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Mongólia, de Bernardo Carvalho

by Lucas Gomes

Mongólia

, último livro de Bernardo Carvalho resultou de uma encomenda da editora portuguesa,
A Cotovia, tendo em vista a participação da sua colecção desenvolvida em parceria com a Fundação Oriente.
Anualmente, a Fundação Oriente atribui uma Bolsa de Criação Literária, em que um escritor (até agora
apenas portugueses) passa dois ou três meses num local à escolha no Oriente, e depois escreve um livro.

A obra é a análise de uma história na qual um homem, para se achar e achar ao próximo, precisou
se perder em um universo desconhecido, marcado pela indefinição e ambigüidade das coisas.

Bernardo Carvalho escolheu a Mongólia, por causa da sua preferência por desertos. Durante
dois meses percorreu cinco mil quilômetros pelo interior da Mongólia. Levava a
idéia de que não queria escrever um diário de viagem, mas um romance. Contudo
não desperdiçou a oportunidade de ir recolhendo as suas impressões da viagem,
que posteriormente aproveitou para base de dois diários ficcionais que vão sendo
expostos ao longo do livro.

Num estilo que mistura o suspense dos policiais às narrativas de viagem, o autor
cruza as histórias de três personagens: o narrador principal, ex-embaixador brasileiro
na China, relatando, a partir dos diários que lhe foram entregues, a viagem feita
por um diplomata (O Ocidental), na procura de “O Desaparecido”, um fotógrafo
desaparecido nos Montes Altaj, na Mongólia.

Em Mongólia há três níveis narrativos que se misturam: o do narrador, propriamente dito
(ex-embaixador brasileiro na China), que relata a investigação diplomática sobre o desaparecimento
de um fotógrafo brasileiro no interior da Mongólia, as anotações de um diplomata escalado para
encontrar o fotógrafo e o diário do próprio fotógrafo – seja na reprodução do sentimento de
estranhamento diante dos lugares, o qual se dá através da constatação do caráter inóspito e artificial
que lhes caracterizam e por uma desconstrução de estereótipos que acentua ainda mais a sensação de
deslocamento dos narradores. Esse deslocamento, porém, é menos geográfico do que mental. Não é porque
estão na Mongólia que os narradores se sentem estrangeiros; eles são estrangeiros no mundo – suas
angústias são de ordem existencial, para não dizer metafísica – e o inusitado e comovente desfecho, que
reitera, algo borgeanamente, a irônica força do aleatório que se imiscui em seus destinos, só vem a
confirmar esse sentimento de incompreensão que os acomete.

A trama narrativa serve de pretexto para descrever paisagens e mosteiros budistas,
registrando ainda aspectos da cultura de um povo distante, num país diferente, resultado de
uma complexa combinação de nomadismo, budismo e comunismo, alternando tempestades de areia
e de neve, desertos e estepes; ao mesmo tempo, vai aguçando a curiosidade do leitor que,
apenas no final, pode compreender a relação que liga os três homens.

Mongólia é todo perpassado
por descrições da paisagem mongol e dos hábitos de seus habitantes, no entanto, o que num primeiro
momento poderia parecer a narrativa de um “choque de civilizações”, uma reflexão sobre o deslocamento
e o desconforto causado pelo outro, revela-se, ao contrário, o relato de um mal estar globalizado,
daí um certo tom claustrofóbico – no sentido mais kafkiano do termo – impresso ao texto: Os edifícios
espelhados, vistos de longe, são como torres de uma cidade de ficção científica, um mundo ao mesmo
tempo futurista e decadente, sob a opressão das nuvens de poeira e névoa que, tornando a luz do sol
difusa e tênue, fazem do horizonte uma miragem, um desejo cego para quem quer escapar deste lugar sem
saídas, um lugar que tenta ser asséptico, em vão, apesar de toda a sujeira atávica e dos odores mais
variados e fétidos que volta e meia sobem ao nariz. (…) É uma arquitetura avassaladora, ao mesmo
tempo majestosa e inóspita, como um palácio que tivesse sido construído no meio do deserto só para
impressionar quem passasse por ali morrendo de sede tentando evitar as miragens.

O autor procura explorar a ambiguidade na relação entre ficção e realidade, integrando no livro
experiências pessoais da sua viagem, assim como amplas dissertações sobre a história e religião
do país.

Como habitualmente, há um mistério que envolve todo o livro, e que só é desvendado nas últimas
páginas; Bernardo Carvalho não perde nunca a oportunidade de nos surpreender com as identidades das
personagens, que se vão movendo misteriosamente, aguçando a nossa curiosidade até final.

