalton sexualizou a linguagem.
Há um uso erótico das palavras – palavras que entram em seus contos segundo o
princípio do prazer lingüístico. Em frases que possuem uma música moderna cheia
de silêncios, há passagens onde o poético se impõe criando imagens e construções
dignas da mais alta poesia: “Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca
de leve a cortina do quarto”
(pág. 7); “no falo felação faço” (pág.
21); “Nunca mais abraço cafuné mordida tapa amasso agarro beijo nó górdio
de língua?”
(pág. 24); “Em que velho sapato se esconde a aranha-marrom
do teu desejo?”
(pág. 25); “Veja, o chuvisco de estrelas no céu – uma
bela noite”
(pág. 53); “Os dois agora aos berros, com punhais nos olhos”
(pág. 78). Por mais sórdido que seja o contexto, a linguagem fulgura com
função poética. Com isso, o autor dá um valor literário a expressões coloquiais
e gírias, resgatando-as da vala comum.

Em “Três Ovos de Páscoa” uma mulher explica para algum “doutor” que roubou três
ovinhos de Páscoa porque os filhos pequenos pediram, e conta como foi presa e
humilhada pelos guardas, que a levaram para a delegacia e ainda disseram: “Ah,
sua cadela, cê vai chegá lá. E vai ficá pelada pra apanhar. Cê vai vê o delega
que tá lá hoje!”
. Na hora temos a impressão que o conto virará o fio e narrará
os abusos do delegado com a mulher. Mas não, aqui o efeito pretendido é outro,
não o do pavor, mas o da revolta, não o do fracasso da humanidade, mas o do fracasso
das relações sociais.

O primeiro conto, “Macho não ganha flor”, que dá nome ao livro,
começa em clima romântico, com uma jovem de roupão, prestes a entrar no banho,
numa tarde de sol, ao som do canto de corruíras. De repente, a moça-narradora
percebe que não está sozinha na casa, desponta um estuprador que, imediatamente,
abre o roupão e tem início uma peleja sexual feita de gemidos, esfregas, nojo,
medo, choro, zíper, calcinha, seio, mão boba, arranca, esgoela, até que a mocinha
se dá conta “que ele tentava, mas não conseguia”. Macho ofendido, a culpa é dela,
Eva é culpada. Ele sai roubando e assim compensa a tentativa frustrada de dominação
sexual.

Este conto dá o tom aos demais: o clima de folia fescenina, linguagem chula, obscenidade, domínio da
intimidade escancarada, desejo e perversão sexual emulados pela violentação do outro são dados que
transparecem na obra inteira.

Em “O vestido vermelho”, a narradora, ao contrário da anterior, apela para que o amante volte. Ela deseja
ser violentada e para isso veste vermelho, a cor da sedução:

“Quem não sabe que o meu amor é tarado por uma violação? Que só pensa em enfiar,
meter, arrombar o meu corpo e currar a minha alminha.”
(p.23)

“Do macho a gente espera fatal! O beijinho molhado e o tabefe ardido de mão
aberta.

Mas onde está você, cego e surdo, que não responde?“(p.22)

Ao mesmo tempo em que existe um imaginário erótico masculino, ele é também feminino, pois a mulher o
incorpora para se tornar sedutora ao homem. Mas quando ele a quer, ela não o quer, e vice-versa,
instaurando o malfadado desencontro. O encontro nunca é natural, às vezes ele é forçado. Em “Ai, ai, eu
morro”, ele, de faquinha na cinta, bêbado, esfaqueia a mulher na barriga, porque ela, também bêbada, se
queixa de que ele está pesando em seu ombro, enquanto caminham.

“Eu desmaiei e logo acordei. Já viu uma cachorra atropelada no meio da rua?
Essa era eu. Me arrastava ali no chão. Um bando de caras nojentas em volta. Bem
que apreciavam o quadro. Toda me esvaía pelas três bocas abertas na barriga.”

(p.61)

“Depois de quatro meses de recuperação, “Agora a gente tá junto de novo.
Assim que me força pra ficar com ele. E não dá jeito de conhecer um cara legal.”

