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A margem imóvel do rio, de Luiz Antonio de Assis Brasil

by Lucas Gomes

A margem imóvel do rio

, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um
dos romances históricos em que, ao invés de sair do Brasil o autor
entra nele como em uma geografia misteriosa.

O texto inteiro justifica o início (ou reinício) contido no último
parágrafo do livro. Haverá, antes dele, dois outros igualmente
marcantes: os que estão no último parágrafo do prólogo
e no antepenúltimo parágrafo do epílogo.

São 52 capítulos breves. Assim, são três passos
que resolverão a vida do protagonista. Vejamos.

O primeiro passo tem como antecedentes quinze capítulos – será
o mais grave; nele se encontra, ainda, a prudência (notoriamente enganosa
a partir de certa altura da história) e o conflito (surgido nas tentativas
que são cada capítulo) presentes na tarefa que o protagonista
se deu: a de “organizar a alma” – e, após iniciado,
tomará trinta e cinco capítulos e meio, até o segundo passo,
e o terceiro. Entre os três, há mistério – o mistério
que é possível a todos nós e se apreende no exaurir da
identidade que serve de prisão à própria vida –,
ele está no protagonista, mas também nos ambientes que se lhe
escolhem para corresponder. Nesse sentido, o ápice da narrativa foi deixado
na seguinte passagem, onde o autor combina as almas de todas as mulheres da
história, e, por arranjada coincidência, todos os desafios de insanidade
e não:

Dado que criados não tocam piano, vivia mais alguém na casa.
Ele deixou-se dominar pela idéia de ir ver. Levantou-se e empunhou o
trinco da porta. Abriu-a. O perfil de uma jovem mulher ao piano repetia-se no
espelho oval. O rosto desvelava-se pela luz das duas velas nos castiçais
aplicados ao instrumento. As velas iluminavam também a partitura. ‘Essa
jovem não mostra uma beleza na obrigatoriedade geral de serem belas,
e que tanto exigimos das mulheres.’ Era bela por ser única, o queixo
talvez um pouco projetado para a frente, ou o nariz pequeno demais. Toda essa
assimetria ressaltava pela exatidão dos cabelos penteados em bandós
idênticos. Ele procurou uma cadeira na penumbra. Era justo no momento
em que a jovem feria o acorde final, o qual ficou ressoando pela força
dos pedais. A seguir ela abriu outro livro de partituras e o pôs na estante
do piano. Ele pôde ver que as mãos eram brancas (…) Ela agora
começa o prelúdio A gota d´água, em que o intérprete
martela com obsessão uma única tecla com a mão esquerda,
enquanto a direita realiza uma fantasia de todas notas lentas.

Destaca-se também a linguagem do narrador – que não é
brasileira, mas algo de “entre caminho” desta e a portuguesa. Numa
leitura apressada, o conjunto pode sugerir um quadro inofensivo. Mas o final
e o que ganha e perde o protagonista provam claramente o contrário –
quando, justificados, tangenciam o preço da redenção.

Análise

O silêncio, mesmo ao meio-dia, mesmo no momento da maior lassidão
do estio, o silêncio zumbe sobre as margens imóveis dos rios
.

É com essa epígrafe, do escritor latino Horácio, que se
inicia A margem imóvel do rio. O silêncio é também
tema do poema que fecha o livro, este da autoria do poeta norte-americano Thomas
Hood: “Onde o som não acontece existe um silêncio, /
E existe um silêncio onde som não pode ser – / No túmulo
frio, sob o mais profundo mar, / Ou no vasto deserto onde vida não há
”.
A idéia subjacente a essas citações, antes mesmo de iniciar
o enredo propriamente dito, e ao encerrá-lo, pode-se dizer que remete
ao silêncio (ou a falta dele) em que a personagem principal do livro é
condenada a viver, acometida de uma doença que lhe atormenta os ouvidos
– e cujos desdobramentos serão aprofundados no decorrer da narrativa.
Limita-se aqui a dizer que as margens da história e da literatura, em
A margem imóvel do rio, encontram-se igualmente em constante conflito
de silêncios e ruídos. As margens da história e da literatura
são fixas, se pensarmos que elas mantêm suas características
distintas, vistas como ramos do saber; porém, como um rio, levam adiante
o ruído de seu próprio movimento pelo fato de seu entrecruzamento.
No romance A margem imóvel do rio, a história é
imóvel; está à margem no questionamento da veracidade das
lembranças de um historiador; o que move e flui é a trajetória
pessoal das personagens, que silenciam e desaparecem como um rio; está
na afirmação do homem, elemento ativo no movimento (ou na imobilidade)
da história.

Assim exposta, a relação entre história e literatura na
narrativa em questão é apresentada explicitamente a partir dos
dois primeiros parágrafos do primeiro capítulo, onde se insere
a figura do segundo imperador do Brasil, Dom Pedro II:

Os jornais humorísticos do século XIX informam que Sua Majestade
o Sr. D. Pedro II, Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, protetor
das Ciências e das Artes, também chamado pelo vulgo de Pedro Banana,
tinha o curioso hábito de repetir “já sei, já sei”.
Falavam-lhe muitas e variadas coisas e, para defender-se do tédio, ele
abreviava as conversas. Usava solenes barbas em leque, muito branquinhas, e
isso era o bastante para que não insistissem. Tinha horror às
disputas, mas suas decisões eram categóricas. Uma vez implicou
com o Barão do Rio Branco e não o incluiu na comitiva que iria
à Exposição da Filadélfia. “Assim o quero”,
disse, e a História ainda aguarda as razões. Na Exposição,
Sua Majestade proferiu a interessante frase “to be or not to be”
no bocal do aparelho inventado por Mr. Bell, e foi ouvido na outra ponta do
fio.
(ASSIS BRASIL, 2003, p. 11)

Além dessa descrição de D. Pedro II, a capa e a contracapa
do livro estampam duas imagens do imperador, como se ali estivessem para ilustrar
e reforçar o que diz o texto. A par dessa apropriação do
universo histórico pela literatura, é preciso considerar ainda
a relação da ficção com a realidade exterior de
existência comprovada, histórica, que Assis Brasil recria. Efetivamente,
a apresentação de D. Pedro II no livro provoca um jogo intertextual
entre a personagem da história – quiçá a personagem do
Brasil mais estudada do século XIX – e a personagem da ficção,
favorecendo a construção do texto literário aproximado
daquela do referente histórico. Destacam-se também as informações
sobre D. Pedro II buscadas em “jornais humorísticos do século
XIX”, resgatando na ficção o modo como o discurso histórico
retratava o imperador do Brasil, com o narrador emitindo um juízo sobre
D. Pedro II: de acordo com o narrador, o imperador foi uma “necessidade
romântica” do povo brasileiro, já que não houve por
aqui hábitos de nobreza da Idade Média, ao compararmos com a Europa.

