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A morte de Martin Luther King

by Lucas Gomes


Na cena do crime: King (o terceiro da esq. para a dir.) na
sacada do Lorraine; um dia depois, ele morreria naquele
exato localPESADELO AMERICANO

Martin Luther King, líder da causa dos direitos civis nos Estados Unidos,
foi morto com um tiro de rifle num hotel de Memphis. A polícia caçou
um suspeito. O país entrava em ebulição.

O sonho radiante da conquista da liberdade, dos direitos civis reconhecidos
e da harmonia racial nos Estados Unidos transformou-se num amargo pesadelo na
tarde de 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee. Martin Luther King Jr.,
de 39 anos, pastor batista e herói da luta dos negros americanos por
igualdade, foi assassinado na varanda do segundo andar do Hotel Lorraine, onde
estava hospedado. Laureado com o prêmio Nobel da Paz de 1964, o “doutor
King”, como era conhecido, conversava com integrantes de sua comitiva,
pouco antes de sair para jantar, quando foi atingido no lado direito do pescoço
por um único e fatal projétil de alto calibre, disparado de uma
distância estimada entre 50 e 100 metros. A bala explodiu sua mandíbula
e o arremessou contra a parede interna do edifício. King ainda foi levado
para o hospital Saint Joseph, próximo dali. Menos de uma hora depois
do brutal atentado, foi declarado morto. A polícia de Memphis, que ainda
não havia identificado o atirador, ficou à procura de um homem
de cerca de 30 anos, vestindo terno e gravata pretos, visto por testemunhas
deixando as redondezas em um Mustang último modelo. O suspeito era branco.


Último discurso: ‘Eu vi a Terra Prometida’

A chocante notícia do assassinato de Luther King causou tumulto em Memphis
e levou o governador do Tennessee, Bufford Ellington, a convocar 4.000 homens
da Guarda Nacional e impor um toque de recolher aos 550.000 habitantes da cidade
– 40% dos quais eram negros. Nas horas seguintes ao crime, 60 pessoas foram presas
em Memphis. A agitação alastrou-se de imediato para outros 110 municípios
americanos, nos quais foram registrados confrontos de civis com policiais, incêndios
e saques a residências e comércios. O saldo de 39 mortos e mais de
2.500 feridos era o sombrio prenúncio de uma onda de violência racial
que preocupou sobremaneira o governo de Lyndon Johnson. Num pronunciamento de
televisão transmitido menos de uma hora depois do anúncio do assassinato,
o presidente conclamou os americanos a rejeitar a “violência cega”
que tirou a vida de King. “A divisão da população americana
e o desrespeito à lei não nos levarão a lugar algum”,
observava Johnson, que no passado já havia recebido o líder negro
no Salão Oval da Casa Branca.
Apelos semelhantes vieram de figuras eméritas e díspares da malha
social americana. Roy Wilkins, diretor-executivo da National Association for
the Advancement of Colored People (NAACP), maior e mais influente organização
de direitos civis da época, nos Estados Unidos, afirmou que King estaria
“ultrajado” com os tumultos. Robert F. Kennedy, ainda em campanha
para a indicação do Partido Democrata à eleição
presidencial, fez um discurso emocionado em Indianápolis, onde clamou
pela união popular. “Neste momento tão difícil, devemos
nos perguntar que tipo de nação somos e para que direção
queremos seguir. Podemos optar pelo ódio, pela polarização
entre brancos e negros; ou podemos fazer um esforço, como Martin Luther
King o fez, para entender e compreender, e para trocar a violência, essa
mancha de sangue que se espalhou por nossa terra, por um esforço de compaixão
e amor.” Até mesmo militantes mais radicais, como Charles “37X”
Kenyatta, do Harlem, e Ron Karenga, de Los Angeles, subiram em carros de som
a fim de dissipar a animosidade latente na comunidade negra. “Vamos nos
manter calmos pelo doutor”, diziam a seu público.


