Home EstudosLivros Moça com flor na boca, de Airton Monte

Moça com flor na boca, de Airton Monte

by Lucas Gomes

Moça com Flor na Boca

, do poeta e contista Airton Monte, é uma coletânea
com pouco mais de sessenta textos, entre tantos guardados nas reminiscências
da memória mais que perfeita – um tipo de arquivo recém-descoberto.

Em Moça com Flor na Boca, o autor viaja por todos os caminhos da crônica.
E o faz exatamente por ser poeta e prosador de primeira linha. Suas crônicas,
publicadas diariamente em jornais, têm o sabor de poemas líricos ou de contos
introspectivos. É como se ele não as escrevesse para jornais, mas para a
posteridade.

O cronista às vezes se volta para o cotidiano imaginado, porque não conta fatos
ou episódios, mas descreve estados d’alma (“Histórias do cotidiano”, “A palavra muda”,
“O repouso do guerreiro”) e faz da crônica peça ficcional. “A mulher no aquário” é
conto de fino lavor. Personagens, quase sempre sem nome explícito, povoam muitas
dessas crônicas, que se assemelham a contos. Em “Telefone, retratos, escorpião” vê-se
um homem desesperado em determinados lugar e tempo e sua história. Em outra composição
um homem bem vestido chupa manga na calçada e faz o cronista lembrar a infância, o
tempo das mangas, dos quintais (…“eu pulava (o muro) no ressonar das tardes de domingo
pra roubar manga-rosa no pé”. A infância, aliás, é um dos temas favoritos do cronista)
(“Considerações sobre o longe”, “Declaração de amor”). Essas lembranças não poderiam
deixar de remeter ao passar do tempo, ao envelhecimento, à morte (“Um dia absolutamente
normal”, “La belle dame sans merci”).

Essa visão do mundo o leva a pintar personagens solitários, como os goleiros: “Quando
se postam imóveis debaixo das traves, são a metáfora vida de uma palavra perdida entre
parênteses”. Ou a não carecer de personagens, como se quisesse dizer que uma história
nem sempre precisa deles. Ou precisa tanto deles que todos os possíveis personagens
se apresentam, embora por momentos, no palco. Como numa arca de Noé. “Crônica surrealista”
é, talvez, o melhor exemplo disso. Peça literária de altíssimo valor, assemelha-se a um
mosaico imenso, pintado no chão ou longe dele, no céu, no não-lugar: “Um rosto no escuro”,
como nos filmes de Hitchcock; “Uma princesa e um sapo passeando de braço dado na floresta
negra”, como nos contos de Andersen e dos irmãos Grimm; “Um aperto de mão, um par de
algemas, um arrocho no peito, um ataque de asma, um tesão recolhido na inocência do sátiro”,
como só se lê em quem veio da Hélade, conheceu Dante e se fez Airton Monte.

A solidão, o desencontro das pessoas no mundo também estão em Moça com Flor na Boca.
Como o homem e a moça que não se falam, em “Moça de azul-celeste”. Ou na poética “A mulher
de preto”. Outras vezes, a solidão não está muito longe, pelo contrário, atinge em cheio
o próprio cronista (ou o narrador, se quiserem), como em “A nudez do cronista”.

Em algumas crônicas a busca do mundo leva o cronista a se afastar de si mesmo. Ou buscar
o mundo com os olhos, à cata de histórias, e se levar consigo pela cidade (“De palavra em
palavra”). Imaginar-se na Fortaleza de sua infância, adolescência e juventude, na Praia de
Iracema, “na borda da velha ponte derruída” (“Namorados, namorai”). Essa Fortaleza está
presente em diversos momentos do livro, ora em forma de lamento, ora de exaltação (“Feliz
aniversário, Fortaleza”, “A morte anunciada”).

Às vezes não é exatamente o mundo físico que o cronista esquadrinha, mas o mundo interior
ou a vida no seu decorrer. O que são os domingos, as tardes de Domingo, a solidão
domingueira (“Os passarinhos fujões”, “A casa cheia de palavras”)?

Entretanto, a crônica tem muitas vezes como protagonista o próprio cronista, que também
pode ser visto como um personagem, à semelhança do que acontece nas narrativas em primeira
pessoa. Há ainda a possibilidade de o cronista se voltar para o próprio ato de escrever,
questionar o que seja escrever e se mostrar o mais sincero possível: “gosto de brincar
com palavras” (“Licença poética”). Ou se mostrar angustiado por não ter sobre o que
escrever (“O mar é mulher”).

Um dos temas mais caros ao cronista Airton Monte é a mulher. Não exatamente a própria
mulher, a namorada, a amante, ou a mulher do próximo, a fatal, a imaginada, mas a mulher
como ser. E, de tanto se ocupar dela, termina criando peças de autêntica ourivesaria,
contos da melhor feição literária, como em “Desejos de mulher”. Mas nem só de mulher vive
o cronista. O homem também ocupa um lugar especial na carpintaria do escritor, o que é
absolutamente normal. No conto “Enfim, livre”, um homem solitário pensa. Isto é, a solidão
se abate sobre os seres de forma indefensável. Outras figuras masculinas povoam as
composições do livro, às vezes com descrição minuciosa. Em “Figuras urbanas” o
protagonista é “um preto alto e magro feito um guerreiro etíope”.