Falou-se aqui em D. Pedro II e nas informações contidas na obra
em relação a tal personagem da história, e já é
o caso de perguntar: é A margem imóvel do rio
um romance histórico? Esta obra, seguindo os passos do livro antecessor,
O pintor de retratos, os elementos históricos não dominam
a cena; não há uma descrição de hábitos e
vestuários; os aspectos históricos, incluindo a descrição
de D. Pedro II, são trabalhados literariamente. Mais importante do que
os fatos e os lugares históricos são os dramas humanos por que
passam suas personagens. Assis Brasil consegue fazer uma ficção
em que os elementos históricos estão antes implícitos em
obras que primam pela naturalidade. O segredo de sua literatura talvez seja
entregar-se aos fatos narrados com uma cuidadosa contemporaneidade e não
como alguém que, preso ao presente, olha um tempo perdido e só
o enxerga por suas marcas mais salientes. A chave do bom romance histórico,
quer me parecer, não está no uso de linguagens e eventos do passado,
mas em conseguir capturar um ritmo condizente com o momento em que se passam
as ações. Oque Assis Brasil realiza em A margem imóvel
do rio
é o que pode se denominar de novo romance histórico,
no qual o fato histórico é utilizado para ir de encontro à
visão legitimada das versões oficiais da história, pois
se torna inviável obter uma única visão sobre o passado.

Tendo em vista isso, pode-se afirmar que A margem imóvel do rio
desenvolve-se nos parâmetros do chamado novo romance histórico,
já que o livro problematiza a impossibilidade de se chegar a um real
conhecimento do passado, a considerar os múltiplos pontos de vista sobre
qualquer fato histórico.

O enredo da obra delineia-se já no primeiro capitulo, ao mostrar o mordomo-mor
da Casa Imperial a procurar documentos sobre uma viagem que D. Pedro II e a
imperatriz D. Teresa Cristina, bem como toda a comitiva que acompanhava os imperadores
nessas ocasiões, realizaram ao Rio Grande do Sul. O mordomo procurava
referências a respeito de um estancieiro gaúcho chamado Francisco
da Silva, que hospedara os monarcas na viagem feita vinte e um anos antes. O
estancieiro enviara uma petição para o cumprimento de uma promessa
que o imperador teria feito na ocasião da visita à sua propriedade,
que seria a de lhe ser concedido o título nobiliárquico de Barão
da Serra Grande. D. Pedro II não lembrava mais do estancieiro e mostrava
certo descaso em relação à província gaúcha:
O Mordomo vinha-lhe agora falar sobre o Sul, esse território
gélido, meio castelhano, bárbaro, lugar de guerras e sedições,
pouco brasileiro
”.

Em nota final, o autor informa que ao unir a obra com O pintor de retratos
está “o olhar estrangeiro sobre o pampa”, sendo que em livros
anteriores, como na obra de estréia Um quarto de légua em
quadro
, e também em As virtudes da casa, Videiras de
cristal
e O pintor de retratos, Assis Brasil criara personagens
originários da Europa de passagem pelo Rio Grande do Sul. No entanto,
em A margem imóvel do rio o estranhamento diante da terra gaúcha
se evidencia em duas personagens provenientes do próprio país:
D. Pedro II e o protagonista do livro, o Historiador, cujas trajetórias
servem ao autor para descrever o Rio Grande do Sul tal como era visto pelo resto
do Brasil, ou seja, o território que D. Pedro II comenta no discurso
indireto e que vem corroborar as descrições que faziam os visitantes
ao Sul no século XIX. Trata-se de viajantes que observaram e registraram
sobre a realidade sul-riograndense, anotando as peculiaridades dos aspectos
físicos e dos hábitos gaúchos do século XIX.

Em A margem imóvel do rio, o olhar estrangeiro, isto é,
de alguém que não pertence ao lugar que está sendo visitado,
contribui para estabelecer um estranhamento naquilo que os nativos – na
obra, o povo gaúcho – julgam estar acostumados.

Na seqüência, ao perceber que o imperador não lembrara da
promessa, nem do estancieiro, o mordomo retorna ao seu gabinete, na intenção
de procurar uma solução para o caso: “Lembrou-se, numa
inspiração, do Cronista da Casa Imperial. Ele acompanhara D. Pedro
ao Sul. Mandou chamá-lo ao Paço
”. A lembrança
do mordomo de chamar o funcionário imperial apenas por uma inspiração
leva a pensar que o ofício de cronista deveria estar em segundo plano
no Império. Além disso, é evidente que o cronista não
se considerava como tal, mas sim como um historiador, o que reforça a
necessidade de se esboçar a diferença entre um e outro na época
em que se desenvolve o enredo da obra.

Note-se que o objetivo mais importante é tentar entender a idéia
de história que vai sendo proposta em A margem imóvel do rio.
Nessa perspectiva, leva-se em
conta a época em que se desenrola a obra – o fim do século
XIX –, quando a historiografia brasileira encontrava-se sob a influência
do positivismo.

A diferenciação entre o cronista e o historiador é particularmente
importante para desvendar o sentido da busca do protagonista pelo estancieiro
gaúcho, pois, enquanto cronista, sua função seria apenas
a de fazer um inventário dos casos e acontecimentos singulares, sem nenhuma
pretensão à objetividade dos fatos, ao contrário da sua
posição como historiador, em que deveria ter a certeza de quem
seria o verdadeiro Francisco da Silva.

O que Assis Brasil realiza em A margem imóvel do rio não
é um tratamento hostil contra a história, mas sim, ele mostrará,
através do modo de elaboração do enredo, um historiador
envolto com as (im)possibilidades da escrita da história; tentará
provar ainda que essa história é feita de lembranças, que
dependerão da fidelidade da memória nesse processo de anamnese,
cuja simulação do narrador ao lembrar de coisas esquecidas nada
mais fará do que chamar a atenção sobre elas. Dessa forma,
a trajetória do historiador em busca de um passado que deseja lembrar,
bem como a variação do ponto de vista no destino dos personagens
do livro, são também a expressão da impossibilidade da
certeza sobre os fatos tidos convencionalmente como históricos. Tudo
dependerá da interpretação de alguém em determinado
momento. O mito, quando desfeito logo será substituído por outro
de ocasião, referendado pelo Historiador da hora.