Fora do controle: policial ataca saqueador

Premonição –

Por ironia, foi justamente a tentativa
de manutenção da calma e da ordem que levou Martin Luther King de
volta a Memphis um dia antes de sua morte. Uma semana antes, o admirado ativista
dos direitos civis, que presidia a Conferência Sulista de Liderança
Cristã (SCLC, na sigla em inglês), estivera na cidade para liderar
uma marcha em apoio à greve de 1.300 funcionários negros da limpeza
pública por melhores condições de trabalho e salários
decentes – paralisação que já durava dois meses, sem concessões
do intransigente prefeito Henry Loeb. Trabalhadores de diversas áreas e
estudantes aderiram ao movimento, que, no início do mês de fevereiro
daquele ano, já havia reunido mais de 25.000 pessoas para um sermão
do próprio reverendo. Entretanto, no dia 28 de março, a selvageria
tomou conta da mobilização, que saiu por completo do controle dos
seus organizadores. Lojas do centro da cidade foram pilhadas e houve um violento
confronto entre os manifestantes e a polícia. Duzentas pessoas acabaram
presas, 62 ficaram feridas e um rapaz de 16 anos foi alvejado à morte.

De acordo com seus auxiliares, Martin Luther King, que planejava para o final
de abril um ato em Washington em favor dos negros e brancos assacados pela pobreza
no Sul do país – marco inicial de sua “Campanha das Pessoas Pobres”,
nova menina dos olhos do pastor de Atlanta -, chegou a pensar em não
voltar mais a Memphis depois dos distúrbios. Entretanto, decidiu que
era necessária uma nova aparição na cidade de modo a colocar
em prática seu discurso, mostrando à população local
que a não-violência era a melhor arma na luta pela justiça
econômica e social. “Memphis será uma Washington em miniatura”,
declarou Martin. Os dirigentes da SCLC dividiram-se, mas por fim aprovaram a
viagem de seu presidente ao Tennessee, esperando apagar a imagem negativa deixada
uma semana antes pelos grevistas.


Traslado do corpo: a caminho de Atlanta

O líder desembarcou em Memphis na manhã do dia 3 de fevereiro, num
vôo da Eastern Airlines cuja decolagem do aeroporto de Hartsfield, em Atlanta,
foi atrasada por conta de ameaças de uma bomba a bordo – um esquadrão
canino vasculhou as bagagens, sem nada encontrar. O reverendo se hospedou no quarto
306 do modesto Lorraine, de um casal de proprietários negros, localizado
próximo à famosa Rua Beale e ao Templo Mason, sede da Igreja de
Deus em Cristo e ponto de partida e de chegada das marchas pelos grevistas. Ali,
naquela noite, estava programado um sermão de Martin Luther King aos trabalhadores.
Uma tempestade atingiu Memphis ao escurecer, e um público frustrantemente
pequeno acompanhou o que seria o último discurso do ativista, em que parecia
estar pressentindo a própria morte. King mencionou o episódio da
bomba no aeroporto de Atlanta e assegurou manter a serenidade diante das ameaças
constantemente dirigidas a ele.

“Cheguei a Memphis e alguns já começaram a lançar
ameaças, ou comentar as ameaças que estão por aí,
ou o que alguns irmãos brancos doentes iriam fazer comigo”, começou
ele. Em seguida, o premonitório anúncio. “Bem, eu não
sei o que virá agora. Teremos dias difíceis pela frente. Mas isso
não importa para mim agora porque eu subi ao topo da montanha. Não
me importo mais. Como qualquer pessoa, eu gostaria de ter uma vida longa. A
longevidade é boa. Mas não estou mais preocupado com isso agora.
Quero apenas cumprir a vontade de Deus. E Ele permitiu que eu subisse a montanha.
E lá de cima eu enxerguei. Eu enxerguei a Terra Prometida. É provável
que eu não entre lá com vocês. Mas quero que vocês
saibam esta noite que nós, como um povo, chegaremos à Terra Prometida.
Por isso estou feliz esta noite. Nada me preocupa. Não temo nenhum homem!
Meus olhos viram a glória da vinda do Senhor!”


