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Mãos de cavalo, de Daniel Galera

by Lucas Gomes

Mãos de Cavalo

, obra de Daniel Galera, começa com capítulos
curtos, escritos em terceira pessoa.

O autor intercala duas histórias. A primeira destaca a trajetória
de um garoto que – dos dez aos quinze anos de idade, metido em suas aventuras
de bairro, entre corridas de bicicleta e campinhos de futebol – vive justamente
as primeiras descobertas em relação à sua própria
identidade. Na segunda, o foco aponta um jovem cirurgião plástico
que, ao chegar aos trinta anos depois de uma rápida, árdua e bem
sucedida trajetória de estudos e experiências profissionais, começa
então a colocar sua escolhas em cheque, bem no momento em que sai para
uma longa viagem com um amigo. Esses acontecimentos vão aos poucos se
conectando no tempo e no espaço dramáticos, e compõem uma
delicada trama sobre memória, perda e culpa.

Com habilidade, costura os capítulos e mistura as referências
de uma maneira que traz ao leitor um grande prazer em acompanhar, ele próprio,
o processo de auto-descoberta vivido pelo personagem. Tanto o garoto como o
cirurgião vão entender que, tragicamente, só se conhece
a própria identidade a partir de eventos-limite, extasiantes ou cruéis,
momentos que vão ser carregados pela vida a fora. Entre ritos de passagem
e acertos de contas, forma-se um indivíduo.

Durante as duas trajetórias, o escritor não perde a oportunidade
de explorar temas bastante interessantes. O fascínio pela violência
estética em contraponto à covardia frente a agressividade real,
o recalque das emoções, o desejo e a impressão de vermos
nossas vidas registradas pelas lentes de uma câmara de cinema.

O protagonista de Mãos de Cavalo não é uma pessoa
simples. Talvez ninguém seja mesmo. E pouco a pouco o vemos exposto pelo
autor. Através das descrições ultra-detalhistas de cada
situação, vemos dissecadas suas impressões frente a cada
situação, seja ela o descer vertiginoso de uma ladeira montado
numa CaloiCross aro 20′, seja testemunhar o ventre de sua esposa ser rasgado
durante o parto enquanto a anestesia não fazia efeito.

Primeiramente independentes, as duas tramas vão, aos poucos, ganhando
elementos que as aproximam, até que o passado e o presente praticamente
se transformam em um só acontecimento, mostrando como foi e como poderia/deveria
ter sido determinado fato aos olhos do protagonista. Durante essa trajetória,
o autor constrói uma gradativa imersão do personagem do presente
em fatos do seu passado que o ajudaram a afirmar sua própria identidade.
Em um momento em que dúvidas em relação à vida levam
o protagonista a buscar e assumir novas referências de mundo, há
uma volta no tempo até um momento traumático, mas que o ajudou
a encontrar a si próprio. E essa rememoração é decisiva
também para os rumos do seu próprio futuro. Nesse momento as duas
histórias se fundem em uma imagem única e definitiva.

Segundo o autor, a obra é uma síntese de diversas histórias
que guardou na cabeça durante anos, mas que vieram se transformando e
atualizando ao longo do tempo. Algumas cenas e personagens têm origem
em coisas que ele imaginava desde os dez ou doze anos de idade, muito antes
de sonhar em escrever. Segundo Galera, as primeiras três versões
de Mãos de Cavalo foram jogadas fora: somente na quarta tentativa
o autor encontrou a forma que lhe pareceu ideal para desenvolver o romance até
o fim.

Esse tom se manifesta numa prosa rica em detalhes, em descrições
bem trabalhadas de cenas e atmosferas, nas quais a aparente placidez do cenário
reforça a intensidade dos sentimentos dos personagens. Nada é
gratuito aqui: numa partida de videogame, num parto sem anestesia, na trilha
sonora de uma festa de quinze anos, assiste-se à tumultuada trajetória
do protagonista rumo ao cotidiano do mundo adulto, preenchido entre o sucesso
profissional e o “piloto automático” de um casamento fora dos
planos.