Assim, nas frases do protagonista e nos juízos emitidos pelo narrador,
perpassa o questionamento de que a história é construída
pelo homem. É o que se percebe quando, ainda no primeiro capítulo,
o Historiador é informado de maneira rude pelo mordomo de que, ao consultar
o seu caderno de notas, ele deveria ter a obrigação de saber o
destino do estancieiro, ao que o outro responde: “– Se fosse
assunto digno da História”
. A afirmação é
contundente: ciente de que é portador do caderno de notas onde estão
os dados da viagem ao Sul, o Historiador percebe aos poucos que o passado é
construído de acordo com as expectativas e vivências de quem o
escreve. Com efeito, A margem imóvel do rio é constituído
a partir de uma concepção da história referendada pelo
historiador, que a reconstitui de forma incompleta, pois os fatos são
sempre passíveis de revisão. “Os objetos permaneciam
tais como os deixara ontem à noite, quando estivera anotando, à
margem das páginas, os erros da História do Brasil, de Robert
Southey. Historiadores passam metade de seu tempo a corrigir os colegas”
.
A menção do livro de história sendo corrigido pelo protagonista
pode ser vista como uma referência irônica ao fato de o próprio
Historiador não estar convicto dos erros e acertos de seu caderno de
notas. Entretanto, não se percebe se a frase referente a os historiadores
corrigirem seus colegas parte do narrador da obra ou do protagonista, ambigüidade
que reforça a ficcionalidade impressa na historicização
da narrativa. No parágrafo anterior, a observação de que
o Historiador organizava seus pensamentos em frases acabadas e corretas, a exemplo
da frase citada, reforça a idéia de tais assertivas fazerem parte
do pensamento da personagem. Em outras ocasiões, as observações
do Historiador são enunciadas entre aspas, seguidas geralmente de comentários
irônicos do narrador: ”Ele nem precisava de luz, conhecia cada palmo
por onde andava. ‘Todas as pessoas deveriam nascer e morrer na mesma casa’.
Melhor ainda: ‘Todas as pessoas deveriam ter o direito de nascer,
viver e morrer na mesma casa’. Eis um juízo tão extravagante
quanto inútil”
.

Ainda no segundo capítulo, há a verificação de
que o historiador pretendia escrever ele próprio um livro de história,
que seria chamado História do Império por
um contemporâneo dos fatos. Nos cadernos de notas estavam as anotações
das viagens e relatos da vida do Imperador: no caderno de número 17 se
encontrava a descrição da visita de D. Pedro II ao Sul. O protagonista
teria de consultá-lo para descobrir a localização do estancieiro
Francisco da Silva, sendo que as lembranças do Historiador escritas no
caderno revelam o retrato de uma província fria e muito diferente do
resto do Império, descrita na seguinte passagem:

[O Historiador] Iniciou a leitura. Ali estava o registro do périplo
de dois meses. Ao segurar o caderno ele sentia de novo o frio sulino. Nas casas
de estância em que os acolhiam, a friagem, encarcerada entre as grossas
paredes, era ainda mais pavorosa. Não havia lareiras. Ele não
sentia as pontas dos dedos. À noite, os pés congelavam, mesmo
sob várias mantas de lã.
(MIR, p. 18-19)

Mais adiante, é contemplado o contexto sulino da época e as sensações
do Historiador ao reler o caderno de notas:

Reviveu saraus tediosos, coronéis bêbados, belas damas, negociantes
estúpidos, estancieiros avaros ou pródigos, padres que andavam
de mula. Reviveu o pampa, o gado solto à sua própria conta, os
ágeis cavaleiros a quem os poetas, esses imaginosos, chamavam de ‘centauros
dos pampas’.Era aterrador
(MIR, p. 25-26).

As passagens anteriores equivalem à idéia de como a província
gaúcha era vista como uma unidade cultural e geográfica à
parte do resto do Brasil. O olhar do estrangeiro sobre o pampa sulino revela
a temperatura fria e hostil para quem está acostumado ao calor tropical
do resto do país, o que acentua o estranhamento diante das adversidades
climáticas do sul. A narração desse estranhamento, sua
simplicidade quase poética, é tocante: “Ao descerem
os paralelos geográficos rumo ao Sul, mais o tempo esfriava. Em frente
à foz do Mampituba foi preciso tirar da mala a casaca de lã. Era
um frio não completamente meteorológico, mas algo mais amargo,
como um desamparo e um afastamento“
(MIR, p. 59).

Uma figura importante no desenvolvimento da obra é Cecília, a
empregada do Historiador, cuja morte por febre amarela desencadeia a sua decisão
de aceitar a
viagem ao Sul do Brasil à procura do estancieiro gaúcho. No prólogo
do livro encontra-se a descrição do velório de Cecília,
antecipando os acontecimentos que ocorrerão a partir do capitulo 14.
De início, é de se destacar a linguagem, curta, seca, como em
O pintor de retratos. Além disso, ainda do ponto de vista estrutural,
a obra assume de imediato a postura de um narrador onisciente, premonitor, que
tem acesso até a acontecimentos futuros, como uma epidemia de febre amarela
que se espalharia nos anos seguintes. Assim, o prólogo se encerra com
a previsão de que o velório da empregada seria o início
para a preparação da viagem ao Sul: “A morte de Cecília
era o sinal: aceitaria a missão que lhe davam. Muito ele desconhecia
as origens daquela incumbência
” (MIR, p. 11).

Será exatamente por meio de Cecília que o protagonista começará
a perceber detalhes de sua existência, que no decorrer da obra irá
se estender ao seu ofício de historiador. Ele constatará que a
empregada tem uma concepção contrária à sua em relação
ao Imperador D. Pedro II: Cecília, natural de Portugal, avista o Imperador
no mesmo navio que a conduz para o Brasil pela primeira vez, e, ao cumprimentar
D. Pedro II, tem seu gesto retribuído com outro aceno, o que lhe provoca
a sensação de que o Imperador do Brasil era também uma
pessoa comum: “– D Pedro é um homem como os outros –
ela um dia disse ao Historiador, provocando-lhe uma reação de
espantada incredulidade. Ele nunca pensara nisso. O fascínio imperial
estava muito acima dessas contingências humanas
” (MIR, p. 29).

Acompanhando-se mais de perto sua trajetória, depreende-se do seu envolvimento
sentimental com Cecília um sutil jogo de sedução, em que
o mais importante é o que está nas entrelinhas, nas descrições
dos desejos reprimidos de ambas as personagens. Na sua viuvez, ao mesmo tempo
em que deseja carnalmente a empregada, o Historiador sofre com os temores de
causar falatório na vizinhança e com a possível traição
à memória da esposa morta, enquanto em Cecília misturam-se
sentimentos de piedade e amor pelo seu patrão. O narrador cristaliza
a importância de Cecília na vida do Historiador ao descrever o
momento em que este anuncia à governanta a sua viagem ao Sul: “Naquele
instante, mais do que um sentimento, mais do que todas as certezas anteriores,
mais do que suas convicções sensatas e mais do que apenas uma
premonição, o Historiador soube que sua vida estaria para sempre
unida àquela mulher
” (MIR, p. 40).