A visão de um assassino: foi desta janela que partiu o tiro fatal contra
o reverendo

Som de dinamite –

No dia seguinte, 04, Martin Luther King e outros
membros da SCLC, incluindo seu amigo e confidente Ralph W. Abernathy, passaram
o dia inteiro no quarto 306 do Lorraine, traçando estratégias para
uma marcha prevista para a semana seguinte. Encerrada a reunião, já
no final da tarde, o presidente tomou um banho e saiu do quarto por volta das
18 horas, vestindo terno preto e camisa branca. Seu motorista, Solomon Jones Jr.,
esperava a fim de levá-lo à casa do reverendo Samuel Kyles, onde
o pastor seria recebido para jantar. Antes de chegar ao Cadillac, entretanto,
King demorou-se cerca de três minutos na varanda do hotel, em frente ao
quarto. Um de seus auxiliares, Jesse Jackson, estava no térreo, ao lado
de um músico chamado Ben Branch, que se apresentaria à noite em
um evento no Templo Mason. Jackson apresentou Branch ao “doutor”, que
fez um pedido ao intérprete: “Quero que você cante a música
Precious Lord hoje. E cante bonito”. Também do térreo, o motorista
Jones aconselhou o chefe a colocar um sobretudo para proteger-se do frio.

Não houve tempo, porém. Um estampido parecido com uma explosão
de dinamite, segundo o relato de uma das testemunhas, fez todos os presentes
se jogarem no chão – exceto Martin Luther King, arremessado contra a
parede verde do hotel pelo impacto mortal do tiro de um rifle Remington calibre
30.06, aparentemente vindo da hospedaria do outro lado da rua. Com a parte inferior
da face desfigurada, a vítima caiu à beira da porta, no centro
de uma poça de sangue. Seus assistentes trouxeram toalhas para tentar
estancar o ferimento. Foi tudo em vão. A ambulância do Corpo de
Bombeiros demorou cerca de dez minutos e levou King ao Saint Joseph. Nada pôde
ser feito. Os médicos declararam sua morte às 19h05, segundo reportou
o porta-voz do hospital, Paul Hess.

Em Atlanta, Coretta King, mulher do líder negro, foi avisada do atentado
pelo prefeito de Atlanta, Ivan Allen Jr., que providenciou um avião para
levá-la a Memphis. Os dois já estavam no terminal de embarque
quando chegou a confirmação do óbito. Sem forças,
Coretta preferiu então retornar à modesta residência do
casal, no bairro negro de Vine City, em Atlanta – para onde Abigail McCarthy,
esposa do senador Eugene McCarthy e amiga de longa data de Coretta, também
se dirigiu assim que soube da infausta notícia. Telefonemas de condolências
não demoraram a aparecer. O senador Robert Kennedy foi um dos primeiros
a ligar, e prontificou-se a mandar um avião para transportar o corpo
de volta a Atlanta.


Jesse Jackson e King: uma conspiração?

O quarto 5 –

Enquanto isso, na cena do crime, investigadores
esquadrinhavam as redondezas, especialmente a hospedaria do outro lado da rua
Mulberry. Junto à janela do banheiro coletivo, a polícia encontrou
uma cápsula vazia. O que os investigadores acreditaram ser a arma do crime,
além de uma maleta e binóculos, foram recuperadas não muito
longe dali. A gerente do estabelecimento, Bessie Brewer, apontou o hóspede
que se registrou como John Willard como um provável suspeito. Além
de ter aparência física muito semelhante à de um homem visto
por testemunhas deixando o local rapidamente após os disparos, Willard
pediu especificamente na recepção para ficar no quarto 5 – o que
tem a melhor vista para o hotel Lorraine. Dois homens chegaram a ser detidos pouco
depois do crime, mas acabaram sendo liberados em seguida. O escritório
local do FBI, por meio do agente Robert Jensen, entrou nas investigações
do assassinato, a pedido do procurador-geral Ramsey Clark.

Na opinião de um dos auxiliares do líder ativista, os investigadores
não precisariam ir muito longe para encontrar o criminoso. Jesse Jackson,
um jovem de 27 anos da Carolina do Sul que integrava a diretoria da SCLC, não
se cansou de insinuar aos repórteres uma possível conspiração
oficial, com participação da polícia no atentado. Integrantes
da comitiva de King garantiram que, segundos depois do tiro, policiais armados
com rifles, metralhadoras e capacetes começaram a chegar à área
do hotel – oficiais bem diferentes daqueles que já estavam dando plantão
no local, fazendo a segurança de King na cidade. “Não precisamos
chamar a polícia. Ela estava aqui em segundos. Eles me perguntaram: ‘De
onde veio o tiro?’ Eu disse, ‘Atrás de vocês’. A polícia
estava vindo de onde veio o tiro.” Jackson e o resto do mundo anseiavam
pelo resultado das investigações, que apontariam o responsável
por assassinar não apenas Martin Luther King Jr., mas também um
pouco da esperança dos americanos.