O mais freqüente em Airton Monte é, sem dúvida, a crônica poética, realizada sempre com
muita sabedoria e talento. Em algumas delas o “eu” se pluraliza, se torna nós, numa
atitude puramente lírica, como em “S. O. S. Deus”. O narrador ou o eu, nesses momentos,
se desnuda de todo para o leitor. Ou para si mesmo. Abre a janela para o nada, em
completo desânimo, em plena desilusão. Ou pinta um auto-retrato em branco e preto, com
pinceladas ríspidas e rápidas (“Atestado de identidade”). Essa busca de si mesmo leva o
cronista a, vez em quando, tecer considerações sobre o ato de escrever e, mais ainda,
sobre o ser poeta, como se vê em “O desertor da poesia”, espécie de ato de fé ao contrário,
se não for lido como pura ironia. Em “Licença poética” observou: “Sim, escrever trata-se
fundamentalmente de brincar, embora muitas vezes seja um jogo perigoso, arriscado, que
pode nos levar à paz dos precipícios, à bem-aventurança dos infernos que em nós mesmos
residem, silenciosos e ocultos sob a pele das palavras ainda não escritas”.

Aiton Monte não tenta ludibriar o leitor e, quando a ele se dirige, o faz com humildade
(“Vocês, meus parcos leitores, que perdem seu preciso tempo lendo essas aleivosias que
escrevo”…) E pede desculpas se, por acaso, estiver a repetir o tema (“O poeta naturista”).
O que é natural para o cronista que diariamente escreve. Essa angústia já se manifestava em
“O mar é mulher”, a angústia da falta de assunto, de não ter visto nada que valesse a pena
servir de tema para uma crônica: “Há dias assim, tão terrivelmente medíocres que sequer
inspiram a mais reles croniqueta”.

Airton Monte, poeta e contista de vocação lírica, mas também social, não poderia deixar
de se indignar com as guerras, o caos, as catástrofes e suas conseqüências. A crônica
que encerra o volume – “Os olhos das crianças de Bagdᔠ– é um soco no estômago de
todos nós: “Os olhos das crianças de Bagdá são faróis acesos na escuridão de nossas
consciências”.

A crônica de abertura do livro e que dá título ao mesmo, já faz uma síntese
dos elementos recorrentes do autor: o lirismo, a ironia mordaz, o jogo dos contrastes
e a circularidade:

A esta hora tardia em que escrevo, o dia de amanhã já se anuncia no melancólico
cantar de um galo insone, exilado na grande cidade. Claro que o mundo não pára
enquanto dormimos. As coisas continuam acontecendo, seguindo seu próprio ritmo.

Numa mesma escala do tempo, num botequim da periferia, compadre Raimundo matou
compadre Francisco por causa de uma dose de cachaça pedida e recusada. Em uma
cobertura luxuosa da Avenida Beira-Mar, um marido (respeitável cidadão) espancou
outra vez a mulher só porque ela abraçou e beijou um velho amigo de faculdade.
Trancado no quarto, olhos fixos na tela do computador, o filho de 5 anos sente
o ódio envenenando sua dolorosa meninice.

Já no centro da cidade, que jamais dorme, maus meninos de boas famílias ateiam
fogo a um mendigo bêbado, só para tornar a noite menos chata. Pela internet,
um casal ainda jovem se ama por correspondência e usa nomes falsos e troca retratos
fictícios.

Num sobradinho branco, de janelinhas azuis recém-pintadas, à beira do mar, um
homem e uma mulher celebram no altar de Vênus sob as bênçãos de Afrodite. Num
terreno baldio, uma criança é estuprada e morta pelo vendedor de picolés.

Na Praia de Iracema, as vendedoras de flores poetizam a noite sórdida. Dentro
de um mesmo universo multifacetado, há, ao mesmo tempo, uma lua-de-mel, um velório
de pai rico onde os filhos choram com advogado ao lado e com firma reconhecida.
Ah, quantos dramas, quantas tragédias acontecendo agora enquanto escrevo, inclusive
uma canção que se solta pelo ar, uma estrela cadente, uma nuvem esculpida caprichosamente
pelo vento, um homem solitário recitando poemas de amor e seu coração gritando
vida, meus olhos sonhando com a mágica visão de uma moça linda, com um sorriso
de jardim suspenso da Babilônia e, certamente, irremediavelmente com uma flor
na boca, que o poeta colherá inevitavelmente, imune ao veneno de todos os espinhos
.
(p. 7 e 8 )

As passagens “A esta hora tardia em que escrevo…” e “Ah, quantos dramas, quantas
tragédias acontecendo agora enquanto escrevo…” apontam um elemento inerente
à composição de Airton Monte: a circularidade; isto é, os enunciados estabelecem
entre si vasos comunicantes, e a escritura resulta de um entrelaçar-se de fios,
à semelhança de uma teia. Tecelão, o autor possui um fio-mestre; deste, podem
desprender-se outros fios, mas àquele estarão subordinados.