Trecho do livro

As estradas da Mongólia na realidade são pistas que o motorista tem que decifrar entre dezenas de
outras, são marcas de pneus em campos de pedras, desertos e estepes. Marcas deixadas por pneus que, de
tanto incidirem sobre o mesmo caminho, acabam criando uma pista. Muitas vezes, no deserto, por exemplo,
não há nenhum ponto de referência além das trilhas deixadas pelos pneus de outros carros. Os motoristas
insistem em segui-las, como quem toma o caminho seguro, tradicional. O bom motorista é aquele que sabe
achar a sua pista no deserto. A boa pista. A repetição é a condição de sobrevivência. É essa também a
cultura dos nômades. Apesar da aparência de deslocamento e de uma vida em movimento, fazem sempre os
mesmos percursos, voltam sempre aos mesmos lugares, repetem sempre os mesmos hábitos. O apego à tradição
só pode ser explicado como forma de sobrevivência em condições extremas. A idéia de ruptura não passa
pela cabeça de ninguém. As estradas só se tornam estradas pela força do hábito. O caminho só existe pela
tradição. É isso na realidade o que detém o nomadismo mongol, uma cultura em que não há criação, só
repetição. Decidir-se por um caminho novo ou por um desvio é o mesmo que se extraviar. E, no deserto ou
na neve, esse é um risco mortal. Daí a imobilidade dos costumes. Os dois motivos (losangos ou círculos
entrelaçados) que sempre se repetem na decoração das portas, portões, móveis, tapetes etc., por toda a
Mongólia, representam o infinito e o casamento, o que só confirma a obsessão por estabilidade e pela
tradição numa sociedade que em aparência é completamente móvel, a ponto de não haver espaço para nenhum
outro movimento.

Se àquela altura ele já tivesse decifrado outro trecho do diário do desaparecido, é possível que, sob
influência da leitura, também passasse a ver as coisas sob outra ótica: Entre os nômades, o interessante
não é o sistema e os costumes, que são sempre os mesmos, mas os indivíduos. A graça de visitar as iurtas
é a surpresa do que se vai encontrar, a diversidade dos indivíduos que ali estão fazendo as mesmas
coisas. O nomadismo em si não tem nenhuma graça. A mobilidade é só aparente, obedece a regras imutáveis
e a um sistema e a uma estrutura fixos. São as pessoas. Talvez por causa da vida dura e isolada, sem
surpresas ou novidades, as visitas em geral sejam tão bem-vindas. O nomadismo é uma estrutura regulada
pela necessidade e pela sobrevivência nos seus fundamentos mais essenciais. Não há liberdade, pois não é
possível escapar a essa regra (em última instância, poderia dizer isso de qualquer outra cultura). É uma
vida regrada pelas necessidades básicas da natureza. Uma vida simples, reduzida ao essencial para a
sobrevivência. O que conta são os indivíduos, quando não sobra mais nada.

Mas o Ocidental não estava interessado nas pessoas. Não tinha tempo a perder. Estava em busca de uma
pessoa. Com as horas que desperdiçaram consertando o jipe, não daria para chegar a Chandmani antes do
cair da noite. Resolveram pernoitar a meio caminho, às margens de Dörgön Nuur, um grande lago de água
salgada, povoado de gaivotas, que voavam e mergulhavam à procura de peixes, e cercado de praias de
seixos e de dunas no meio da estepe. Pelo caminho, tinham visto muitas carcaças de animais mortos no
inverno anterior. Dörgön Nuur costumava atrair turistas no verão. Como ainda estava frio no final de
junho, não havia ninguém nas margens do lago. Chegaram tarde, com o pôr-do-sol. O céu estava rajado de
nuvens rosadas. Escolheram um lugar mais afastado para acampar, depois de passarem por um imenso ovoo,
que mais parecia um mausoléu, todo cagado por gaivotas e muito reputado entre os maiores campeões de
luta da Mongólia. Em geral, os grandes lutadores iam a Dörgön Nuur fazer suas oferendas antes de um
combate importante.