O tema principal do livro é a identidade, a obsessão que se tem
por defini-la e a inutilidade geral desse esforço. Até que ponto
é possível decidir como as pessoas querem ser e que imagem os
outros terão delas? Talvez definir isso racionalmente seja tão
inviável quanto decidir se se quer ou não amar uma determinada
pessoa.
Diante do impasse, Mãos de Cavalo acena com um desfecho surpreendente
num relato em que a tragédia se insinua a cada linha. Como nas clássicas
histórias sobre segunda chance, está em jogo a possibilidade de
o covarde se transformar em herói, ou de quem sempre se definiu como
“solitário e renegado” encontrar uma integração
possível com o mundo. O futuro aí apontado não é
movido por certezas absolutas, mas pela grandeza de saber quando aceitar ou
lutar contra as armadilhas do acaso.

A estrutura temporal sobre a qual foi montada, o conjunto lexical selecionado
e a condução da narrativa em função da construção
da personagem são alguns dos aspectos que garantem à obra relevância
para ser analisada criteriosamente. Além disso, o valor interpretativo
extraído desses aspectos comprova a intencionalidade do autor em desenvolver
uma narrativa repleta de significado, justificando sua consagração
na literatura.

Um dos fatores da narrativa de Daniel Galera que oferecem oportunidade de
proveitosa explanação é a construção da personagem
central. Na verdade, todo o percurso do romance concorre para apresentar ao
leitor o perfil psicológico e comportamental de Hermano (o “Mãos
de Cavalo”). Aliás, percurso seria a palavra-chave dessa narrativa.

Já no primeiro capítulo – O Ciclista Urbano – a narração
apresenta-se construída sobre os percursos que Hermano faz, relacionados
em algum sentido com o rumo da sua vida.

(…) O trecho de subida… sairá ileso.” (p.
09-10)

O leitor perceberá ao longo da leitura que todos os obstáculos
descritos (árvores, postes, rampas deslizantes, buracos, lombadas, etc.)
estão semanticamente ligados aos desafios da vida do próprio Hermano.

A partir do segundo capítulo começamos a entender mais claramente
esse jogo com o curso da narrativa relacionado à forma como o personagem
guia a sua
vida. Os capítulos intitulados por horários – 6h08, 6h13,…
– apresentam Hermano em sua vida adulta atual, dirigindo seu carro por
ruas e avenidas até a casa de seu amigo Renan para juntos irem a uma
escalada na Bolívia. Enquanto Hermano dirige, o narrador vai apresentando
elementos do percurso como monumentos, viadutos, nomes de ruas, que remetem
ao pensamento de Hermano alguma lembrança de sua vida.

Passando por baixo… deu a luz a Nara.” (p. 71)

Quando, no capítulo 6h23, fala-se que Hermano “fantasia que
a construção… antes que fosse tarde.
” (p. 97), remete-se
ao fato de que ele deve ainda agarrar-se a fatos de seu passado (o “asfalto”,
as “calçadas”, as “árvores”) para resolvê-los
antes de serem encobertos por sua vida atual (“o concreto das novas
avenidas
”). Vemos aí que o espaço à volta de
Hermano está sendo relacionado com as suas sensações e
lembranças.

Os outros capítulos vão intercalando a narrativa com flashbacks
a partir da mirada e reflexão de Hermano de seu passado.

Outra analogia entre um trajeto difícil de percorrer e a vida acontece
no capítulo “A Clareira” no momento em que Hermano, Morsa
e Pedreiro se entretinham com um jogo de computador com pistas de corrida:

O jogo de computador… desmontar o computador.” (p.
164-165).

Diante da pista intransponível, os amigos viam que os acontecimentos
das próprias vidas seguiam um curso impossível de se evitar.

A forma dos capítulos onde Hermano está dirigindo reforça
a idéia de que a narrativa foi organizada sob a ótica de um trajeto,
pois eles em um parágrafo apenas, caracterizando assim, a continuidade,
a linearidade da estrada, do caminho, da vida.

O tempo em Mãos de Cavalo é outro fator importante
para a análise. Com uma leitura atenta, o leitor perceberá que
as histórias se fundem, como já citado, unindo passado e presente,
e ainda, que os fatos passados exerceram grande influência sobre Hermano
em sua fase adulta. Observa-se isso no episódio em que o personagem se
vê em situação semelhante a que havia vivenciado na adolescência,
na qual tinha agido covardemente ao não ajudar o amigo que era espancado.

(…) tinha ficado covardemente escondido… minutos depois.
(p. 173).

Hermano guardou para si o sentimento de culpa que o acompanhou durante anos,
como uma verdadeira marca, da qual sempre se envergonhou.

