Home EstudosEstudos: Música MPB – Música Popular Brasileira

MPB – Música Popular Brasileira

by Lucas Gomes

Elementos exóticos

Ao lado de todo esse movimento histórico em que a música artística se manifestava, no Brasil, mais por uma fatalidade individualista ou fantasia de elites que por uma razão de ser social e étnica, principiou tomando corpo no século XIX uma outra corrente musical, sem força histórica ainda, mas provida de muito maior função humana: a música popular.

Não sabemos nada de técnico sobre a música popular dos três séculos coloniais. Um povo misturado, porém ainda não amalgamado, parava nas possessões que Portugal mantinha por aqui. Esse povo feito de portugueses, africanos, ameríndios, espanhóis, trazia junto com as falas dele as cantigas e danças que a Colônia escutava. E foi da fusão destas que o nosso canto popular tirou sua base técnica tradicional.

Já que o tema é música popular brasileira, comecemos pela curiosidade natural de conhecer um pouco da história de suas origens.

A nossa música, de acordo com seus estudiosos, aparece, juntamente com os primeiros centros urbanos, no Brasil colonial do século XVIII, por volta de 1730, quando Salvador e Rio de Janeiro despontavam como as cidades mais progressistas da Colônia. Mas é só a partir do final do século XIX que se configurou a síntese da nossa expressão musical urbana através do hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses.

O cateretê, o lundu e habanera são os ritmos de maior significação na formação da cultura musical brasileira. A modinha e o maxixe, dois gêneros muito populares no início deste século e, posteriormente, o samba, originaram-se, entre outras coisas, dos três ritmos já citados.

Nota: A habanera, embora cubano de origem, é um ritmo-dança que chegou ao Brasìl através de Portugal depois de se propagar por toda a Europa. Da sua fusão com o tango brasileiro, é que se originou o moxixe; considerado o primeiro gênero musicat genuinamente brasileìro após o grande ciclo das migrações para o nosso país.

A melhor forma de entendermos não só a importância lúdica da música, ou seja, o que ela representa para o povo como diversão e lazer, como, principalmente, a sua função social e política nos diferentes momentos históricos por que passam as sociedades, é sondando as suas origens.

No Brasil, em todos esses momentos, a música marcou sua presença, registrando fatos da maior importância sociológica, destacando tendências e transformações quanto aos ritmos e estilos musicais, permitindo-nos, inclusive, conhecer melhor a sociedade da época.

O cateretê e o cantochão gregoriano

Comecemos pelo mais primitivo dos nossos sons: o cateretê. Trata-se de música e dança de origem tupi, posteriormente influenciada pela coreografia dos negros sudaneses e pelos processos africanos de dança. Pode-se dizer com segurança que do cateretê praticado pelos indígenas muito pouco foi registrado pela historiografia musical brasileira. Não houve tempo. Como diz Mário de Andrade, logo chegam os jesuítas e, com eles, o cantochão gregoriano: melodia sem acompanhamento em que eram cantados os textos da liturgia católica. Só mais tarde, por volta de 1650 é que vamos encontrar os primeiros instrumentos (cravo, órgão e fagote) acompanhando a linha melódica desse canto.

A partir desse momento, fundem-se cateretê e cantochão: obra dos jesuítas, com o deliberado objetivo político de “catequizar” o índio brasileiro. A conseqüência, como sabemos, seria o início de um verdadeiro assassinato cultural. A música torna-se, nesse momento, um eficiente instrumento a serviço da política colonialista portuguesa.

Vejamos alguns episódios da catequese jesuítica e a importância social da música nesse processo.

O padre Aspilcueta Navarro (?-1582), por exemplo, foi um dos pioneiros nessa prática. Além de ter sido o primeiro jesuíta a aprender o idioma indígena, ele passou a ensinar os curumins a cantarem orações religiosas em substituição às canções indígenas, cuja coreografia era extremamente sensual.

Enfileirados (e não mais em círculo, como na tradição indígena do cateretê ) e muito bem-comportados, os curumins cantavam sempre em frente às igrejas para atrair os fiéis. O objetivo era, se possível, lotar a igreja durante as missas. Tem início, nesse momento, a paulatina destruição do indígena mediante o aniquilamento da sua cultura: substituir suas danças-rituais, sua música, suas batidas de pés no chão, seus volteios de corpo e seu canto coletivo pelo cantochão gregoriano era determinar também sua extinção. Tudo isso significaria, futuramente, a própria perda da sua identidade.

A música sacra dos jesuítas substituiu a música indígena até nas aldeias. Em lugar de flautas de ossos, trombetas de crânios humanos e animais, e chocalhos de cabaças, surgiam, então, o cravo, o órgão e o fagote, produtos da cultura musical européia.

A sonoridade do canto gregoriano, trazido à Colônia pelos jesuítas; sensibilizava o indígena. As tribos (ou partes delas) alcançadas pelos catequizadores ficavam aglomeradas em forma de aldeamentos, o que facilitou o acesso jesuítico e a conseqüente dilapidação dos costumes culturais delas que não interessassem à Igreja. Entre estes, incluem-se a música, a dança e o próprio sistema de crenças, ou seja, o culto a diversas coisas, como a chuva, o Sol, a Lua, entre outras. O objetivo era fazer o indígena acreditar apenas no Deus da Igreja Católica.