Se essa afirmação condiz com a influência da empregada
nas atitudes do Historiador, o que realmente irá se confirmar através
do papel relevante que Cecília irá tomar no decorrer da obra,
também é certo que Assis Brasil inspirou-se para compor o relacionamento
da governanta e do Historiador na ópera La serva padrona, composta em
1733 pelo italiano Gianbatista Pergolesi que conta a trajetória da empregada
Serpina, educada desde pequena por Uberto, seu patrão. Na idade adulta,
Serpina se apaixona por Uberto e planeja várias artimanhas para se casar
com o patrão. Com efeito, o narrador chega a mencionar a ópera,
e comenta que, para o Historiador, “fazer-se de Uberto transformara-se
num passatempo delicioso
” (MIR, p. 25).

Entretanto, as lembranças da esposa falecida estavam presentes, e de
sua morte é que surge outra peça importante na urdidura do livro:
a doença de que o Historiador padece, cujos sintomas não lhe permitem
ficar em silêncio. E é precisamente no momento em que retorna do
funeral da esposa que um som intermitente começa a lhe invadir a cabeça:
Um zunir que lhe atormentava os ouvidos, um chiado de mil cigarras.
Um concerto obtuso de grilos alucinados que ocupava seus dias
” (MIR,
p. 14).

O modo de elaboração do enredo acompanha esse permanente chiar
nos ouvidos: em vários momentos, a incapacidade do Historiador de ficar
em silêncio é o motivo para o narrador estabelecer a descrição
das cenas, pelo fato de que o protagonista tem que se distrair para não
ficar atento ao seu tormento nos ouvidos. Diz o narrador em determinado momento:
“A atenção concentrada faz esquecer o chiado. Ele passou
a escutar os passos de Cecília pela casa. Iam e vinham, na inspeção
noturna às portas e janelas” (MIR, p. 26). Sua doença, diagnosticada
como Tinnitus Aurium, emerge na própria linguagem do livro, como se o
silêncio que lhe era negado fosse a causa das frases curtas e contundentes
que perpassam A margem imóvel do rio, tal como na seguinte passagem:
Tentava [o historiador] escrever algo, e as linhas ficavam em branco.
Gostaria que os ouvidos dessem alguma pausa em sua tirania. Agora, só
lhe faltava o silêncio
” (MIR, p. 131). Com efeito, as epígrafes
que abrem e encerram o livro, já citadas anteriormente, são pistas
de que o silêncio (e a falta dele) estará onipresente no decorrer
da obra, sendo a doença de que é acometido o Historiador quase
outra personagem do livro.

Cabe ressaltar o que Assis Brasil afirma a respeito da enfermidade de sua personagem:

A doença age como motivo propulsor de vários momentos, e,
ao mesmo tempo, é o resultado (porque a doença se agudiza em certos
instantes) desses momentos. Resolvi, neste livro, privilegiar a enfermidade
física que, em geral, é esquecida pelos ficcionistas, que talvez
não lhe reconhecem nada de transcendental ou épico. Sofre-se,
apenas, seja de uma dor de dentes, seja de um zunir nos ouvidos – e nega-se
qualquer resultado ou dignidade neste sofrer. E, no entanto, ele existe, e pode
determinar a conduta de uma vida
(Entrevista a CARPINEJAR)

Sofrendo com o zumbido nos ouvidos, que somente o deixava em paz durante o
sono, o Historiador se debate também por não achar referências
em seus cadernos de notas sobre o estancieiro Francisco da Silva. À medida
que o protagonista de A margem imóvel do rio não consegue desvelar
o caso, cresce nele a tentação de inventar um registro da visita
do Imperador ao estancieiro e confirmar a promessa de D. Pedro II de conceder
a Francisco da Silva o título de barão.

Nesses momentos o narrador expressa uma sutil ironia ao destacar, em uma primeira
ocasião, a obrigatoriedade de os historiadores não mentirem em
seus registros, e em uma segunda oportunidade, a idéia de que esses mesmos
historiadores nunca concordam uns com os outros. Na primeira ocasião,
o Historiador está revisando as suas anotações página
por página, preocupado em desvendar o caso e já antevendo a possibilidade
de inventar o registro que confirmaria a promessa de D. Pedro II. Contudo, o
narrador observará: “Historiadores não são dados
a mentiras
” (MIR, p. 24). Nas digressões subseqüentes
– ainda pairando sobre o protagonista a idéia de inventar o registro
da visita imperial, idéia que era logo repelida, mas ficando sempre algo,
o Historiador lembra-se de que, no requerimento enviado por Francisco da Silva,
havia uma referência ao título de Barão da Serra Grande.
Ato contínuo, ele consultará um colega do Instituto Histórico
e Geográfico na intenção de descobrir tal serra em um mapa
da Província do Rio Grande do Sul. Encontrado o acidente geográfico,
localizado entre as cidades de Pelotas e Bagé, o membro do Instituto
vê a possibilidade de o mapa não estar correto, o que se confirmaria
logo adiante. Diz o narrador: “(…) os geógrafos, como ele
sabia, inventam o que não sabem, tal como os historiadores. Aliás,
dada a mentira geral, nunca vira um Historiador concordar com outro

(MIR, p. 34).

A análise de A margem imóvel do rio abre-se também
à reflexão do papel da memória na história, na medida
em que se encontra no seu enredo um historiador envolto com a perda de um componente
essencial ao seu trabalho, isto é, as lembranças do passado. Neste
plano, o leitor irá acompanhar como o Cronista da Casa Imperial –
que devia se lembrar de tudo o que acontecia na vida do Imperador e sua família
– vai perdendo gradativamente a memória. O narrador acentua o dilema
do Historiador ao tentar lembrar da visita de D. Pedro II à estância
gaúcha:

O que é uma lembrança, senão a lembrança de
uma história? Ele precisava evocar uma história em que se visse
chegando à casa de Francisco da Silva, sendo apresentado à família,
ouvindo-lhe o nome, conversando e, talvez, tomando o café-da-manhã,
depois partindo de lá. Mas virava e revirava sua memória, e não
se via nessa narração
(MIR, p. 31).

