Home EstudosLivros Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Madame Bovary, de Gustave Flaubert

by Lucas Gomes

Obra de 1857, Madame Bovary pertence ao conjunto fundamental da obra de Gustave Flaubert. Considerado pela crítica mundial, e especialmente pela crítica francesa, como um de seus maiores escritores, conseguiu um modo de narrar que passa a ser inaugural na história da narrativa. Competência ímpar no procedimento de isenção, faz emergir o enunciado, em detrimento de uma enunciação. Madame Bovary consiste, portanto, numa obra singular do Realismo Francês e numa obra decisiva da modernidade ocidental, ao lado de obras como o livro de poemas As Flores do Mal, de Charles Bauldelaire e a obra plástica de Édouard Manet.

O romance realista e polêmico, é dedicado ao adultério. Reflete uma sociedade provinciana e moralista que não se coaduna com a personalidade romântica que Emma Bovary, a protagonista, inventou para si própria. O retrato de uma mulher insatisfeita com a vida provinciana e a falta de paixão, cuja obsessão fantasiosa leva ao absurdo. Incapacidade intelectual e insensibilidade moral caracterizam esta personagem, que tenta escapar à realidade através da leitura de romances de amor.

Madamme Bovary é uma obra que pelo pendor realista que a caracteriza se torna por vezes enfadonha. Entre os acontecimentos importantes arrasta-se um vagar quotidiano um tanto cansativo e contrastante com a exacerbada componente sexual e emotiva que Emma empresta ao romance. As suas experiências extra-conjugais são narradas ironicamente, e não se encontra um personagem em toda a obra que não seja alvo de sátira.

Flaubert pintou, com o perfil dos personagens, o quadro de uma sociedade. O conformismo na pessoa de Charles. A nobreza decadente em Rodolphe. A promessa de um futuro de sucesso da pequena burguesia em Leon. Em Lheureux e Guillaumin, a burguesia enriquecida. A ascensão da ciência e da razão em relação a uma religião em crise na figura de Homais. E, finalmente, Emma Bovary, o próprio retrato da crise da sociedade. De uma sociedade que acabou com a importância da religião e que, não encontrando o que colocar em seu lugar, sofreu com a falta de uma regulamentação moral. Uma sociedade que está doente, cansada e desencantada frente à inutilidade de uma busca sem fim.

No ano em que o livro Madame Bovary foi publicado, houve na França um grande interesse pela obra, que chegou levar o seu escritor a julgamento. O romance foi considerado imoral pelo governo francês, que decidiu mover um processo contra Flaubert. Foi processado por ofender a moral pública. E hoje, como vimos, Madamme Bovary é considerado obra-prima e precursor do Realismo na Europa.

O tema da leitura e do devaneio romântico é desenvolvido através da relação da personagem central, Emma Bovary, com os livros. Emma é uma grande leitora de romances românticos que constrói, a partir deles, um referencial de vida idealizado. Essa influência romântica se associa a seu sentimento de insatisfação permanente com o mundo burguês. A literatura é vista como refúgio, espaço de vivência mais rico, através do qual a personagem busca fugir da mediocridade da sociedade, mas, por outro lado, é também instrumento de alienação que leva Emma a um fim trágico.

O romance é apresentado em três partes. Na primeira, nota-se a personalidade medíocre e acomodada do futuro marido de Emma, Charles Bovary. Lento nos estudos, nunca chegaria a ser brilhante na profissão que escolhera, a medicina. Viúvo, casou-se com Emma e foi morar na província de Tostes. Para Charles a vida não poderia estar melhor. Para Emma, no entanto, “…à medida que se estreitava mais a intimidade de suas vidas, alguma coisa gradativamente a separava dele.” Antes de se casar acreditava sentir amor por ele, porém não encontrou no casamento a felicidade mostrada nos livros que lera enquanto esteve educando-se no convento. Depois de um baile no castelo de Vaubyessard, Emma sentiu uma perturbação desconhecida. Algo lhe dizia que sua vida não seria mais a mesma depois de ter conhecido este mundo de luxo e de riqueza tão diferente do seu. De volta à rotina, tanto se queixou que convenceu o marido, Charles, a se mudar para a província de Yonville.

