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Minhas vidas passadas (a limpo), de Mário Prata

by Lucas Gomes

Minhas vidas passadas (a limpo)

, livro de contos de Mário Prata, traz o
relato dos engraçados diálogos entre o autor, um médico e seis personagens,
que vão desde Ana de Betânia, a irmã de Lázaro, Anhanga, índio brasileiro presente
no dia do descobrimento do Brasil, até o homossexual inglês Johnny.

Neste livro, com muito bom humor e perspicácia ele narra seis de suas onze vidas passadas desde a época
de cristo até nossos dias!

Tudo na obra é ficção, a começar pela orelha escrita por um imaginário psiquiatra
do autor, a quem ele chamou de Leonardo Ramos. Resgatar vidas passadas foi uma
idéia irônica de Prata para brincar com o sucesso dos livros sobre as teorias
psicanalíticas de regressão.

Na montagem dos personagens, Prata dividiu sua própria personalidade em onze facetas,
mas publicou apenas seis. Encarnado em Ana de Betania, irmã de Lázaro, ele encontra
Jesus; como Johnny, vive um homossexual amante da corte inglesa no ano de 1400;
e ainda passeia por Paris no final do século passado como a prostituta Georgette,
amante do pintor Toulouse-Lautrec.

A pesquisa histórica de Angela Marques da Costa enriquece ainda mais a viagem
de Prata por outros mundos, como no personagem índio Anhangá e a sua história
da galinha, baseada na carta de Pero Vaz de Caminha.

Trecho da obra

Leonardo – Onde você está?

Ana – Na rua, numa espécie de mercado. As pessoas estão vendendo nozes e amêndoas torradas. Sou uma
mulher. Mas ainda está tudo um ponco nublado.

Leonardo – Você está se vendo?

Ana – Sim, como se eu estivesse me vendo de fora, entende? Sou uma mulher… bonita… Uns vinte e cinco
anos, mais ou menos.

Leonardo – Como você está vestida?

Ana – Uma túnica. Percebo que as túnicas das mulheres são maiores que as dos homens. Amarela. Por cima
uma pella.

Leonardo – Pella?

Ana – Sim. Uma capa parecida com uma toga. Azul. Uma tiara no cabelo. Uma tornozeleira
de ouro. Ou alguma coisa parecida com ouro. Anéis. Uma sandália de couro cru,
presa por tiras do mesmo material.

Leonardo – Que época é?

Ana – Agora estou vendo minhas duas irmãs chegando. Marta e Maria. Agora está tudo claro. Meu nome é Ana
de Betania.

Leonardo – Ana de Betania?

Ana – Sim. Betania, uma aldeia entre Belém e Jerusalém, na Palestina. A uma hora de Jerusalém. Minhas
irmãs parecem apreensivas.

Leonardo — Elas se vestem como você?

Ana – Sim, mas usam fitas nos cabelos.

Leonardo – Sabe em que ano você está?

Ana – Jesus nasceu há trinta e dois anos.

Leonardo – Você conheceu Jesus?

Ana – Muito. Ele ia muito à minha taberna. Ele e os seguidores dele, chamados
de discípulos, apóstolos, alunos. A palavra apóstolo não é aramaica. É grega.
Significa “enviado”. Eu era cozinheira, mas sabia ler e escrever.

Leonardo — Nesta época as mulheres estudavam?

Ana – Poucas.

Leonardo – Trabalhavam?

Ana – Quase nenhuma. Meu caso era especial. Em geral, as mulheres ficavam em casa fiando e tecendo a lã.

Leonardo -Você trabalhava por quê?

Ana – É que após o parto, a mulher era considerada imunda e tinha que se purificar. No caso de bebê
macho, era considerada imunda por sete dias. No oitavo, no menino, era feita a tircumtisione e depois a
purificação continuava por trinta e três dias. Se o bebê fosse menina, a mulher era considerada imunda
em dobro. Duas semanas sem sexo, como na menstruação, e mais sessenta e seis dias.

Leonardo – E o que tem isso com o fato de você trabalhar?

Ana – É que eu fiz sexo com o meu marido catorze dias depois do parto de uma menina. Não ia esperar quase
três meses. A Torá não me perdoou. Tive que viver sozinha.

Leonardo – Torá?

Ana – O livro santo, a verdadeira lei dos judeus. Abri uma espécie de taberna.

Autor – Mas, Leonardo, logo de cara uma mulher?

Leonardo – Você era amiga de Jesus!

Autor – Amigo! Amigo! Olha, Leonardo, eu não estou acreditando nisso, não. E nem gostando. É melhor a
gente parar por aqui. Imagina, amiga de Jesus Cristo. Não me faltava mais nada.

Leonardo — Vamos lá.Vamos relaxar. Quero que você me fale de Jesus.

Autor – Aramaico, um dialeto hebraico… Isso é muito lonco, Leonardo. Imagina se alguém vai acreditar
num absurdo desses. Jura não contar pra ninguém?

Leonardo – Vamos, relaxe… Relaxe… Mais, solta o corpo… Sem medo. Isso. Vamos,
Ana. Dez, nove…

Marta – Simão Pedro, Tiago, o filho de Zebedeu, e Judas Iscariotes mandaram um mensageiro.

Ana – Como está Jesus?

Maria – Com problemas. Como sempre.

Marta – Quero que você esteja na taberna hoje no final da tarde. Vão comer lá. Trazem uma mensagem de
Jesus, que está para chegar, a caminho de Jerusalém.

Ana – Pois digam ao mensageiro que estarei esperando. Com um bom vinho italiano, da Campania. Ou, se
preferirem, um vinho do Lácio, de um vinhedo plantado no meio do pântano pontino.

Marta – Contrabando?

Ana – Muitas dracmas e alguns denários… E Lázaro, nosso irmão, melhorou?

Maria – Nossa última esperança é Jesus.

Autor – Leonardo, eu não posso estar sendo induzido por você, por exemplo, para, hipnotizado, dizer essas
coisas todas?

Leonardo – Você fala aramaico?

Autor — Claro que não. Um pouco de latim. E você, fala aramaico?

Leonardo – Claro que não. Você está com medo? Podemos continuar outro dia. Ou mudar de tratamento.

Autor — Claro que eu estou com medo. Sei lá aonde é que isso vai dar, porra! O mais estranho é que eu
vejo a cena e, ao mesmo tempo, sou a cena. É como se eu tivesse tomado uns ácidos.

Leonardo – É, a comparação não está de todo errada. E o aumento da percepcão de dezoito por cento para
quase cem.

Autor – Vamos lá, vá. Seja o que Deus quiser. Ou melhor, Jesus. Solta a fita.

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