(p.61)

Quanto aos narradores homens, em “Isso aí, malandro”, um assaltante conta a experiência
de roubar um casarão, a emoção do risco e o relato de sexo entremeado com roubo:
“Se aparece uma dona pela frente periga ter de abrir as pernas. Isso aí, chefia.
Por bem ou por mal. Não dá pra segurar.”
(p.16) Também fios autobiográficos
do narrador emergem: a filha “tava com seis meses, uma pombinha do céu. Só
porque chorava, a mãe afogou no travesseiro.”
Seguindo o assassinato da filha,
o abandono da mulher que se ligou a um viciado em pó e pedra, é o conto
“Ele é do mal”. Na terceira investida ao casarão, o narrador é pego pelo vigia,
e os dois acabam dividindo o butim do roubo. Roubo, estupro, assassinato, droga,
bebida, alcagüetagem, identificação entre ladrão e polícia, transitam por outros
contos. Também a falta de solidariedade entre pares, o gesto gratuito de violência,
a exploração da prostituta pelo freguês bacana e pelo gigolô, o abuso sexual de
crianças complementam esse quadro em que não existe mais vestígio do bem. Não
há princípio moral ou lei que se sustente, não escapa nem mesmo o estupro de uma
mãe pelo próprio filho.

Em “O menino de sua mãe”, a narradora é a mãe que conta que seu filho afogou seu pescoço, riscou de leve o
estilete e

“sem mais palavra, penetrou. /…/ lembro ter pensado: Antes eu, e não outra.
Que outra iria se conformar? Se o teu filho é pirado, até isso você deve sofrer.
Quando todos condenam, não é a mãe que perdoa sempre?”
(p.75)

Personagem que retorna de outros livros, uma estudante de uniforme escolar narra a projeção de suas
aventuras com o Dr. João, da Academia de Letras, um velho safado, em “Prova de redação”. Sua colega que
passou pela experiência conta todos os passos da sedução, e a jovem os repete para o leitor. Ao repetir, o
autor usa uma estratégia de linguagem em que “eu” equivale a “ela”:

“E ela? eu? geme e grita e goza, erguendo os braços bem alto. Ai, ai, ai. E com
a pontinha do dedo roça na asa do arcanjo que passa.
/…/ E manda que eu? ela? diga palavra porca. Eu digo e repito o que o doutor ensinar.”

(p.112)

As cenas amorosas seguem um só roteiro, as marcações são as mesmas, assim “eu” e “ela” oscilam mas apontam
para uma prática idêntica. Neste sentido os pronomes se equivalem. Transformado em atividade puramente
mecânica, o sexo predica a ausência de um sujeito. Predica o vazio. Assim, o relato em primeira pessoa não
supõe um enfoque pessoal, a manifestação da personagem-narradora em pleno ato presente, como um “eu” que
ocupa totalmente a tela imaginária da narrativa, porque há entre o “eu” e o narrado a mediação de um
objeto que reaparece: a linguagem.

Escuta atenta e aguda, o autor registra falas de grupos e as põe em circulação em seus livros. Variadas,
facilmente identificadas pelo leitor, o autor as vai atualizando. Assim, em obras mais recentes, ganha
espaço o discurso do viciado em crack, do cheirador de pó, do traficante, ou a inclusão de falas
relacionadas a seitas e grupos religiosos divulgados pela mídia, que trazem a promessa de se montar uma
vida espiritual pelo prefixo telefônico 0800, em ligação direta com deus. Esses discursos deslocados do
real para a ficção compõem com breves pinceladas uma espécie de “quadro vivo” concentrado no essencial,
sem alçapões ilusionistas, nem jogos de luz enganadores. Funcionando como moeda corrente, essas falas são
dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm soltas na boca da jovem, da velha, do malandro, do pivete
que passa, do bacana, da mulher, do doutor. Lapidadas a faca, o autor, mestre minimalista, as recorta,
subtrai e decanta os restos, imprime-lhes um ritmo que quase prescinde do uso de pontuação. Essa linguagem
provoca, sem dúvida, uma boa dose de desindividualização da matéria narrada. Utilizada, ela transforma a
personagem em portador abstrato, não um “eu” que se conta ou conta o mundo através dela, é a linguagem que
se emancipa, toma rumo próprio, alheio às intenções de qualquer subjetividade. Expressão da violência
também no modo direto com que aborda sua matéria, a linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, tem a
precisão de um tiro à queima-roupa, que não prescinde de boa dose de humor. É difícil, entretanto,
sustentar o riso quando o leitor se dá conta de que o que se apresenta é um mundo sem sentido e sem saída
em relação ao qual ele quer estabelecer distância, mas é obrigado a se enxergar nele. Esse mundo calcado
no negro perdeu o céu como parâmetro, detendo-se num corpo-a-corpo com o real, sem o anteparo de qualquer
idealização ou promessa de redenção.

