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Meu tio Roseno, a cavalo, de Wilson Bueno

by Lucas Gomes

Em Meu Tio Roseno, a cavalo, o autor, Wilson Bueno, faz a paródia da
paródia dos relatos de cavalaria para inventar uma lenda errante, um poema
sinfônico, um canto-falado avá-brasiguaio, com céus e entrecéus servindo como
“estrofes” para a viagem da fala que delira errando contra o vento.

O fascínio pela aventura vivida por um tio, dez anos antes do nascimento do
narrador, incita-o a recriar um sertão mítico na região de Guaíra, Paraná. No
livro Meu tio Roseno, a cavalo, o narrador é premido pela urgência em
grafar a lenda familiar. A saga do tio precisa ser escrita. “Narrar é preciso…”
Mas, quando a tradição oral transforma-se em texto, explodem as tensões
lingüísticas iconizadoras das situações-limite vividas pelo protagonista, em
uma região também limítrofe. Este é um dos pontos altos do livro.

Na verdade, ao voltar-se sobre si mesma, reelaborando-se cuidadosamente a cada
instante ou mo(vi)mento narrativo, a fábula curva-se ao poder da linguagem. Nesta
preciosa saga ou lenda familiar, importa muito o como se diz. É a qualidade do
narrado que possibilitará a duração ao que se diz (a história em si sobreviverá
enquanto projeto na e da linguagem).

Por esta razão a obra consegue chamar a atenção pelo artesanato inusitado de sua linguagem. Num
andamento próximo do coloquial regionalista, contando com a fusão do português,
espanhol e guarani (recriando a realidade do local em que se passa a narrativa,
entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai), o autor abusa do emprego dos
neologismos que atingem até o próprio nome do protagonista, Roseno, que é chamado
Rosevago, Rosevéu, Rosenente, Rosalvo, entre outros.

Tal variação sobre o mesmo nome faz lembrar as repetições constantes de expressões
por todo o corpo da obra. Confira quantas vezes aparece “meu tio” após o nome do
protagonista, ou mesmo “antes da Guerra de Paranavaí”, “Doroí ia lhe dar um filho,
uma filha, por ser mais certo”, “bugra esquiza e de olhos azuis”…

No texto de Bueno, a natureza, as águas, o céu ou o vento, poeticamente descritos,
numa linguagem de extremo rigor e riqueza, caracterizam sinestesicamente o espaço
da narrativa em que o tempo mítico é regido pelo passo do cavalo zaino, a confundir-se
com os elementos da natureza, impregnando-se dela, em seus sons, cheiros, cores,
movimentos: …ao trote intermitente do zaino, cuja cor, de estrepitosa beleza,
concorria com a vertigem castanho escura dos barrancos, a sustentar a mata verde de
cada lado.
Vale a pena acompanhar as mudanças sofridas pelo cavalo, a partir
do próprio nome (o brioso Zaino, ou Brioso, ou nosso cavalo, ou “um agora
corcoveante cavalo”); sempre à espera do senhor seu cavaleiro! “O cavalo e o nosso
tio, feito o punhal e a bainha, a abelha e o mel, a céu e a fímbria do horizonte.”

Na “história urdida por sete céus e seis imprecisos entrecéus a galope”, Roseno
viaja em busca de um futuro emblematizado no nascimento da filha anunciada para
nascer: …Andradazil, um nome – a travessia de si para a bugra Doroí, de si para
o ser que a barriga de Doroí fez crescer na ausência dele,…
Nessa viagem de
volta, um sentido de eterno retorno confere à narrativa uma dimensão mítica.
A travessia dura sete céus, sendo os dois primeiros um tempo de eros – aquele dos
encontros amorosos; o terceiro e o quarto correspondem às batalhas e os dois últimos
correspondem às fantasmagorias.

Em cada etapa, o nome do protagonista sofre contínuas alterações em virtude dos
diversos estados de espírito. Desse modo, Roseno, uno em sua trajetória direta,
obsecado pelo objetivo a atingir, torna-se ao mesmo tempo múltiplo. Nessas
mudanças de nome, as associações sonoras aliam-se às sugestões semânticas
procurando captar os reflexos dos acontecimentos em sua alma: (Rosemundo, necessidade
de aparência; Rosalvo, de alma leve; Rosevino – entregue à luxúria; Rosireno – homem
sóbrio e religioso; Rosenovo – sentindo-se um outro homem; e assim por diante.