A VOZ DA ALMA

O sonho da liberdade, o topo da montanha, a terra prometida: nos emocionantes
discursos de Martin Luther King, as imagens que inspiraram multidões
a seguir o caminho do reverendo.


Transe coletivo: diante do Memorial Lincoln, em 28 de agosto de 1963,
o pastor faz seu principal discurso, ‘Eu Tenho Um Sonho’

A coragem inabalável, a obsessão pela luta pacífica e o gosto
pelo diálogo franco não foram as únicas marcas da extraordinária
trajetória de Martin Luther King. Sua retórica notável, capaz
de mobilizar multidões emocionadas, foi o elemento-chave para divulgar
a causa dos direitos civis nos Estados Unidos. O dom de cativar e inspirar as
platéias – revelado e aperfeiçoado nos púlpitos dos templos
batistas do sul do país – transformou um movimento político-social
numa jornada de elevação espiritual para milhões de negros
americanos. A seguir, trechos selecionados de alguns dos discursos mais famosos
do pastor assassinado em Memphis:
***

“Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Geórgia,
voltem para a Louisiana, voltem para as favelas e guetos de nossas cidades do
norte sabendo que, de alguma forma, esta situação pode e vai ser
mudada. Não nos arrastemos pelo vale do desespero. Digo hoje a vocês,
meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento,
ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai se levantar e viver
o verdadeiro significado de sua crença: ‘Consideramos essas verdades
auto-evidentes: que todos os homens são criados iguais’. Eu tenho um
sonho de que um dia, nas montanhas da Geórgia, os filhos de antigos escravos
e os filhos de antigos donos de escravos serão capazes de sentarem-se
juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos
um dia viverão numa nação onde não serão
julgados pela cor de sua pele, mas sim pelo conteúdo de seu caráter
(…). Quando permitirmos que a liberdade ecoe, quando permitirmos que ela ecoe
em cada vila e cada aldeia, em cada estado e cada cidade, seremos capazes de
avançar rumo ao dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos,
judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar as mãos
e cantar as palavras da velha cantiga negra, ‘Enfim livres! Enfim livres! Graças
a Deus Todo-Poderoso, enfim estamos livres!’.”
(Eu Tenho Um Sonho, Washington, 28 de agosto de 1963)

“Que despertemos nesta noite com uma prontidão ainda maior. Ergamos-nos
com uma determinação ainda maior. E que ataquemos de frente estes
dias poderosos, estes dias marcados pelo desafio de transformar a América
no que ela deve ser. Temos a oportunidade de fazer da América uma nação
melhor. E quero agradecer a Deus, mais uma vez, por permitir que eu esteja aqui
com vocês (…). Bem, eu não sei o que virá agora. Teremos
dias difíceis pela frente. Mas isso não importa para mim agora
porque eu subi ao topo da montanha. Não me importo mais. Como qualquer
pessoa, eu gostaria de ter uma vida longa. A longevidade é boa. Mas não
estou mais preocupado com isso agora. Quero apenas cumprir a vontade de Deus.
E Ele permitiu que eu subisse a montanha. E lá de cima eu enxerguei.
Eu enxerguei a Terra Prometida. É provável que eu não entre
lá com vocês. Mas quero que vocês saibam esta noite que nós,
como um povo, chegaremos à Terra Prometida. Por isso estou feliz esta
noite. Nada me preocupa. Não temo nenhum homem! Meus olhos viram a glória
da vinda do Senhor!”
(O Sermão do Topo da Montanha, Memphis, 3 de abril de 1968)