(…) Hermano sentiu-se imediatamente cúmplice… na testa.
(p. 173).

Agora adulto, ele tem a oportunidade de se livrar desse sentimento de culpa
e fazer o que não teve oportunidade no passado.

(…) Sente gosto de sangue… não da covardia.
(p. 151).

A alternância entre passado e presente leva o leitor a compreender o
personagem de forma gradual, assim, o passado não só ilumina o
futuro, mas também, o próprio passado de Hermano, simultâneamente.
Para entender o Hermano adulto, é essencial emergir em sua adolescência.

Outro aspecto interessante é a finalização do livro,
o qual não se dá na metade cronologicamente mais atual da narrativa,
mas sim, na fase adolescente do personagem. A história termina no fim
da narrativa do passado, com uma decisão convicta do personagem sobre
como será seu futuro. Porém, o leitor que acaba de saborear o
romance sabe que o futuro do personagem não foi tão livre de conflitos
como ele imaginava. Existe uma grande contradição na última
frase: “Agora sabia exatamente o que fazer. Não seria necessário
fingir nunca mais.
” (p.188).

A tensão gerada entre passado e futuro, sobre o que o personagem idealiza
e o que o leitor já conhece sobre seu destino, são detalhes decisivos
para o sucesso do romance.

Com respeito à narração, pode-se notar que, de acordo
com a tipologia desenvolvida por Norman Friedman, o narrador é onisciente
intruso, ou seja, age como uma espécie de “voz” que permeia
a narrativa, porém permanece de fora da trama – não é
um personagem – mas sabe de tudo que se passa nas ações
exteriores das personagens e também das interiores (seus pensamentos
e intencionalidades); por isso, é capaz de transmitir uma perspectiva
mais ampla ao leitor, tanto dos fatos presentes, quanto dos acontecimentos que
podem estar por vir. Isso é notado no início do capítulo
“6h23”:

Ao pensar no nome da filha percebe pra onde, na verdade, está
guiando seu Mitsubishi Pajero…
” (p.96)

Outro ponto de destaque é o constante conflito que Hermano enfrenta
consigo mesmo. Desde a infância, quando cai da bicicleta, e adquire marcas
não só no corpo, mas também na mente.

Na adolescência, a falta de uma personalidade formada do garoto é
latente: a ausência de um apelido face aos amigos, que tinham, cada qual
uma denominação diferente; a falta de coragem para enfrentar problemas,
como em “Downhill”, em que Hermano nota o desdém por parte
de Bonobo e sua trupe, ao que ele retruca saltando e levando mais um tombo histórico;
a frustração com a sexualidade na primeira relação
afetiva; e, principalmente, sua covardia diante do grupo que se vinga de Bonobo
com a surra que o leva à morte, em que Hermano foge e se esconde, e apenas
assiste ao massacre:

Hermano entrou no mato, caiu numa vala do terreno e se escondeu
atrás de folhas e galhos. (…) durante um período que pareceu
horas.
”(pp.169-170).

A fase adulta, por sua vez, corresponde a 1 hora e 56 minutos da vida da personagem
nos quais se desdobram todos os traumas: a reação de Hermano,
agora médico formado, casado e pai de uma filha, como a súbita
desistência da escalada ao Cerro Bonete com um amigo, as indagações
que faz para si com relação ao casamento e o nome de sua filha,
Nara; a revolta na briga entre adolescentes que encontra na vila onde morou,
na qual salva o rapaz acuado e bate em todos os demais; e um estranho reencontro
com Naiara. Tudo que Hermano realiza nesse período equivale a um “acerto
de contas” consigo mesmo, a uma volta no tempo, para refazer todas as
ações que um dia deixou de fazer:

Aos trinta anos, lhe parecia antes de tudo um constante ensaio
para um heroísmo que nunca chega. (…) pelo que gostaria de ter sido
no passado ou de ser no futuro.
” (p.177)

Por fim, um tópico extremamente relevante é a fixação
que o autor demonstra ter por sangue.