O mesmo procedimento metalingüístico permite que o texto seja sugestivamente
auto-nomeado inúmeras vezes, em cada etapa: “desta história urdida por sete céus
e seis imprecisos entrecéus a galope”; “desta lenda molhada de rios”; desta fábula
ao relento”; dessa história ao vento”; “deste raconto-aragem”; nesta lenda antiga”;
nesta comédia de erros, desta história a cavalo; desta lenda soprada pelo vento;
dessa história vaga; desta fábula rasa; dessa lenda de viés.” Tal processo desvela
e revela o prazer do texto em sua gênese.

Após o desfecho agônico do sexto céu, já quase entrando pela noite o dia assinalado,
o narrador deixa em aberto a última etapa: O sétimo céu desta fábula estrela, vês?,
tão sucinto, de novo entardece – só uma linha e a fímbria do horizonte.
Nas
linhas finais, sente-se o poético apelo à imaginação do leitor para que mergulhe
nas veredas do sertão paranaense recriado por Wilson Bueno.

O tempo, é o de bem antes de 1949, época do nascimento de seu sobrinho-narrador
onisciente, que faz do trotar de Brioso, o ritmo da narrativa.

Durante a caminhada, passam pelo tempo da memória ou psicólogo: origens de Roseno,
seus irmãos, acontecimentos que vivenciou, às vezes alegre, às vezes saudoso e
por fim desesperado ao chegar ao almejado destino e ver seu sonho destruído. O
tempo cronológico é determinado pela partida e chegada do cavaleiro ao seu destino
– sete dias e seis noites ou seja, no linguajar do narrador – sete céus e seis
entrecéus, como citado anteriormente.

Todos esses elementos contribuem para que se construa uma prosa poética que lembra
Simão Lopes Neto, pelo tom sulista, mas principalmente Guimarães Rosa, não só pela
invenção de palavras e fusão de línguas, mas pelo caráter simbólico, quem sabe até
mítico, que o texto acaba assumindo. Reforçando tal aproximação, parece não ser à toa
que o narrador, sobrinho da personagem principal, dá um ar de fábula à história ao
dizer que se passa no desvão dos tempos, por exemplo. Outro argumento seria a
própria musicalidade da frase, como em “e os ouvidos treinados para diferençar da
azáfama de inquietos sons a nota surpresa da mais arisca aproximação”. Recende
plenamente o fazer literário roseano.

Em suma, se aceitarmos a semelhança entre Wilson Bueno e Guimarães Rosa, não se
tornará absurda a idéia que em Meu Tio Roseno, a cavalo, a narrativa acaba
criando um mundo mágico e simbólico, o que se nota em seu começo, quando se
comunica que Roseno montou o cavalo Brioso para realizar uma viagem em menos de
sete dias para Ribeirão do Pinhal. A intenção do herói era, obedecendo à profecia
de uma cigana, encontrar sua amada Doroí, índia com quem vai ter uma filha, que
deve chamar-se, ainda de acordo com a cigana, Andradazil (outra semelhança com
Guimarães Rosa é que “Andradazil” chega a ser onomatopaico, imitando o som da
cavalgada, assim como o nome “Tarantão”, do conto de Guimarães Rosa, “Tarantão,
meu patrão”, presente em Primeiras Estórias), para que tivesse um bom
destino no meio da tão citada Guerra do Paranavaí (região do interior do Paraná),
conflito causado por questão de terra entre índios e civilizados.

Realiza, pois, uma viagem de travessia, que pode ser entendida como metaforização
da vida. Faz lembrar o conto de Guimarães Rosa, “Seqüência”, de Primeiras
Estórias
, pois é uma jornada em busca do amor, ou então “Tarantão, Meu Patrão”,
do mesmo livro, já que, além do tom de gesta, há a motivação pelo nascimento de uma
criança. Há semelhança também com Morte e Vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, pois o início de uma vida pode ser visto como um contraste às desgraças
mostradas no bojo da obra.