Bauaa nos deixa armando nossas barracas e sai à procura de uma família de nômades com o pretexto de
consertar o jipe de uma vez por todas. Diz que talvez só volte de manhãzinha. Não duvido de que no
fundo Tenha saído atrás de um jantar. Não suporta as saladas de batata e as sopas de legumes em conserva
de Purevbaatar. Nem toda a fome do mundo vai fazê-lo engolir legumes e verduras. Ficamos sós. Depois de
comermos, quando conseguimos relaxar, um carro desponta lá longe, na margem leste, e vem na nossa
direção. Pára a vinte metros das nossas barracas. São quatro sujeitos de Altai. Vêm nos ver. Contam uma
história furada. Estão procurando outro carro. Perguntam a Purevbaatar se não vimos os amigos deles.
Dizem que vieram prestar homenagem ao ovoo dos lutadores. E, por incrível que pareça, resolvem se banhar
no lago bem na frente das nossas barracas. A água está gélida. São uns sujeitos estranhos. Purevbaatar
diz que conhece um deles. É um lutador (ou ex-lutador) de Altai. Não era dos melhores. Se se conhecem,
por que não se cumprimentaram? Como não entendo os códigos locais, começo a ficar apreensivo. Eles pulam,
brincam, falam alto e arrotam na água bem diante de nós. Parrece provocação. Saem da água tiritando, se
enrolam em toalhas, ligam o rádio do carro aos brados e começam a cantar e a beber. E eu, a me irritar.
Estão bêbados. Por que tinham que ficar justamente aqui, quando podiam ter se instalado em qualquer
outra parte do lago! Na alta estação, Dörgön Nuur costuma ser freqüentado por turistas, e parece que nos
últimos anos os nômades da região se acostumaram a fazer pedidos aos estrangeiros sem a menor cerimônia.
Com a abertura da Mongólia, é inevitável que a cultura nômade se contamine com o que há de pior na
civilização sedentária e ocidental. Mas agora não há ninguém à vista, nem turistas nem nômades para nos
assediar com seus pedidos. Estamos a sós com os lutadores. Purevbaatar diz que não preciso me inquietar,
mas a situação é tensa. Talvez queiram apenas estabelecer algum tipo de contato, mas são muito
intrusivos. Como sempre, estão curiosos em relação a mim. A Mongólia não é um país só de gente
acolhedora e ingênua. Já tinha sentido isso com os criadores de camelos. Os sujeitos agora se aproximam
e cospem no chão. Como se quisessem nos intimidar. E de fato estamos intimidados. Não dizemos nada. Noto
que Purevbaatar calçou as botas. Tínhamos tirado as botas ao chegar. Pergunto a ele por que calçou as
botas. E ele diz que está com frio. Como não confio nele, tudo fica pior. Acho que está se preparando
para fugir. Resolvo calçar as minhas botas também, por via das dúvidas. Começo a tomar notas para
disfarçar a apreensão. Ao me ver escrevendo, um dos trogloditas se aproxima e mete a mão no meu bloco
de anotações. Me pergunta alguma coisa em mongol. Não posso dizer que seja simpático. Não sorri em
momento nenhum. Sentado diante da sua barraca, Purevbaatar me diz que o troglodita quer saber o que
estou escrevendo. Depois volta ao seu silêncio. Purevbaatar não se mexe. Não sei o que está pensando.
Diz que não é nada, mas sinto que também não está gostando da situação. Tento me convencer de que o
intruso é gentil, mas a diferença cultural cria uma tensão permanente. Na incompreensão, só me resta
escolher entre o paternalismo e o medo. Começo a entrar em pânico. Continuo escrevendo para disfarçar.
Escrevo qualquer coisa, só para ter o que fazer e me mostro ocupado. E mesmo que Purevbaatar não fuja,
dificilmente poderemos enfrentar os quatro lutadores. São onze da noite, e eles não vão embora. Estou
exausto, mas não entro na barraca enquanto eles não saírem daqui. Começo a achar que é um assalto.
À meia-noite, entram no carro, batem as portas e desaparecem. Da mesma forma como apareceram. Durante a
noite, acordo sempre que ouço o ronco de um motor ao longe. São os intrusos e seus amigos. Volta e meia,
os faróis surgem e desaparecem ao longe, do lado nordeste do lago, perto das dunas. Devem estar apostando
corrida. É uma noite tensa. Fico alerta, pronto para fugir se os faróis se aproximarem de novo. Mas para
onde? Bauaa só volta de manhã. Com o nascer do sol, o lago, que na véspera era tão calmo quanto um
espelho d’água, agora, em comparação, parece um mar revolto, com marolas insufladas pelo vento forte. É
como acordar na praia, à beira-mar. Se me mostrassem uma foto, nunca me passaria pela cabeça que estava
vendo um platô da Ásia Central, a milhares de quilômetros do oceano. O céu ficou cinza. Já não dá para
ver nem a outra margem nem as dunas onde os intrusos apostavam corrida à noite.

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