Por meio de Hermano, surge, incontáveis vezes, durante a trama, de
forma direta ou por meio de associações. No livro, a sensação
é a de que cada marca ou cicatriz faz com que ele sinta no corpo o que
não sentia com os problemas da vida. As marcas deixadas na infância,
a queda no torneio de downhill, a preferência por atuar como médico
cirurgião, enfim, tudo isso ajuda a trazer a sensação constante
de uma tragédia que vai aos poucos se delineando. Porém, a circunstância
mais trágica é a morte de Bonobo após a surra, como já
comentado. Ele não tinha medo de sentir dor, não tinha medo de
se machucar nem de ver sangue; pelo
contrário, tinha uma fixação por isso. A sensação
de dor do corpo compensava a falta de sensações emocionais:

Estava pronto para sangrar. Era seu talento. (…) agora ele seria
capaz de cortar, quebrar, ralar, escoriar, debulhar, raspar, fraturar, arranhar,
perfurar e esmagar seu próprio corpo de um jeito que ninguém jamais
esqueceria.
”(p. 91)

Os demais fatos têm seu desfecho no que ocorre nas cenas da fase madura
do personagem, na briga com os meninos de rua, em que apanha, e sangra muito.
Mesmo que tal interpretação não seja necessariamente a
que o autor pensou, conforme resposta do próprio a tal questão,
ele considera esse ponto de vista aceitável.

Em Mãos de Cavalo, o foco está nas questões
de caráter psicológico, embora não seja psicologizante,
e induz o leitor a pensar na própria vida, bem como na do autor, por
trazer em si um caráter confessadamente autobiográfico, e falar
das coisas que ele gosta. Vale salientar que o escritor trata o personagem como
alguém externo a ele, conforme palavras do próprio: “A
relação do Hermano com o corpo é cheia de simbologias –
ele procura controlar e afligir no corpo o que não consegue obter e praticar
na vida, acho.

Trecho da obra:

Segurando com firmeza o volante do automóvel que está prestes
a dirigir ao longo de quatro dias e três noites até a região
mais elevada do Altiplano Boliviano, sente a náusea típica daquele
último instante em que ainda parece viável voltar atrás
com relação a algo que, no fundo, sabemos não ter volta,
porque já foi decidido e planejado há muito tempo. Essa hesitação
inútil é ainda mais incômoda por causa do silêncio
duradouro das seis horas da manhã de um sábado. Em vez de girar
a chave na ignição, fica à espera de algum ruído,
como se isso pudesse dar o peteleco que faltava pra ele ser jogado pra frente,
forçado a ligar o carro, buscar Renan em casa no horário combinado
e ir ao encontro do que prometia ser a maior aventura de sua vida. A Adri tinha
avisado na noite anterior que não levantaria da cama pra se despedir.
Por isso, a partir do momento em que o despertador do telefone celular tocou
a musiquinha da Família Addams, às cinco e quinze, ele fez o máximo
de barulho possível pra mijar, lavar o rosto, vestir uma calça
confortável de abrigo, camisa pólo, tênis e boné
da clínica cirúrgica, preparar uma tigela de iogurte integral
com granola e uma quantidade absurda de mel, escovar os dentes, tropeçar
propositalmente na cama e no banquinho do closet, sintonizar o rádio
em volume desnecessariamente alto em uma estação AM pra conferir
a previsão do tempo, retornar pro quarto do casal sem motivo nenhum e
sair dele logo em seguida, abrir a porta do quarto da Nara, cujo sono infantil
quase perturbou na esperança de que isso comovesse a esposa, abrir e
fechar desnecessariamente a porta do bagageiro pra espiar a bagagem que havia
guardado, organizado e checado trocentas vezes na noite passada, voltar pra
dentro de casa sem motivo e, finalmente, sair, fechando a garagem pela última
vez e batendo a porta do carro com raiva, mas apesar de todo esse esforço
a Adri cumpria a ameaça e devia estar fingindo que dormia até
agora, aguardando o breve rangido elétrico da ignição iniciar
os ciclos de combustão da gasolina dentro dos pistões do Mitsubishi
Pajero TR4. Por fim, decide proporcionar a ela essa satisfação
e gira a chave, dá a partida no motor e acelera algumas vezes em ponto
morto, somente pelo prazer de romper a quietude, fantasiando que naquele exato
instante, na cama, ao perceber que ele estava realmente partindo, ela se arrependia
mortalmente de não ter dado um beijo de despedida, na bochecha que fosse,
e lhe desejado boa sorte. Descendo o carro lentamente pelas faixas paralelas
de granito que cortam o gramado uniforme do jardim em frente à casa,
decide que vai desligar o celular assim que cair na estrada e esperar dois ou
três dias antes de telefonar pra ela dando notícias. Com as ruas
da cidade desertas, pretende chegar ao sítio do Renan na Vila Nova em
no máximo vinte e cinco minutos. Mantém as janelas do carro fechadas,
e o ruído dos pneus sobre o pavimento irregular soa longínquo
e fofo, dando a impressão de que está dentro de um aquário,
separado do mundo. Abre completamente a janela da porta do motorista e tudo
se transforma, a começar pelo barulho crocante dos pneus. O sol, que
deve estar despontando por trás de algum edifício, cobre as casas,
prédios, árvores e os paralelepípedos das ruas secundárias
da Bela Vista com uma luz embaçada entre o amarelo e o rosa. Três
estrelas heróicas resistem no céu que deixou de ser noturno há
uns cinco, no máximo dez minutos. O ar está fresco e saturado
de oxigênio. Enche os pulmões pelo nariz, preenchendo cada alveólo
até o limite da capacidade, e prende o fôlego por uns três
segundos. Daqui a poucos dias estarão, ele e Renan, quatro mil e setenta
metros acima do nível do mar em algum hotelzinho de Potosí, que
divide o título de cidade mais alta do planeta com Lhasa, no Tibete,
os dois deitados em beliches, repousando e ingerindo volumes imensos de líquido
em busca de uma aclimatação adequada, evitando arruinar tudo logo
no começo com uma embolia pulmonar. Assim que pega a Carlos Trein Filho
pra descer até a Nilo Peçanha, lembra da pergunta que Renan fez
de repente, sem mais nem menos, quando descansavam no topo da Pedra da Cruz,
no final de tarde de um domingo do mês de abril, quase sete meses atrás.
Tinham acabado de escalar a via Prosciutto Crudo, conquistada e batizada pelo
próprio Renan. Desde que tinha passado duas semanas em férias
escalando no litoral da Sardenha, em agosto de 2002, Renan batizava suas vias
com expressões aleatórias em italiano. Aquele foi provavelmente
o melhor fim de semana que passaram em Minas do Camaquã, uma vila fantasmagórica
perto da qual se ergue um conjunto de formações rochosas que parece
uma seqüência de quatro gigantescas ondas de pedra maciça
rasgando uma paisagem de morros suaves e rios. Situada no sudoeste do Rio Grande