Na obra, encontram-se duas modalidades de memória. Em primeiro lugar,
pode-se destacar o que Aristóteles chamou de mneme, que vem a ser a presença
involuntária de imagens do passado evocadas por um ato ou objeto e que
fazem emergir uma lembrança. Na obra, o Historiador espera encontrar
Francisco da Silva e sua estância justamente através da evocação
espontânea que lhe causaria quando se visse diante do estancieiro gaúcho:
De certeza iria lembrar-se de Francisco da Silva. Bastaria vê-lo,
ao chegar na estância – embora as casas fossem tão parecidas
umas às outras. Em sua dispersa memória, ele as unia numa única,
assim como fazemos com os pardais e os escaravelhos
” (MIR, p. 67).
Num segundo momento, encontra-se na obra a modalidade de memória que
se convencionou chamar de anamnese (do grego ana, “remontar”, e
mnesis, “memória”), que é a busca voluntária
das reminiscências da memória. Esse processo mantém-se sempre
presente durante a procura que empreende o Historiador, quando ele vai para
o Sul atrás de Francisco da Silva, visto que ao procurar o estancieiro
há a intenção deliberada de sua parte de encontrar e reconhecer
a propriedade do homem que pediu o título de barão a D. Pedro
II: “À medida que se aproximavam [de determinada estância],
ele era acometido pela promissora idéia de haver estado ali. Não
era ainda uma lembrança, mas uma reminiscência
” (MIR,
p. 73). Cabe ressaltar que em determinado momento, a personagem pensa ter chegado
à estância, ao se lembrar de um broche de ouro em forma de serpente,
que usava a mulher do dono da propriedade: “A constatação
foi instantânea como um raio: estivera ali. (…) Lembrava-se do espantoso
broche da estancieira. Veio-lhe a história que buscava, como quem puxa
o fio de um novelo
” (MIR, p. 83).

A destacar também o forte elemento irônico de um historiador
perdendo e recuperando a memória, pois é no sentido ambíguo
de um personagem cujo ofício requer lembrar-se dos fatos, e que, contudo,
estava às voltas com a perda da memória, que é delineado
o conflito do protagonista: “Era uma ironia em seu caso, mas uma grande
verdade no geral, que Clio fosse filha de Mnemosyne, a deusa da memória

(MIR, p. 32).

É nessa situação de perda de memória que o Historiador
é auxiliado, pela primeira vez, pelo espectro de Cecília. Interessante
observar que nessa oportunidade a empregada ainda não está morta,
o que acentua consideravelmente o aspecto surreal da cena. Cabe ressaltar que
Assis Brasil sempre foi conhecido como um autor que não costuma inserir
elementos fantásticos na sua narrativa. Contudo, em A margem imóvel
do rio
há um tom sobrenatural pairando sobre algumas personagens,
como Cecília e as personagens femininas que o protagonista encontra logo
adiante na trama: a surda-muda Maria Augusta e a misteriosa Lisabel. A empregada,
por sua vez, surge como uma aparição que anuncia ao Historiador
onde ele deveria procurar no seu caderno de notas para achar a referência
ao estancieiro. Entretanto, nessa primeira oportunidade do aparecimento do espectro,
não é citado o nome de Cecília; ela só é
identificada como tal através da referência de um tratamento com
que ela se dirigia ao patrão: “senhor-doutor”. De posse então
da informação de que existia a anotação –
Francisco da Silva. Campos do Rio Grande” – sobre
o homem e o local visitado por D. Pedro II e sua comitiva na província
gaúcha, o Historiador parte para o Palácio Imperial na intenção
de informar ao Mordomo-mor que achara o nome e o lugar procurados. No caminho,
um episódio revela mais uma vez um narrador que se confunde entre a descrição
da cena e os pensamentos do próprio protagonista. Trata-se da chegada
do Historiador ao Largo Imperial:

Não fosse ele o Cronista da Casa Imperial, bem que gostaria de sentar-se
ali, descansar um pouco de sua dignidade, misturar-se àquele povo. Mas
hoje ele desviou o pensamento e os olhos, fixando-se em dois empregados que
apagavam com escovões de piaçava um ‘Viva a República’
escrito de modo grosseiro na parede do Palácio. Até onde iriam
aqueles socialistas? O tristonho edifício, com o passar do tempo e o
envelhecimento do Regime, crivava-se de pequenos comércios que se abriam
para as ruas laterais e mesmo para o Largo
(MIR, p. 36).

Nessa mescla de narrador que, ao mesmo tempo em que se surpreende e se revolta
com a atitude de pessoas contrárias ao regime monárquico, por
outro lado observa o envelhecimento da Monarquia, podem ser destacados dois
momentos significativos para o entendimento da obra. Em primeiro lugar, o registro
do iminente colapso do regime monárquico no Brasil, que irá eclodir
no fim do livro. Chama a atenção o fato da sutil alusão
ao momento histórico (em torno de 1889) pelo qual passava o país,
procedimento narrativo encontrado por Assis Brasil para inserir o seu Historiador
nas mudanças políticas do fim do século XIX, que agitavam
a Monarquia e preparavam o caminho para o estabelecimento do regime republicano.
Em um segundo momento, a passagem enfocada é ignificativa pelo fato de
mostrar o protagonista observador de um acontecimento histórico e dele
não se aperceber. O irônico corre por conta de que o personagem
pretendia escrever o livro História do Império por um Contemporâneo
dos Fatos
; entretanto ele não absorvia os próprios fatos
de que era observador direto. Tal alienação se reflete em outros
momentos da obra. O historiador não consegue reter o sentido dos acontecimentos
à sua volta, contrapondo-se às mudanças do seu comportamento
até o final da obra, quando tem fim o motivo de seu pretenso livro, isto
é, o Império brasileiro.

as mudanças de percepção experimentadas pelo protagonista
têm início na viagem que ele faz ao Sul, e esta começa a
tomar forma definitiva quando ele comparece na já referida visita ao
Mordomo-mor para informar a existência nas suas anotações
do estancieiro Francisco da Silva. Considerando o conflito vivido
pelo Historiador, no que diz respeito a não ter anotado os detalhes da
viagem vinte e um anos antes, percebe-se a absurda relevância que dava
ao caso, pois, no fim das contas, seria apenas um título de barão
que ficaria sem o respectivo dono, em um Império acostumado ao elevado
número de títulos nobiliárquicos – barões,
condes e viscondes. A narrativa explica essa exagerada preocupação
para com a solução do caso de Francisco da Silva em função
do cargo do protagonista na corte e da reverência que ele sentia pela
figura de D. Pedro II, como se vê na seguinte passagem: “Deslindar
o caso era mais do que obedecer a uma ordem. Em sua mente exacerbada, colocava
naquilo sua dignidade de Cronista da casa Imperial e a respeitabilidade do próprio
Monarca
” (MIR, p. 24). E, mais adiante: “O caso era grave
porque ele sabia da existência de um Francisco da Silva. E o caráter
provisório da nota a lápis era uma condenação: o
Cronista da casa Imperial não poderia agir daquele modo, como se anotasse
cinco libras de banha ou uma arroba de azeite
” (MIR, p. 36).