“Há um grande dia adiante. O futuro está do nosso lado.
Por enquanto estamos no deserto. Mas a Terra Prometida está adiante.
Se não tivesse havido um Gandhi na Índia, com todos os seus nobres
seguidores, a Índia jamais seria livre. Não fosse Nkrumah e seus
seguidores em Gana, Gana ainda seria uma colônia britânica. Não
fossem os abolicionistas nos EUA, tanto os negros como os brancos, estaríamos
ainda hoje nas masmorras da escravidão. Em todos os períodos,
sempre existem aquelas pessoas que não se importam em ter suas cabeças
cortadas, que não se importam em ser perseguidas, discriminadas e agredidas,
porque elas sabem que a liberdade jamais é entregue de graça;
ela só vem através da persistente e contínua agitação
por parte daqueles que estão presos no sistema. Isso nos lembra do fato
de que uma nação ou povo pode se desvencilhar da opressão
sem violência (…). Deus, nosso gracioso Pai, ajude-nos a enxergar as
visões desta nova nação. Ajude-nos a segui-lo e a seguir
todas as suas obras neste mundo. De alguma forma descobriremos que fomos feitos
para vivermos juntos, como irmãos. E isso virá ainda nesta geração:
o dia em que todos os homens reconhecerem a paternidade de Deus e a irmandade
dos homens.”
(O Nascimento de Uma Nova Nação, Montgomery, 7 de abril
de 1957)

“Aceito o Prêmio Nobel da Paz num momento em que 22 milhões
de negros nos Estados Unidos estão envolvidos numa batalha criativa para
encerrar a longa noite da injustiça racial. Aceito este prêmio
em nome de um movimento de direitos civis que está avançando com
determinação e um majestoso desprezo pelos riscos e perigos de
estabelecer um reino de liberdade e um sistema de justiça. Estou ciente
de que uma pobreza debilitante e asfixiante aflige meu povo e o acorrenta ao
degrau mais baixo da escada econômica. Portanto, devo perguntar por que
este prêmio está sendo concedido a um movimento que é comprometido
com uma luta incessante; a um movimento que não conquistou a própria
paz e fraternidade que é a essência do Prêmio Nobel. Depois
de pensar a respeito, concluí que este prêmio que recebo em nome
desse movimento é um reconhecimento profundo de que a não-violência
é a resposta à questão moral e política crucial
de nosso tempo: a necessidade do homem superar a opressão e a violência
sem recorrer à violência e à opressão (…). Ainda
creio que superaremos tudo isso. Essa fé nos dá a coragem de enfrentar
as incertezas do futuro. Dá forças aos nossos pés cansados
enquanto continuamos nossa marcha rumo à cidade da liberdade. Quando
nossos dias tornarem-se lúgubres e cobertos por nuvens e nossas noites
tornarem-se mais escuras que mil meias-noites, saberemos que estamos vivendo
no tumulto criativo de uma civilização genuína lutando
para nascer.”
(Cerimônia de entrega do Nobel da Paz, Oslo, 10 de dezembro de
1964)

“Infelizmente, a História transforma algumas pessoas em oprimidas
e outras em opressoras. E há três formas pelas quais os indivíduos
oprimidos podem lidar com a opressão. Uma delas é se levantar
contra os opressores com violência física e ódio corrosivo.
Mas este não é o caminho. Pois o perigo e a fragilidade deste
método são sua futilidade. A violência cria mais problemas
sociais do que soluções. Como disse várias vezes, se o
negro sucumbir à tentação de usar a violência em
sua batalha, as gerações que ainda não nasceram receberão
uma longa e desoladora noite de amargura, e nosso principal legado ao futuro
será um eterno reinado de caos sem sentido. A violência não
é o caminho (…). Então nesta manhã, enquanto olho em
seus olhos e nos olhos de todos os meus irmãos do Alabama e de toda a
América e do mundo, digo a vocês: ‘Eu te amo. Prefiro morrer a
odiá-lo’. Sou tolo o bastante para crer que, através do poder
deste amor, até os homens mais inflexíveis serão transformados.
E aí estaremos no reino de Deus. Poderemos nos matricular na universidade
da vida eterna, pois teremos o poder de amar nossos inimigos, abençoar
as pessoas que praguejaram contra nós, até decidirmos ser bons
com as pessoas que nos odiavam, até rezarmos pelas pessoas que nos usaram.”
(Amar seus Inimigos, Montgomery, 17 de novembro de 1957)

TRÊS SÉCULOS DE TREVAS


Mercado de escravos na capital: Lincoln via o comércio de negros de
seu gabinete no Capitólio enquanto ainda era congressista

Desde a chegada dos pioneiros africanos, em 1619, os negros da América
enfrentaram uma contenda laboriosa em busca de direitos iguais, passando pela
escravidão e pela segregação.