do Sul, a vila se desenvolveu a partir do início do século XX,
com a descoberta de jazidas de cobre, ouro e prata. As reservas se esgotaram,
e a mineração foi encerrada em meados dos anos 1990. Hoje a vila
é habitada por algo entre uma e duas centenas de famílias, em
boa parte de mineradores aposentados, e suas casas e ruas abandonadas, cercadas
de uma geografia mutilada pela extração de minérios, dão
um adorável ar de fim do mundo a um recanto já naturalmente isolado.
A turma da qual fazem parte ele, Renan e mais um punhado de alunos da academia
foi uma das primeiras a freqüentar a região pra praticar montanhismo.
Percorriam os trezentos quilômetros entre Porto Alegre e Minas do Camaquã
no sábado cedinho, passavam o dia escalando e a noite traçando
um churrasco, escalavam mais um pouco no domingo e retornavam pra Porto Alegre
à noite, Renan de volta pras paredes artificiais indoor da Condor, a
academia esportiva na Tristeza da qual era dono, e ele pro seu consultório
na Quintino Bocaiúva e pras salas de cirurgia do Mãe de Deus Center.
A escalada, pra ele, sempre foi antes de tudo um método de exploração
dos limites físicos e mentais, um exercício prazeroso de resistência
muscular e concentração, praticado com disciplina e regularidade,
que acabou entranhado em sua rotina, mas quando consegue se livrar de suas pacientes
e acompanhar as saídas da turma da Condor nos finais de semana, a prática
se torna algo além disso, um parêntese que interrompe o fluxo mais
ou menos previsível de sua vida profissional e familiar. Já pro
Renan a escalada é a própria rotina. Quando não está
trabalhando como instrutor e sócio administrativo na Condor ou dando
aulas de escalada técnica pra grupos particulares e instituições
diversas, está em algum lugar do Brasil, da América Latina ou
de outras partes do globo, escalando vias dificílimas de nível
9 ou 10, acumulando gigabytes de fotos digitais que registram alguns feitos
consideráveis do montanhismo nacional, como a encadenação
em tempo recorde da “Massa Crítica”, na Barra da Tijuca, e
a conquista da sua “Francobolo”, considerada até a presente
data a via esportiva mais difícil do Sul do Brasil, uma 10b repleta de
passadas explosivas no teto da Gruta da Terceira Légua, em Caxias do
Sul. Apesar da relação de seus egos com a escalada ser um tanto
diferente, ele e Renan se tornaram grandes amigos logo que se conheceram na
Condor, e desde então, sempre que as brechas das agendas coincidem, viajam
juntos de carro nos finais de semana e feriados pra escalar na rocha, numa média
de dez vezes por ano nos últimos três anos. Estiveram no Itacolomi,
em Torres, Cotiporã, Salto Ventoso, Pico da Canastra e Ivoti. Mas seu
destino favorito vinha sendo as Minas do Camaquã, onde os acampamentos
montados pra passar a noite de sábado pra domingo se tornaram tão
divertidos, com fogueiras e conversas madrugada adentro, que numa ocasião
a Adri tinha consentido em deixar a Nara com os pais dele pra lhe fazer companhia
na saída de fim de semana, apesar do terror que sentia de ver outros
seres humanos pendurados nas alturas, terror que ele definia, em tom de brincadeira,
como “acrofobia derivada”, enquanto Renan dizia que era cagaço
mesmo. No fim ela se encantou com a natureza do lugar, perguntou pra que serviam
os mosquetões, o freio oito, o magnésio, quis saber o comprimento
das cordas, o método de fixação dos grampos na rocha, e
chegou a escalar uns quatro ou cinco metros de altura, antes de começar
a berrar de pavor. À noite, ela fumou muita maconha, bebeu muito vinho
e ajudou todo mundo a tirar sarro da cara dele por não beber nem fumar
maconha. Fez amizade e passou cerca de uma hora trocando confidências
e segredinhos com a Keyla, namorada e aluna do Renan. Ao presenciar a rápida
intimidade das respectivas companheiras, Renan ficou balbuciando em seu ouvido
frases ininteligíveis nas quais se destacava a palavra “suingue”,
e isso era bem a cara do Renan. Naquela noite a Adri ficou implicante, incoerente,
desfigurada e alegre, e ele ficou feliz em ver ela daquele jeito. Mas aquela
foi a primeira e última vez que a Adri foi escalar com ele. Ela simplesmente
perdeu o interesse, como se tivesse esgotado todas as possibilidades de fruição
numa única viagem. Ele e Renan, entretanto, prosseguiram. Precisava cada
vez mais da endorfina, da adrenalina e do estado mental quase meditativo que
a escalada na rocha proporcionava. Renan precisava seguir fazendo aquilo que
fazia melhor: vencer desafios em boulders com a graça de uma aranha bailarina,
abrindo novas vias que seriam repetidas e respeitadas por inúmeros outros
escaladores. E naquele dia de abril, quando já estavam sentados na pedra,
descansando e admirando a vista do cume da Pedra da Cruz, Renan perguntou, sem