É nesse contexto que o Historiador se encontra diante do Mordomo-mor
da casa Imperial para informar que, enfim, encontrara em suas notas o nome do
estancieiro gaúcho. Contudo, nada havia anotado quanto à promessa
imperial de conceder-lhe o título nobiliárquico mencionado na
petição. Diante do impasse, o
Mordomo-mor sugere que a solução para descobrir o que sucedeu
com Francisco da Silva seria uma nova viagem ao Sul: “– Só
há uma forma de resolver – e o Mordomo-mor fez uma pausa dramática.
– Deve Vosmecê em pessoa partir para o Rio Grande do Sul e esclarecer
esse caso
” (MIR, p. 38).

O Historiador não acolhe bem a idéia de voltar à Província
gaúcha. Irritado, sente aumentar o zumbido nos ouvidos, justamente no
momento capital da resolução do caso da viagem ao Sul: a aparição
do próprio D. Pedro II.

Complementando o que foi dito da figura do Imperador do Brasil no capítulo
I da obra, descrito como um senhor entediado de barbas brancas em leque, essa
descrição de D. Pedro II transporta sua figura histórica
para a margem da literatura: “D. Pedro era um homem alto, velho para
a idade, com a pele muito branca. Herdara a brancura da mãe Habsburg.
Viam-se as veias azuis que circundavam o nariz. O Mordomo-mor segurava a cartola
do Monarca, que calçava as luvas de suède gris perle
”.

O encontro do protagonista de A margem imóvel do rio com D.
Pedro II obedece a esse mesmo princípio do qual fala Barthes: para conceber
um efeito do
real. Se a segunda viagem do Historiador ao Sul poderia parecer inverossímil
aos olhos do leitor, a presença do imperador do Brasil ordenando a sua
ida à procura de Francisco da Silva visa a estabelecer credibilidade
à missão da personagem. O fato é que este é incumbido
pelo próprio D. Pedro II a retornar ao Sul: “– (…)
Boa viagem. Na volta, mande entregar-me um relatório. E não coma
muito churrasco. O excesso de carne prejudica as vias urinárias

(MIR, p. 39).

Uma vez com a missão a cumprir, o Historiador parte para a preparação
da viagem. O que se encontra nos capítulos que tratam de tal empreendimento
é a sua tentativa de levar a empregada Cecília ao Sul, tentativa
esta frustrada pela morte repentina da empregada: “Quando de manhã
enxergou Cecília, soube que ela
estava com a febre. Nem era preciso fazer mais nada: para ele as coisas sempre
foram adversas. Perguntou-lhe, com medo da resposta, se ela estava bem. Não,
não estava
” (MIR, p. 50). O historiador leva então
Cecília à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro,
porém já intuía o destino que aguardava sua criada: “Quando
a levaram, ele soube que tudo terminava ali. A evolução era conhecida:
hemorragias, paralisação do fígado e rins, coma. Morte
.”
(MIR, p. 50). Com a morte de Cecília surge o que faltava para o Historiador
ir para o Sul: na incumbência que lhe fora destinada por D. Pedro II,
o único despropósito era como levá-la para a província
gaúcha, pois o Sul continua a ser apresentado, em relação
ao centro do país, como um lugar adverso: “(…) teria de atravessar
vaus traiçoeiros e gemer embaixo do frio do vento minuano. Teria de comer
mal e dormir pio
r” (MIR, p. 47).

Na obra, é clara a denotação de que o protagonista é
um sujeito insignificante, que não questiona o que se passa a sua volta,
absorvendo apenas os fatos do dia-a-dia. O processo de autoconhecimento, significando
também com isso a mudança de sua visão de como escrever
a história, começa desde o momento em que recebe a carta a respeito
da morte de Cecília; “Enquanto ele não lesse aquele
papel, ela estaria viva. Mas amanhã teria coragem. E amanhã ele
precisaria fazer algo para dar sentido a tudo que até então chamara,
apenas por displicência e tédio, de vida
” (MIR, p. 53).

No início de sua viagem ao Sul, de navio, nota-se um movimento circular
em direção à repetição da viagem feita vinte
e um anos antes. Dos navios citados na obra, o “Alagoas” e o “Maranhão”,
o Historiador deveria viajar no “Alagoas”, mas, por uma avaria na
sua caldeira, teria que ser o “Maranhão” a transportá-lo,
o mesmo da primeira viagem. A menção a tais navios é representativa
pelo fato de contribuir para aproximar mais uma vez o leitor da história,
uma vez que esses navios faziam parte da frota marítima do Império
no fim do século XIX. Contudo, não há uma descrição
das embarcações, somente é informado que ambas faziam parte
da frota da Cia. Lloyd, companhia marítima estatal que fazia a rota para
o Sul. Já com relação ao navio “Alagoas”, é
interessante observar que foi o mesmo que levou a própria família
imperial ao exílio, ao fim do Império.

No movimento de volta ao passado, o Historiador também ocupa o mesmo
camarote em que viajara na primeira expedição ao Sul, na tentativa
de ir recuperando a memória na convivência com o ambiente anterior.
No camarote, o protagonista vai estabelecer contato pela primeira vez com uma
personagem capital, cujas atitudes o farão refletir sobre sua posição
diante da vida: o russo Anton Antonóvich Tarabukin, descrito como um
homem ruivo, corpulento e simpático. Apesar de não se estenderem
mutuamente, em razão de suas línguas diferentes, os dois travam
diálogos em português e russo: “[O Historiador] Dava
um acento interrogativo em frases absurdas, ao que o russo respondia alguma
coisa em seu idioma. Era uma espécie de jogo de dominós com palavras

(MIR, p. 59). Enfim, ele parte rumo ao Sul, em busca de Francisco da Silva.
Do convés do navio “Maranhão”, vislumbra o Brasil
sob o domínio do Império pela última vez: “Ele
foi até a amurada e observava o Paço, com o pavilhão imperial
erguido. Sua Majestade estava na cidade: o Poder e o Império protegiam
a Nação Brasileira
” (MIR, p. 56). O sentido subjacente
a esta parte de A margem imóvel do rio, em que a ironia paira sobre a
visão de um Império e um imperador poderosos mas que na verdade
estavam nos seus últimos estertores, dá a medida do quanto o autor
carrega nas tintas para pintar o Historiador, cada vez mais alheio aos fatos
à sua volta.