O livro é marcado por repetições na linguagem, o que o torna poético. Mas no eixo
narrativo essa característica se processa pelo aspecto cíclico que é assumido. Sete
dias. Seis entre-céus. O ciclo de sol e lua, assim como a própria viagem, são
velhos símbolos da vida. E tudo se encaixa em três grandes fases, sexo, luta,
assombração, que, no fundo, são manifestações de dois grandes campos: vida e morte.
Mais uma vez, o tom mítico do livro.

Enredo

O livro, narrado em terceira pessoa pelo sobrinho da personagem-título, se passa na
década de 40, e conta a história de Roseno, tio do narrador.

Ele parte de Guaíra, na fronteira entre o Paraguai, o Mato Grosso do Sul e o Paraná,
até Ribeirão do Pinhal, em São Paulo. Seu objetivo é chegar a tempo de ver o
nascimento de sua filha com a “bugra retinta Doroí”. A viagem será feita em seu
cavalo, chamado Brioso. A menina deverá receber o nome de Andradazil, seguindo o
que dissera uma cigana.

No início da caminhada a cavalo, Roseno depara-se com um índio desafiador que não
acredita no poder das armas de fogo, alienação, principalmente em época tão próxima
aos conflitos de Paranavaí, que espanta o herói. Mas basta mostrar o poderio bélico
para que o oponente se desmanche em cortesias, levando o protagonista até sua tribo.
Lá, conhece uma índia muito jovem, criança ainda, com quem passa noite, tirando-lhe
a virgindade.

No dia seguinte encontra problemas ao abandonar a tribo. O chefe quer que se case
com a pequena índia. Mais uma vez, tem de usar seu revólver. O engraçado é que não
bastaram tiros no chão, teve de, estranhamente, pôr na mão do selvagem a arma para
convencê-lo de deixar sair (pode ser visto como significativo o fato de Roseno
deixar vários espelhos e miçangas em troca da hospedagem e da companhia afetiva. O
herói, mesmo neto de índia, parece ter em seu sangue o costume branco, seu avô era
alemão, já vindo do século XVI de trocar coisas tão preciosas por ninharias). Então
parte.

Nesse primeiro embate, o prazer sexual, princípio da vida, está ligado a combate,
que se restringiu, na verdade, apenas à possibilidade. Vitória da existência. Mas
conquista efêmera. Pouco depois encontra, em seu segundo dia de viagem, em meio ao
clima fantasmagórico da noite, um local em que havia os restos mortais de
combatentes, ossadas e mais ossadas dispostas num quadro dantesco. Era a Guerra do
Paranavaí se apresentando. Era o princípio da morte começando a se instalar.

Passa a noite com um sono entrecortado pela impressão que aquela paisagem macabra
lhe deixou. Prossegue sua viagem até no final do terceiro dia, quando pára e resolve
ver as atrações de um circo. Decepciona-se com a farsa sobre uma mulher que se dizia
barbada. Além disso, foi obrigado, num bar, a brigar com dois soldados, que queriam
mostrar-se atrevidos. Vence-os. Por fim, enquanto assistia a um espetáculo,
presenciou um velho baixinho pegar um homem bojudo e atirar várias vezes sobre a
cabeça deste, num ato de covardia que revoltou os demais da platéia. O surpreendente
é que a vítima ainda consegue se levantar e cambalear na direção do assassino, no
entanto, termina por cair. Alguns entre o público tomam as dores do derrotado e
partem para cima do covarde, mas são segurados pela própria orquestra do circo.
Estava consagrado que tudo não passava de farsa, o que deixou o herói irritado.
Assim, parte.

Chega-se ao seu quarto dia de viagem, mergulhado nas memórias da infância, com a
presença marcante da avó, feiticeira. Lembra-se também da amada, que lhe proporcionou
inúmeros momentos de gozo. Recorda-se ainda dos irmãos. Além disso, vem em sua mente
uma enxurrada de acontecimentos ligados a guerra, violência, assassinatos, seus
primeiros empregos, seu ofício como capador de galos e daí a sua paixão: as brigas
realizadas entre esses galináceos. Tudo isso se passa com maestria, revelando o
domínio de Wilson Bueno, já detectado em outros momentos da obra, sobre o emprego do
tempo psicológico e do fluxo de consciência.