desviar os olhos da paisagem: “Tá a fim de fazer um lance totalmente
Coração das Trevas?”. Ainda meio zonzo, extasiado pelo esforço
e pela conquista, ele seguia com os olhos um gavião que estava empoleirado
na enorme cruz branca que dá nome à Pedra da Cruz e tinha recém
levantado vôo, batendo as asas contra um céu laranja estriado de
nuvens brancas. “Fazer o quê?”, perguntou, arrancado de seu
devaneio. Ao invés de dar bola pro Renan, começou a mentalizar
etapas do rapel que fariam em breve pra descer daquela altura antes que ficasse
escuro demais. A descida era sempre a parte que o deixava mais nervoso. Assim
como a maioria dos acidentes de carro ocorre a menos de cinco minutos do destino
do motorista, a descida é a parte em que um escalador está mais
à vontade, mais apressado e distraído. Renan demorou alguns segundos
antes de falar de novo. “Já pensou alguma vez em escalar no gelo?”
Sabia que Renan tinha feito curso de escalada em gelo em Bariloche e que havia
chegado ao cume de algumas montanhas nevadas dos Andes argentinos, por isso
imaginou que ele tinha em mente mais alguma investida naquela região.
“Nunca pensei, mas seria interessante.” “Tô com uma idéia
fixa, véio, um projeto que tá me deixando totalmente obcecado.”
“Escalar o Aconcágua com as mãos amarradas nas costas?”
Esperava que Renan fosse rir, mas em vez disso o amigo cruzou os dedos e usou
a força da mão direita pra estalar as articulações
metacarpofalangianas da mão esquerda, que estouraram como um conjunto
de pequenas cápsulas cheias de ar de um plástico bolha. “Preciso
de um parceiro pra uma viagem, uma expedição, na verdade. Alguém
com tempo e vontade pra pegar dias de estrada, investir num equipamento, se
enfiar no meio do nada e passar um tempo na montanha. Tá a fim de encarar
algo assim?” A pergunta parecia prever uma resposta negativa e tinha um
toque muito sutil de desafio, coisa comum entre os dois quando o assunto era
escalada, já que Renan era melhor no esporte em todos os sentidos e tinha
como principal motivação a superação de marcas e
façanhas, de preferência as alheias. “Onde?” “Cordilheira
dos Andes.” “Sim, mas tá pensando em alguma montanha específica?”
Renan tirou os olhos do horizonte e o encarou. “Já ouviu falar no
Cerro Bonete?” Alguns neurônios faiscaram, porque sim, já
tinha ouvido falar nessa montanha, em um artigo da revista canadense Gripped,
se não estava enganado. Um pico vulcânico de quase sete mil metros
de altura, próximo ao Aconcágua, no Noroeste da Argentina. “Sim,
já ouvi”, emendou com satisfação, se sentindo um especialista,
“não é um vulcão na Argentina?” “Pois é,
existe esse Cerro Bonete, que fica perto do Aconcágua, na província
de La Rioja. Tem seis mil setecentos e não sei quantos metros e sempre
foi meio esnobado pelos escaladores, mas ultimamente tem sido mais procurado.
Só que não é desse que eu tô falando, não.”
Renan enunciava suas frases com um falso tom de pouca importância, mas
era claro que estava querendo chegar em algum lugar, falar de algo que vinha
sendo objeto de fascínio em sua imaginação fazia um bom
tempo. Queria fazer suspense, tanto que ficou quieto e o forçou a perguntar:
“Existe outro Cerro Bonete, então?” “Existem pelo menos
três ou quatro, que eu saiba. ‘Bonete’ em espanhol significa
um tipo de chapéu, e os caras deram esse nome pra uma porrada de montanhas
nos Andes. Mas o Bonete que eu tô falando é especial. Pra começar,
fica na Bolívia. Bem no sul, quase fronteira com a Argentina.” “Fora
isso, o que ele tem de especial?” “Difícil dizer, porque ninguém
nunca subiu lá. Aparece em alguns mapas e nas fotos de satélite,
mas não se sabe a altura exata. Encontrei uma página na internet
que diz que tem dezoito mil, duzentos e quarenta pés, uns cinco mil e
seiscentos metros.” “Não é dos mais altos.” “O
que importa é que é desconhecido. Não existe quase nada
documentado sobre a região. Não tem estrada, cidade, porra nenhuma.
O desgraçado fica na borda de uma cratera vulcânica com uns seis
ou sete quilômetros de diâmetro. Tu precisa ver as fotos aéreas.
Dá pra achar alguma coisa na internet. É impressionante.”
Soube na hora que o papo do Renan era pra valer. Subir os picos mais elevados
de cada continente já tinha se tornado algo banal aos olhos dele, não
que fosse fácil, mas muita gente já tinha feito. “Existem
pacotes turísticos pro cume do Everest” era uma frase que Renan
vivia usando pra ilustrar sua tese de que os verdadeiros desafios do alpinismo
hoje em dia estão nos boulders de alta dificuldade e nas pouquíssimas
montanhas do planeta que ainda têm um cume ou uma face intocada por piolets
e grampões. O que motivaria ele a sair de casa e investir numa expedição
seria uma montanha desconhecida, misteriosa. Algo que fosse inédito e