Na época, sem uma de suas figuras mais atuantes, o movimento negro nos
Estados Unidos seguiu sua dolorosa cruzada para estreitar a fenda racial que
se abrira paulatinamente ao longo de mais de 300 anos de História, desde
que os primeiros africanos chegaram aos Estados Unidos, em 1619. O Ato dos Direitos
Civis, aprovado em 1964, atenderam a muitas das reivindicações
das minorias americanas. Era evidente, porém, que mais de três
séculos de discriminação não poderiam ser reparados
por um único documento. Por isso, os esforços pela alteração
não apenas das leis, como também da mentalidade e da cultura da
América, precisariam ser mantidos por uma nova geração
de líderes, de maneira que oportunidades iguais se apresentassem tanto
a negros como a brancos.


Brancos na frente, negros no fundo: ônibus segregado em Atlanta,
em abril de 1956

Em 1619, os pioneiros africanos desembarcaram na Virgínia como servos por
contrato – status semelhante ao dos trabalhadores ingleses, que também
empenharam anos de trabalho para cobrir os custos da passagem à América.
Pouco tempo depois, entretanto, a escravidão, ainda que não regulamentada,
já se verificava em muitos estados do país. A cultura do tabaco
no Sul dos EUA se alimentou do tráfico negreiro para compor sua mão-de-obra
por décadas a fio; como resultado, o censo americano de 1860 registrava
uma população de 4 milhões de escravos nos quinze estados
em que a escravidão era legal. Nesses estados, a população
total era de 12 milhões de pessoas. Cerca de 500.000 negros viviam livres
no país naquele tempo.

As vozes abolicionistas, que timidamente apareceram nos EUA no século
XVIII, ganharam força com a eleição à presidência
de Abraham Lincoln, opositor declarado da escravidão, em 1860. Convencidos
de que seu modo de vida estava ameaçado, os estados do Sul se separaram
da União e detonaram a Guerra Civil Americana. Em 1863, durante o conflito,
Lincoln assinou a Proclamação da Emancipação, libertando
os escravos dos estados confederados e proibindo a escravidão em todo
o país. Mas era apenas o começo da jornada.


Medo nas ruas: Ku Klux Klan no Alabama

Segregação institucionalizada –

No fim do século
XIX, os estados do Sul, afetados economicamente com o fim da escravidão,
promulgaram as chamadas leis Jim Crow, uma série de determinações
para legitimar a discriminação racial e dificultar o acesso dos
negros ao voto. Legislações semelhantes apareceram por todo o país,
e a segregação passou a ser uma realidade nos Estados Unidos. Prédios
e transporte públicos, escolas, restaurantes, cinemas e até cadeias
tinham áreas separadas para brancos e negros – a dos negros, via de regra,
em estados deploráveis. Casamentos entre brancos e negros ou seu descendentes
eram proibidos em diversos estados, para evitar a miscigenação.
Na Carolina do Norte, nem mesmo os livros da biblioteca poderiam ser consultados
por negros e brancos – se o primeiro a retirá-lo fosse um branco, apenas
os brancos teriam acesso ao volume.


Atleta pioneiro: Jackie Robinson em 1947

Entre os anos de 1916 e 1930, uma onda de migração negra do sul
para o norte, meio-oeste e oeste do país – regiões onde a tolerância
e as oportunidades eram maiores – deu início ao movimento pela igualdade
de direitos. Entretanto, apesar de alguns pioneiros terem ultrapassado a barreira
racial (como o atleta Jackie Robinson, craque do beisebol, que em 1947 tornou-se
o primeiro jogador negro nas ligas maiores da modalidade preferida dos americanos,
colocando um ponto final na segregação que durou 60 anos), apenas
a partir da década passada é que os resultados coletivos começaram
a aparecer. O boicote de Montgomery e a marcha em Washington, ambos marcados
pela não-violência e pela tentativa de integração
racial pregada por Martin Luther King, tiveram grande repercussão – e,
mais importante ainda, resultados práticos. Contudo, alguns líderes
e grupos, notadamente Malcolm X (1925-1965) e o recém-formado Black Power,
advogaram pela ruptura total entre a América negra e a branca, utilizando-se
da violência se for preciso. A grande incógnita seria o caminho
que seria tomado pelos herdeiros de King – se a rota da não-violência
trilhada pelo reverendo ou uma estrada muito mais sinuosa, manchada de sangue.

Fonte: Revista Veja

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