Cronista, o autor se apresenta ao leitor como um homem comum, que também luta
pela sobrevivência, que, como qualquer outro homem, trabalha, ainda que destoe
do quadro geral: “o dia de amanhã já se anuncia” à cidade, mas para ele, cronista,
é uma “hora tardia”, pois, da mesma forma como aquele “galo”, ele, também, é
um “insone” e um “exilado”, em sua “caverna” – espaço de sua criação.

A “máquina do mundo” o faz tecer uma série de reflexões acerca dos contrastes
que compõem a crosta do cotidiano. E, como “As coisas continuam acontecendo”,
passa a colher, aleatoriamente, alguns episódios, configuradores do espetáculo
humano, estabelecido no grotesco, uma vez que ao lado do belo reside o feio;
do puro, o impuro; da virtude, o pecado etc.

Assim, no mesmo instante em que nasce um “bebê”, fazendo com que a humanidade
se engrandeça “no doce mistério da carne”, num “botequim da periferia”, um compadre
matou o outro, por motivo banal. Mas, como a violência está entranhada no homem,
e ultrapassa a fronteira da miséria social, numa “cobertura de luxo”, um “marido”
– ironicamente composto com um “respeitável cidadão” – espanca, também por motivos
banais, a esposa, enquanto em outro quarto, preso ao computador, o filho, criado
na abastança, já destila “ódio”, reconhecendo o absurdo de sua infância infeliz.

Concomitantemente, no “centro da cidade, que jamais dorme,” porque abriga o
lixo social – prostitutas, travestis, trabalhadores noturnos etc -, “maus meninos
de boas famílias ateiam fogo a um mendigo bêbado, só pra tornar a noite menos
chata”. (Nessa passagem, o cronista relembra um episódio que, em verdade, aconteceu
em Brasília: jovens de classe média alta – todos estudantes – atearam fogo ao
corpo do índio Galdino que dormia em um banco num ponto de ônibus, já que se
perdera dos companheiros – vieram a uma audiência no Planalto – e esperava encontrá-los
ao amanhecer. Os jovens – assassinos do índio – declararam, à época, que fizeram
aquilo porque estavam entediados.)

Como se vê, não se tratou de um gesto imotivado. É certo que, em relação à vítima,
eles não cultivavam qualquer sentimento de ódio, de vingança etc. Na pós-modernidade,
o consumo chega a um ponto de reificação que se torna monótono; desse modo,
eles consumiram uma imagem que eles mesmos produziram: o desespero do índio
em chamas – um espetáculo visual que tem, assim, relação com o consumo; pois,
afinal de contas, estavam “entediados”.

A imagem do “casal ainda jovem” que se ama por correspondência e usa nomes falsos
e troca retratos fictícios remete a uma problemática da contemporaneidade: a
teatralidade social, a dificuldade de comunicação, a artificialidade das atitudes.
A sexualidade, ainda que esteja ligada à verdade individual, é escorregadia,
imprecisa e desemboca em dúvidas e em interrogações. Se num “sobradinho branco”,
um casal celebra o amor liberto das convenções sociais, num “terreno baldio,
uma criança é estuprada e morta”.

Airton Monte, em muitas passagens de suas crônicas, entrega-se ao poético e
nos brinda com imagens surpreendentemente belas: “Na Praia de Iracema, as vendedoras
poetizam a noite sórdida”. As “flores”, no espaço noturno, substituem as palavras
de amor e de amizade, e estes sentimentos, confirmando o paradoxo humano, palmilham,
na “Praia de Iracema”, o mesmo território das drogas, do álcool e da prostituição.

Por fim, em meio a canções, estrelas, nuvens, o poeta sonha “com a mágica visão
de uma moça linda… com uma flor na boca” – a “flor” surge em toda a sua força
lírica, como símbolo de esperança, mesmo que frágil, a insurgir-se contra os
descaminhos do mundo, a desumanização. A “moça”, trazendo na boca uma “flor”
é o quadro da promessa de renovação tanto do mundo quanto do coração do poeta,
que, “imune ao veneno de todos os espinhos”, colherá aí o seu grão de beleza.

Airton Monte escreve em ziguezague; desse modo, um de seus procedimentos é o
de eliminar verdades absolutas; e brinca com o leitor, ao conduzi-lo por caminhos
falsos ou rotas incompletas. Funciona mais ou menos assim: apresenta um argumento,
enumera justificativas e finge completar o pensamento; mas apenas finge completá-lo,
pois, logo em seguida, toma um outro rumo.

Finalmente, ressalta-se o discurso intertextual como uma das marcas de seu discurso
literário, uma vez que é um leitor voraz e carrega dentro si, entrelaçados,
fragmentos de tantas léguas de livros; bem como de canções, amante que é de
jazz, de blues, da bossa-nova, do samba-canção, dos boleros etc.

Texto parcial: Revista Agulha

Posts Relacionados