merecesse registro. Os olhos dele brilhavam ao falar. Piscava diversas vezes
seguidas e depois mantinha as pálpebras abertas por um longo tempo. “E
aí? O que te parece? Nunca teve vontade de fazer uma indiada dessas?
É possível, véio, perfeitamente possível. Precisa
de tempo, dinheiro e um bom estado de espírito. Além de colhões.
É isso que não tenho certeza se tu tem”, disse, meio brincando,
meio pra valer. “É de se pensar, é de se pensar”, respondeu.
Naquela ocasião a idéia pareceu tão mirabolante que não
levou a sério. Mas na segunda-feira seguinte baixou seus e-mails em casa
e havia meia dúzia de mensagens do Renan, com links e imagens sobre o
tal de Cerro Bonete. Eram informações limitadas e fotografias
de satélite de baixa qualidade encontradas em sites obscuros de estudos
geológicos e relatórios governamentais. Um dos e-mails continha
um par de coordenadas e um link pra fazer o download de um programa chamado
Google Earth. Instalou e seguiu as instruções da mensagem: digitou
a latitude 21º45’0.00″S e a longitude 66º29’0.00″W
num campo da interface do programa e apertou Enter. O globo terrestre tridimensional
começou a girar devagar e a tela foi se aproximando cada vez mais rápido
da América do Sul, da Bolívia, e depois de alguns segundos de
transferência de dados surgiu a imagem nítida de um cume nevado
na borda da cratera de um vulcão inativo. Sua primeira impressão
foi de estar vendo um mapa de algum jogo muito antigo de computador, mas aos
poucos foi compreendendo que era uma imagem de satélite legítima,
colorida e detalhada, de um trecho inacreditavelmente inóspito da superfície
do planeta, a vista aérea das cordilheiras lembrando a textura da casca
de uma velha araucária, a crosta terrestre vista como a crosta de um
bolo, quase palpável na tela do computador. E foi nesse instante que
a idéia da expedição desmiolada se gravou na sua mente
de forma definitiva. Fossem quais fossem as motivações pessoais
do Renan, agora tinha a sua própria: precisava estar lá. Precisava
que aquele exato retalho da Terra se tornasse um lugar onde estivera, que sua
presença ali fosse algo realizado. A imagem da tela do computador evocou
fotografias mentais de diversos locais que tinham provocado nele um desejo semelhante,
como se lhe reservassem uma revelação de qualquer tipo. Lembrou
de uma pequena ilha que viu durante um passeio de barco pelo sul da ilha de
Santa Catarina, no primeiro ano de casamento com a Adri, quando ela estava grávida
de três meses. Era uma ilha de rocha entre tantas outras daquele litoral,
coberta de vegetação na metade mais elevada, mas nessa havia três
ou quatro cabanas de madeira completamente isoladas, voltadas pro oceano e escondidas
do continente. Ficou imaginando quem havia construído aquilo, como tinham
chegado lá, se alguém morava de fato naquelas habitações
precárias ou se eram apenas galpões de pescadores usados como
depósitos ou abrigos eventuais. Fosse como fosse, teve vontade de estar
naquela casinha isolada numa ilha sem civilização. Pareceu, por
um instante, algo simples e acessível. O que podia haver de tão
misterioso em escolher um lugar vazio da superfície do planeta, mandar
construir uma pequena casa e ir pra lá de vez em quando? Depois, aos
poucos, a idéia foi adquirindo outra cara, se revelando inviável,
muito mais inacessível do que parecia, e deixar isso de lado foi como
perder uma oportunidade valiosa, embora não pudesse definir exatamente
o que haveria de tão único e revelador naquele lugar específico.
Outra ocasião, viajando de carro pela BR-101 entre Torres e Osório,
enxergou uma figueira magnífica em um sítio na margem da estrada
e teve a mesma sensação de urgência. Teria sido a coisa
mais simples do mundo estacionar o carro e percorrer a pé os quinhentos
metros que o separavam da árvore. Sentar encostado em seu tronco e atingir
dentro de minutos alguma epifania, ou simplesmente deixar a aura daquela figueira
naquele sítio naquela estrada evanescer vagarosamente, retornar pro seu
carro e seguir viagem até Porto Alegre. Perdeu aquela oportunidade e
dezenas de outras. O que a imagem de satélite na tela do computador oferecia
era mais uma chance de eleger um instante no tempo e no espaço em detrimento
de todos os outros. Era preciso estar lá. Se pudesse, se teletransportaria
pro Cerro Bonete boliviano naquele exato instante. Como era impossível,
apenas respondeu pro Renan: “Vi as imagens. tô dentro (sério)”.

Créditos: Cláudio Edson Baldavia, Daniela Gravina Matielo,
Juliano Magalhães Viana, Claudemir Oliveira de Lira, Ivanise Casarin
Bandeira e Jéssica Silva de Andrade
– II Projeto Integrado de Prática
Educacional do Curso de Letras – Mackenzie 2008

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