Por outro lado, nota-se que o seu próprio trabalho de historiador estava
impregnado dessa ausência de convicções, visto que em seus
cadernos de notas não se encontrava nenhum tipo de reflexão no
sentido da história do imperador e do Império, mas somente trivialidades:
Sentou-se à mesinha, abriu o caderno nº 17.
Leu mais uma vez o que escrevera há anos, quando estava naquele mesmo
lugar: observações rotineiras sobre o tempo, a disposição
de Sua Majestade, notas sobre o itinerário e enumeração
nominal da comitiva
” (MIR, p. 58).

Em decorrência, quando encontra o primeiro homem chamado Francisco da
Silva, português e comerciante, na cidade do Rio Grande, ele não
se preocupa em
estabelecer as circunstâncias que poderiam ligar essa personagem ao homem
que procurava: “Ora, um vendedor de anchovas” (MIR, p.
61).

Da cidade do Rio Grande, o Historiador parte para Porto Alegre, e no tocante
à chegada na capital da Província, verifica-se que Assis Brasil
compõe um quadro
bastante sucinto do local. Ao contrário do que fizera em sua obra Cães
da Província, em que realiza extensa descrição da capital
– elogiada por críticos literários e historiadores pela
sua reconstituição minuciosa –, em A margem imóvel
do rio é breve a apresentação de Porto Alegre: “A
Capital, afora sua ‘encantadora posição sobranceira ao Guaíba’,
como ele escrevera no caderno, não oferecia nada que chamasse especial
atenção. Era uma cidade com igrejas, praças e lampiões
a gás
” (MIR, p 61). A descrição da capital,
sobretudo a parte que é atribuída ao Historiador, remete aos relatos
de viajantes que sobre ela escreveram.

Na medida em que avança em busca do estancieiro, o protagonista encontra-se
em uma viagem de trem rumo a uma estação denominada Pedras Altas,
em cujas
proximidades fora informado que morava um Francisco da Silva. Abre-se um parêntese
para ressaltar que tal estação é particularmente importante
na própria
história do autor, pois é em Pedras Altas que se localiza o castelo
da família Assis Brasil, o mesmo que serviu de matéria literária
para a elaboração da série Um
castelo no pampa. E é próximo dessa localidade que o protagonista
de A margem imóvel do rio volta a tomar contato com uma das
principais paisagens que fazem parte do ambiente gaúcho: o pampa. Cabe
salientar que é flagrante a temática do pampa que avulta nas obras
de Assis Brasil: trata-se quase de uma obsessão do autor em destacar
nas suas obras a planície que domina o Estado. No pampa “terrível
e belo
” (MIR, p. 61), o escritor vai buscar inspiração
para as cenas de batalhas que se encontram em seus livros; é no pampa
que os viajantes de suas obras vão tomar contato com a realidade gaúcha;
é lá que Assis Brasil vai procurar a história de seus ancestrais,
para compor a série do castelo no pampa. Nas palavras do próprio
autor, o pampa cerca as cidades com uma presença misteriosa, cheia de
ressonâncias e segredos do passado.

Efetivamente, em A margem imóvel do rio o pampa é convocado
pelo autor em diversos momentos. A sua imobilidade e majestosa amplidão
referidas na obra têm seus reflexos quando é descrita a morte de
um viajante que definhou de fome ou de sede, muito perto de sua casa: “No
mar também acontecem essas coisas, e algum poeta provincial com certeza
repetiria: ‘O pampa, senhores, o pampa, é como um mar verde e imóvel
!’”
(MIR, p 148).

Na estação, o protagonista é informado pelo agente do
lugar sobre dois primos chamados Francisco da Silva: o primo mais velho, dono
da estância Porteira de Ferro; o mais novo, proprietário da estância
Santa Quitéria. Esse mesmo agente indica um homem chamado Isidoro, para
acompanhá-lo: “(…), um cocheiro quieto, barbudo, com cara
de bandoleiro, (…)
” (MIR, p. 71). Essa figura singular, que apesar
do aspecto de bandido, tinha medo de cobra, serve na obra para aproximar o protagonista
dos costumes do Rio Grande do Sul no seu périplo pelo Estado e Isidoro
é importante personagem que redimensiona o olhar do cronista acerca dos
hábitos locais. É o cocheiro quem apresenta ao Historiador a bebida
da região, o mate, fala das revoluções do Estado e o auxilia
na sua viagem, pois “também conhecia o tempo e o alertava para
os perigos do pampa
” (MIR, p. 85). Presencia-se assim, a valorização
de uma personagem originária do Rio Grande do Sul, que representa, de
certa forma, os gaúchos do pampa do século XIX.

Depois de conseguir o cocheiro como guia e uma charrete como meio de transporte,
o protagonista confirma a hipótese do seu colega do Instituto Histórico
e
Geográfico de que o mapa da Serra Grande que procurava estava errado,
visto que ela não ficava entre as cidades de Pelotas e Bagé, conforme
indicava o mapa do Confrade, o que pode ser visto como a confirmação
da possibilidade de os geógrafos e os historiadores serem passíveis
de erros, como alertara o seu colega. Na estância Porteira de Ferro, o
Historiador toma contato com um Francisco da Silva velho e dominado por um filho
e uma esposa autoritários. Contudo, ao ser
informado pela mulher de que não foram eles que teriam feito uma doação
para a Cúria Diocesana, fato que confirmaria a identidade do estancieiro
procurado, ele
anota em seu caderno: “Estância Porteira de Ferro. Francisco
da Silva 1: tem noventa e nove anos, e contudo é falso
” (MIR,
p. 80).

No que diz respeito à próxima estância a ser visitada,
a Santa Quitéria, o leitor toma conhecimento de que o dono da propriedade
não se encontrava, e que as
informações teriam que ser recolhidas de sua esposa, num ambiente
que não agradou o protagonista: “Ali tudo assumia um ar meio
transtornado
” (MIR, p. 89). O local também serve para ampliar
o olhar do estrangeiro sobre o homem e os costumes locais. É descrito
agora um típico galpão gaúcho: “Procurou o galpão
dos peões. Sentavam-se em cepos à volta do fogo. As paredes eram
revestidas de fuligem e desprendiam um forte odor de graxa. Os homens tomavam
mate. A conversa tinha longos hiatos, naqueles diálogos sem fim dos gaúchos

(MIR, p. 89-90).

Ao considerar-se a condição da mulher do dono da estância
Santa Quitéria, que cuida da casa e do campo enquanto seu marido se encontrava
no Rio de Janeiro, vê-se que Assis Brasil privilegia a participação
feminina na sociedade gaúcha do século XIX. O autor resgata para
a esfera da literatura a mulher que a história muitas vezes relegou a
um segundo plano. Mulheres estancieiras anônimas, as quais foram de fundamental
importância na formação histórica, social e cultural
do Estado.