A música transforma-se em mais um produto religioso, instrumento de manipulação política da Igreja a serviço do expansionismo português.

O Lundu

Mas, segundo Nina Rodrigues, ainda no século XV, exatamente em 1549 chegava à Colônia o negro vindo da África e, com ele, sua música. Formava-se no Brasil, nesse momento, uma mistura de três povos: o indígena, o branco colonizador e o negro. Três culturas diferentes que seriam a base da cultura brasileira.

É com os africanos que o lundu chega ao nosso país, sofrendo, logo depois, alterações através dos contatos com ritmos indígenas como o curura e o cateretê, e tornando-se ritmo afro-brasileiro. Trata-se de gênero musical e dança de par solto que, como diz Aurélio Buarque de Holanda, teve seu esplendor no Brasil em fins do século XVIII e começos do século XIX. Dos meados do século XIX em diante, canção solista, influenciados pelo lirismo da modinha e freqüentemente de caráter cômico.

O autor Gregório de Matos Guerra (1623-1696), apelidado Homero do Lundu, faria, em 1648, os primeiros registros desta dança. Simples batuque negro, com uma coreografia extremamente sensual e insinuante o lundu saiu das senzalas e das ruas e entrou, nos palácios para tornar-se o lundu de salão, a dança preferida dos segmentos burgueses e aristocratizados da sociedade.

Todavia, nessa época, por suas origens, não gozava, pelo menos formalmente, do prestígio e da legitimidade da cultura oficial, ou seja, da cultura burguesa. Mas isso, repita-se, apenas formalmente, e assim mesmo por pressões da Igreja e de um reduzido número de intelectuais que a consideravam escandalosa, verdadeiro atentado ao pudor e aos bons costumes da família.

As palavras do escritor português radicado no Brasil, Pinto de Carvalho (1823-1879), retratam de forma lapidar o estigma que sempre acompanhou o lundu, mesmo depois de legitimado parcialmente pela cultura burguesa. Essa dança, segundo ele, atingiu o cúmulo da indecência, o sublime do canalhismo, o que jamais impediu que o bailassem nas salas de primor.

O alemão Robert Avé-Lallemant (1802-1865), viajando em 1859, pelo Norte e Nordeste do Brasil; registrou um momento importantíssimo para entendermos a função econômica da música negra, e, ao mesmo tempo, as contradições da Igreja quando estão em jogo os seus interesses. Diz ele que, em benefício das Igreja, como acontece sempre no Brasil, nas noites dessas festas e depois delas, realizou-se um leilão, em que o leiloeiro, para atrair e depenar muita gente, fazia-se de engraçado. Entre cada pregação, uma música estridente tocava alguns trechos de fados e lundus, essa desordenada tarantela de negros, na qual cada um faz todos os trejeitos e movimentos possíveis para celebrar a festa da Igreja Católica.

Com sapateados, batuques, remelexos dos quadris e a sensual umbigada, o Lundu agradava a todos os segmentos da sociedade. Mesmo os mais radicais, como a Igreja, que a consideravam indecente, imoral e escandalosa, tinham seus momentos de condescendência para com a dança. Essa “condescendência”, segundo Mário de Andrade mascarava, sem dúvida, um desejo implícito de desfrutar a sensualidade dos momentos harmônicos e insinuantes das cabrochas quase negras, que dançavam o lundu ao som da cítara, da viola ou do violão.

No início da década de 1820, essa dança se transformou e passou a ser chamada de lundu-canção, nome atribuído pela fina aristocracia da época que, assim, se apropriou de mais um produto lúdico-cultural do escravo. Ao mesmo tempo em que aumentou sua importância social, em face da apropriação pelas classes superiores, justamente por isso entrou num processo contínuo de deformação (ou simplesmente de transformação) estética. Ele perdeu “o elemento de natureza e rude”, principalmente características dos produtos da cultura popular, no entender do pensador e musicólogo alemão Theodor W. Adorno. Isto ocorre todas as vezes em que há o choque entre duas ou mais culturas, fenômeno definido pelos antropólogos como “fricção cultural”.

Vê-se, portanto, que o lundu não escapou à regra: perdeu seus traços vitais, aqueles mesmos traços que encantaram e levaram o antropólogo Curt Sachs, em 1886, a classificá-lo no grupo coreográfico das “danças convulsivas” praticadas em todo o mundo pelos povos primitivos.

Esta dança não perdeu apenas seus traços vitais, mais, ainda a própria identidade com a categoria social que a produziu: o negro escravo. Quando saiu das rua e entrou nos palácios, como já vimos, sua sobrevivência já estava comprometida. Poderia aparecer outro lundu, é claro, como realmente apareceu, mas com as transformações estéticas produzidas pela aristocracia. A cítara, a viola e o violão, tocados nas ruas para os lunduzeiros dançarem, cederam lugar ao piano nos salões imperiais. O lundu-dança de rua, praticado por negros, mulatos, ladinos, boçais e crioulos, estava proibido: era considerado libidinoso, indecente e escandaloso. Jamais seria, para a sociedade da época, erótico, sensual e harmônico, como o descrevem Mário de Andrade e Nina Rodrigues.

Fonte: Iniciação à Música Popular Brasileira. Waldenyr Caldas, Editora Ática, 1985, São Paulo – SP

Posts Relacionados