Estamos no campo da guerra, que nada mais é do que luta por sobrevivência. Porém, é
um momento da narrativa com uma enorme proximidade da morte. Disseminam-se aqui
elementos que podem ser vistos como preparação pelo menos do clima do final da novela.
Em nome da guerra, que é uma luta por domínio de vida, atrocidades são cometidas.

Mergulhados nessa atmosfera, estamos no quinto dia, o mais assustador. Tudo começa
com um encontro fortuito com um sujeito extremamente magro. Fugia de Aruanã porque
o povo estava perseguindo um lobisomem que havia feito muita desgraça na cidade.
Todos acreditavam que o desgraçado era desdentado, o que faziam pessoas com tal
qualidade serem alvos perfeitos para a fúria dos cidadãos. Roseno fica desconfiado,
ainda mais quando descobre que o fugitivo, Luís Arnaldo, era maneta.

Chega à cidade, que lhe é frustrante, pois, em vista do clima de terror, não se
estavam realizando as famosas brigas de galo. E, como de esperar, o assunto de
todos era nada mais do que o tal lobisomem. O herói diz que o viu, mas, feita a
descrição, todos na hospedagem em que está dizem tratar-se apenas de Luis Arnaldo.
E dedicam-se a contar mais histórias fantásticas. Roseno não repara, no entanto,
que um dos forasteiros ri sempre escondendo os dentes.

No fim, recolhe-se ao seu quarto, o que possui o aziago número 13. No meio da noite
acorda e, guiado apenas por um toco de vela, vai ao banheiro coletivo da hospedaria.
Enquanto se desafoga, ouve o resfolegar de um cavalo e por uma fresta consegue ver
que era justo o animal de Luís Arnaldo. Chega até a enxergar-lhe inúmeras asas.
Corre assustado para o seu quarto, não sem antes ver o eqüino voar.

Volta para seu sono perturbado, interrompido pela gritaria dos vizinhos: estavam
perseguindo um lobo, ou melhor, o lobisomem. O animal acaba, numa cena bastante
pungente, massacrado pelos moradores. Roseno, que já estava decepcionado pela
ausência das rinhas de galo, decide, diante de tudo o que havia presenciado,
partir de Aruanã. No caminho, admira-se ao encontrar com o desdentado Luís, que
estava voltando à cidade. É este quem lhe diz que o lobisomem era o forasteiro que
tanto escondia a falta de dentes.

Está terminando o seu prazo de deslocamento e o Brioso parece que sente, pois
cavalga mais rápido, até nervoso. Está-se aproximando do clímax da novela, depois
de toda uma narrativa que somava amor, guerra e assombração, este último elemento
nada mais era do que o medo da morte. E é o que vai tomando mais forma no final, o
que parece ser pressentido pelo herói, principalmente quando vê urubus sobrevoando
a região que era o rancho onde devia estar Doroí. Corre desesperadamente para lá.

Chegando, só encontra a casa abandonada e crivada de balas. Sua fúria e desespero
se descarregam soltando tiros para todas as direções, o que acaba por derrubar de
uma árvore a negra Nhô, que ali se havia escondido. Em meio à tensão, consegue
arrancar da empregada informações por demais dolorosas: Doroí ainda não havia dado
a luz, mas tinha sido levada dali para a Guerra do Paranavaí.

E assim encerra-se a novela, com o amanhecer do sétimo dia. Com esse anticlímax, pois
que frustra as expectativas do leitor, bem no esquema de contos como “Os Irmãos Dagobé”
e “Tarantão, Meu Patrão”, de Primeiras Estórias ou mais ainda como “A Cartomante”,
de Machado de Assis, pois o que acontece no final já havia sido anunciado em elementos
disseminados pelo texto, mas que o leitor acaba ignorando por criar uma expectativa
em outra direção.

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