A estancieira, chamada Augusta, pintada com tintas de uma mulher rude e violenta,
por ser surda-muda comunicava-se com o Historiador através de gestos,
em caracterização que serve para contrapor-se a outra figura singular
presente na estância Santa Quitéria: Lisabel. A moça surge
na obra apresentada como uma jovem requintada, que toca piano em uma noite de
temporal, e a passagem de sua aparição, observada às escondidas
pelo protagonista, é um dos momentos mais
líricos do romance:

O perfil de uma jovem mulher ao piano repetia-se no espelho oval. O rosto
desvelava-se pela luz das duas velas nos castiçais aplicados ao instrumento.
As velas iluminavam também a partitura. “Essa jovem não
mostra uma beleza dissolvida na obrigatoriedade geral de serem belas, e que
tanto exigimos das mulheres”. Era bela por ser única, o queixo
talvez um pouco projetado para a frente, ou o nariz pequeno demais. Toda essa
assimetria ressaltava pela exatidão dos cabelos penteados em bandós
idênticos. Ele procurou uma cadeira na penumbra. Era justo no momento
em que a jovem feria o acorde final, o qual ficou ressoando pela força
nos pedais. A seguir ela abriu outro livro de partituras e o pôs na estante
do piano. Ele pôde ver que as mãos eram brancas como as dos bibelôs
de Meissen
(MIR, p. 96).

Essa passagem em que o autor delineia a figura de Lisabel tocando no piano
o prelúdio “A gota d’água”, de Chopin, representa
claramente o encontro da civilização com a barbárie, considerando
o espaço da estância como um lugar rústico, governado pela
madrasta violenta de Lisabel, dona Augusta, e a jovem encarnando um reduto civilizado
no pampa gaúcho. Como visto no subcapítulo anterior, essa dialética
avulta nas obras de Assis Brasil, aparecendo em muitas delas o contraste entre
o progresso cultural, representado aqui pelo piano, e os grupos humanos do Rio
Grande do Sul do século XIX, que viviam em um espaço sem cultura
e muitas vezes violento.

A jovem, tachada de “louca” pela madrasta, sucumbe ao ambiente
repressor a sua volta, e relata ao Historiador: “– Eu tenho a morte
no coração’“ (MIR, p. 103).

Assustado com os mistérios que pairavam sobre a estância, e com
a conclusão de que o Francisco da Silva do lugar não era aquele
que procurava, ele decide partir, após o término de uma chuva
que se demorara por dias. Há que se destacar a anotação
que faz ao sair da propriedade: “Estância Santa Quitéria.
Francisco da Silva 2: também é falso. Vacilou, e depois acrescentou:
Aqui vive Lisabel. Era a primeira vez que escrevia um nome de mulher no vade-mécum.
Riscou logo, várias vezes. Aquilo não interessava à História,
nem a seu relatório
” (MIR, p. 106). A exclusão da figura
feminina do caderno de notas sugere o reconhecimento de que os historiadores
relegavam a presença das mulheres no processo histórico. Tal exclusão
é contextualizada pelo autor com o propósito de evidenciar mais
adiante as mudanças ocorridas com o Historiador quando este começa
a redimensionar o papel das mulheres em sua vida.

Na seqüência, ele encontra novamente o russo Anton Antonóvich
Tarabukin, agora acompanhado por um guia e intérprete francês,
chamado Adrien Picard. Do reencontro surge uma nova mudança no comportamento
do protagonista: ao observar o russo comendo e bebendo avidamente, percebe a
verdadeira felicidade, que também almejava, encontrada nas atitudes do
russo comendo uma fritada de ovos com toucinho e pão: “Sem
sono, o Historiador deixou-se ficar, fascinado por aquela gula ciclópica.
Daria tudo para, um dia, sentir esse prazer – qualquer prazer

(MIR, p. 110). Essa passagem pode ser lida como a constatação
da imagem alheia como formadora da própria imagem. Será efetivamente
na observação do russo que o Historiador começará
o processo de autoconhecimento, em que perceberá que mais importante
do que sua viagem ao interior da Província era a viagem interior em busca
de si próprio.

De sua margem, o Historiador avança nesse movimento de construção
identitária pelo viés da interação com outra pessoa,
quando tem relações sexuais com uma jovem da estância, onde
há mais um homem chamado Francisco da Silva, denominada Estância
do Baile. Deitado ao lado da moça, na cama que um dia servira ao Imperador,
o protagonista constata a mudança que lhe ocorrera: “De repente
algo se esclarecia em sua alma, embora ele ainda não soubesse bem o quê.
Mas era algo bom e terno
” (MIR, p. 118).

O protagonista de A margem imóvel do rio persegue justamente
esse preenchimento, essa completude que busca no seu exterior, no(a) outro(a).
Assim, renuncia a sua busca a Francisco da Silva e parte para o encontro com
o russo e com o francês: “Estava quase eufórico. Queria
voltar logo para Bagé, tinha
esperança de ainda encontrar a dupla para rever a vitalidade do russo
que, ao comer seus triviais ovos com toucinho, ensinara-lhe algo

(MIR, P. 123).

As mudanças ocorrem até mesmo na sua forma de conceber a história,
pois, ao contrário do que ocorrera com Lisabel, ele não risca
do caderno de notas o nome
de Cândida: ele sublinha o nome da moça, e redimensiona assim o
papel da mulher na história e no seu relatório.

Assim, o Historiador partirá com o russo em uma viagem pelo pampa,
vagando pelas coxilhas e estâncias, ambos acompanhados do francês
com seus mapas e bússolas falsos, na ânsia de aventuras desconhecidas
até então e de experimentar o sentido de liberdade que ele descobrira
no russo: “Seduzia-o aquela busca ávida e insaciável
de acumular aventuras, sem preocupar-se com os resultados
” (MIR,
p. 124).

O périplo sem direção pelo pampa sugere uma viagem iniciática,
um trajeto de autoconhecimento do protagonista. Da viagem física errante
pela Província surge
a viagem interior em busca da identidade e de novas aprendizagens, que lhe serve
para lançar um novo olhar sobre o pampa: o vento gelado, que antes o
incomodara, agora lhe parecia um ar de liberdade.

O protagonista de A margem imóvel do rio, levando-se em consideração
que ele, mesmo com a percepção de que estavam sendo enganados
pelo francês Picard, viajava apenas com a finalidade de se deslocar de
um local para o outro.

Na obra em análise, essa idéia de fragmentação
tamb&ea

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