Para forçar a difícil identificação do leitor com as personagens em situação, uma das estratégias do autor
é fazer deslizar a primeira para a segunda pessoa de modo a implicar também aquele que lê na matéria
narrada:

“Grudados na tua nuca os mil olhos dos cagüetas da Vila”. (p.15)

“Se o teu filho é pirado, até isso você deve sofrer.” (p.75)

A segunda pessoa inclui o leitor, em quem também respinga a violência dos atos, transformando a todos em
co-participantes da vida nua, feita da distribuição global de miséria e morte.

É sempre a linguagem feita que carrega uma história própria, e o autor a traz para os contos para
reduplicar os estereótipos sociais. Entretanto, ocorre uma reversão na passagem da ordem histórica para a
ordem ficcional, e a linguagem passa a peça articulada que, em sua inteireza artística, mantém inteligível
a imagem do grotesco e da alienação do grupo em que circula.

Os contos de Dalton Trevisan, apesar da proximidade que mantêm com sua matéria, instituem um outro
princípio de realidade através do estranhamento. Pois é só quando quebra com o existente que a ficção
realiza sua função cognitiva, comunicando sensações, intuições, “verdades” que o mais das vezes não são
transmissíveis de outro modo. É nesse sentido que ela contra-diz, e é nesse sentido também que ela é
subversiva. A representação formal do mundo de Dalton Trevisan se faz então através de uma linguagem
rebaixada que o autor desgasta e explora com esmero e rigor, reduzindo-a ao mínimo, ao osso, tiro no
coração do leitor.

Conto “Macho não ganha flor”

Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca de leve a cortina do quarto. Lá fora uma corruíra canta
alegrinha. No teu peito essa outra acorda e já responde.
Minha irmã e a mãe faziam compras. Afinal sozinha, a casa inteira para mim. De roupão, antes de entrar no
banho, dava os últimos retoques diante do espelho.
De repente, com susto, senti que não estava só. Um cheiro no ar? Um estalido no soalho? Uma sombra no
canto do olho?
Pronto! Aquela mão suada me tapou a boca. E a outra afogava o pescoço.
— Não grite! Nem um pio. Que eu te mato!
Me empurrou contra a parede. Abriu com violência o roupão.
— Oba!
Ai de mim, apenas calcinha e sutiã. Daí ele começou a fazer coisas.
Me beijou o rosto, o pescoço, um seio e outro. Ui, que nojo. Gemendo, se esfregava no meu corpo.
Todo vestido. Só abriu o zíper da calça.
— Faça tudo o que eu mandar. Bem quietinha.
Sem aliviar a mão esquerda no meu pescoço.
— Já matei uma. Não me custa apagar outra!
E arrancou o meu roupão. Tentei correr para a porta. Me sacudiu pelo cabelo e esfregou a cara na parede.

— Quer morrer, sua vadia?
Era o bafo podre da morte. O corpo não parava quieto, tanto que eu tremia. O coração me batia aos saltos
no joelho.
Em desespero, chorava e soluçava baixinho. Tão assustada, nem me defendia. Sem força de erguer os braços.