Na segunda parte, já em Yonville, Emma engravidou, e ficou desejosa por ter um filho homem. Teve uma menina, que entrega aos cuidados de mãe Rollet, ama-de-leite. Uma nova rotina vai se delineando. Todos os dias após o jantar reúnem-se na casa dos Bovary, Homais e Leon. Homais é o farmacêutico que é contra a igreja e a religião e defensor dos ideais iluministas e da ciência. Léon é um jovem escrevente, estudante de direito que, por ter se apaixonado por Emma e não ser correspondido – foi para Paris. A partida de Leon é um golpe para Emma que perde, assim, a única pessoa com quem gostava de estar. Tudo em Yonville torna-se extremamente tedioso. Envolve-se, então, com Rodolphe, um nobre decadente que vive em seu castelo nos arredores de Yonville. Porém, após algum tempo o romance se esvazia e ele rompe com Emma, que adoece. Recuperada do golpe, apega-se à religião, que também não a satisfaz.

Na última parte, Emma reencontra Leon em Ruão. Tornam-se amantes. Mais uma vez, Emma busca no amor uma saída para o descontentamento de sua vida. Por esta época inicia um caminho sem volta. Compra presentes para Leon e roupas luxuosas para si do comerciante Lheureux. Endivida-se. Negocia as dívidas, sempre à revelia de Charles. Assina letras que sabia não poder pagar. Chega o momento, porém, em que é cobrada judicialmente e tem sua casa penhorada. Entra em pânico, desespera-se. Busca ajuda de Rodolphe e Leon. Não recebe. Como última alternativa, procura o tabelião Guillaumin, mas este tenta possuí-la em troca da ajuda. Emma não se vende. Sozinha, esgotada e sem saída, suicida-se.

Emma é uma mulher que busca um caminho diferente daquele em que foi preparada para percorrer. Mas como fazê-lo se toda mulher era preparada e empurrada para o casamento? O comportamento da personagem de Flaubert anuncia uma mudança que em breve colocaria o mundo macho de cabeça para baixo: o poder de escolha da mulher que sempre esteve paralisada pelas ordens dos homens. Emma não aceitava ser dominada, não era submissa, prendada ou fiel.

O tédio de Emma vai além da falta de graça e vida de seu marido, porque quase nada a satisfaz por muito tempo. Vaidosa, cheia de vontades, uma verdadeira mulher de fases, que ora alterna o ímpeto da paixão pela vida e pelos amantes, ora entra em um estado de letargia desconsolado com a existência. Nem o nascimento de sua filha faz com que o amor pleno tome conta de Madame Bovary, que procura incessantemente as paixões nas páginas dos romances – os quais chegou a ser proibida de ler por causa dos conselhos da sogra, que pouco a estimava.

As traições de Emma parecem ser percebidas por todos da pequena comunidade. Diferente das mulheres prendadas e dedicadas ao marido, ela é uma verdadeira consumista que afunda Charles em dívidas homéricas e irreversíveis. Dinheiro, luxo, sexo, chantagem. Em um século sem Aids, querer satisfazer desejos sem preocupações mortais era um capricho. Emma buscava amantes que pudessem levá-la aonde ela quisesse, já que sozinha ela não poderia ir. Ela queria ser quem não era – fenômeno hoje designado pela psiquiatria como Bovarismo.

Além da leitura de romances e da existência de idéias permanentes e pertencentes a um mundo paralelo que corrói apenas sua mente e traz desgraças para seu marido, Charles, Emma arquiteta cuidadosamente aventuras reais. Aventuras que se transformam em desconfortáveis paranóias a partir do momento em que ela começa a perder a noção da realidade e entra de vez no mundo de sonhos e desejos de uma vida repleta de emoções arrebatadoras. Um comportamento que demorou alguns anos para que se tornasse verdadeiramente perigoso, mas que, como uma cova funda, engoliu Emma e sua família de forma drástica e trágica, acidamente e detalhadamente descrito por Flaubert, grande estudioso da estupidez humana em uma época em que a medicina, a moral e a religião ainda causavam muitos erros, enganos e dores.

O suicídio é o fim de Emma Bovary. A sociedade francesa do século XIX sofreu com as mudanças sociais ocorridas no mundo, mudanças que têm raízes no Renascimento e atingem seu ápice com os ideais iluministas, culminando na Revolução Francesa, e que estão intimamente ligadas às mudanças nas relações de produção, resultantes da Revolução Industrial. As metamorfoses se fazem sentir em todos os aspectos da vida social levando a sociedade a uma profunda crise moral. Madamme Bovary é a radiografia desta sociedade que sofre de anomia, que se encontra afundada em uma crise da qual parece não ter solução. A forma crua de exposição adotada por Flaubert causou escândalo e foi motivo para que ele fosse processado pelo Ministério Público por ofender a moral pública e religiosa.

Posts Relacionados