Daí percebi que ele tentava, mas não conseguia. Acho que eu estava muito nervosa e chorando sem parar. Ele
beijava e chupava ora um seio, ora outro. Me corria a mão boba pelo corpo.
— Não sabe que deve lutar? Por que não se defende como as outras?
Ele que não sabia: essa carne, com fúria manuseada, já não era a minha. Para não enlouquecer, de tamanho
horror, me desligara do próprio corpo. Aquele pobre objeto seminu pertencia a outra.
A minha querida boneca, ela sim a melhor amiga, chorando com olhinho de vidro ao meu lado — e não eu, não eu —, que era desfrutada pelo monstro.
Me xingava de piranha e cadela. Mandava eu calar a boca, assim ele não conseguia.
— Abra o olho. Não pisque. Feche o olho. Que porra. É o mesmo olho azul de minha mãe.
Daí eu pedi e supliquei. Em nome da santa mãezinha dele. Não me fizesse mal.
— Ela está me olhando com a tua cara!
Podia levar tudo de valor na casa. Pelo amor de Deus, me deixasse em paz. Era noiva e ia casar em três
meses.
Ao falar que estava noiva ele assanhado começou tudo de novo.
— Aposto que é muito safadinha, né? Não transa com teu noivo? O que você faz com ele? Fala, sua vadia!
Ah, não fala? Que ficasse de joelho. Outra vez, de pé. Sentada. Deitada. De costas. Pernas fechadas. E
abertas. Bem abertas.
E nada.
Cada vez mais irritado. E mais gago. A culpada era eu. Que só chorava. E só sabia tremer. Que porra.
— Não aprendeu nada? Não trepa com teu noivo? É boiola, por acaso?
Esse viadão, ele bem podia avisá-lo: eu era imprestável. Mais fria que uma puta velha. Se, ao menos,
estivesse vestida. Gostava mesmo era de arrancar a tua roupa. Rebentar. Rasgar. Assim, quase nua, calcinha
muito sem graça, não lhe agradava.
Disse que todas choram. Mas eu era a pior. Se a mulher soubesse a bruxa que fica, nunca mais chorava.
Grande merda.
Chegou a mandar que botasse uma saia e blusa. Sapato de salto alto. Ou, melhor, um vestido. Vermelho, se
tivesse.
Então olhou o relógio. E desistiu. Porra. E mais porra.
— Que tanto chora e treme e se desespera? O que tem de mais? Pensa que é a primeira? E a única? Nem é tão
ruim assim. Algumas bem que gostam. Uma ruiva, quando eu saía, pediu que voltasse. E quis me dar uma rosa
ou cravo, sei lá.
Ofendido e gaguejando.
— Mas eu avisei: “Macho não ganha flor.”
Me olhou de soslaio.
— O que eu quero…
Enxugava a cara molhada de suor — e sem tirar o óculo escuro.
— …vou lá e me sirvo.
Jogou a toalha num canto.
— Ah, se eu tivesse tempo. Porra. Já te ensinava o que é bom. Porra.
Uma hora tinha se passado. Uma hora que, no relógio parado da memória, se repetiria em mil horas inteiras
de tortura e terror. E pelo resto da vida quantas vezes seria eu, indefesa no sonho, o pasto de tal bicho
espumante de raiva?
Afinal ele parava de tentar. E fechou o zíper da calça.
Já não me olhava de frente. Acho que com vergonha, já pensou? Porque nada tinha conseguido.
— Agora te deixo aqui pelada.
Chutando o roupão debaixo da cama.
— Você desta vez se livrou.
Ressentido e com ódio.
— Só porque é uma vadia de olho azul. Como aquela outra.
Recolheu no chão a sua velha mochila.
— Senta aí na cama. Não se mexa daí. Até eu bater a porta. Senão eu volto. E será pior pra você. Ouviu,
sua puta?
Foi catando na penteadeira o meu relógio de pulso, o celular, o cartão do banco. E, no estojinho azul de
porcelana — ai, não —, até umas pobres jóias que a avó deixou.
Antes de sair, espiou em volta.
— Me dá a calcinha.
Que desgraçado.
Colheu a última peça. Macho não ganha flor. Se olhou demorado no espelho. Ainda surpreso e incrédulo,
gaguejante.
— Que porra. Isso nunca me aconteceu!
Ajeitou o óculo escuro e o boné vermelho. Gostou do que viu. O que eu quero, vou lá e me sirvo.
E lá se foi.
Tremendo e chorando, me vesti todinha. Mas não deixei o quarto. Ali sentada, chorando e tremendo, até a
volta de minha mãe.
Nunca mais ela esqueceu de fechar a porta. Com dois giros na chave.
Cada dia a gente notava a falta de algum objeto. Mas isso era o de menos.
Mudamos de bairro. Fiz tratamento com uma terapeuta. Tomei tranqüilizante e antidepressivo. Dois a três
comprimidos por dia, mas pouco adiantou.
Uma vez engoli um punhado deles. Não foi o bastante. Só dormi uma noite e um dia inteiro.
Na mesma cama, do olhinho de vidro escorrendo uma lágrima azul, essa boneca toda em cacos.
O noivo, que me adora, apoiou sem reserva. Ao meu lado no desespero e no horror. Não perdeu a esperança. E
me salvou de mim mesma.
Seis meses depois, casamos.
Deve ser problema meu, sei lá. O nosso relacionamento não está dando certo.

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