Home EstudosLivros A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector

A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Análise da obra

A Paixão segundo G. H., romance de 1964 de Clarice Lispector, é uma obra inquietante, angustiante e, ao mesmo tempo, intrigante. Nesse romance, Clarice Lispector consegue transmitir ao leitor as preocupações de ordem emocional da personagem G. H., uma mulher bem-sucedida profissionalmente, mas que não conhece a sua própria identidade e, por isso, vai em busca do conhecimento interior.

É através de um universo de questionamentos e reflexões que o leitor toma contato com a atmosfera de instabilidade emocional em que G. H. se encontra, nela mergulhando conforme apresenta a narradora no início da narrativa: “[…] estou procurando. Estou tentando entender”.

É em um pequeno quarto, estimulada pela visão de uma desprezível, nojenta e escatológica barata que se desencadeia, em G.H., todo um processo interno de reflexão e de busca de identidade. Ela experimenta, diante da barata viva, aquilo que considera a sua pior descoberta: “a de que o mundo não é humano. E de que não somos humanos”.

A narrativa foge ao padrão convencional ao tratar dos problemas do ser consigo   mesmo e com o mundo, resultando daí o chamado romance introspectivo. Os pensamentos são transcritos conforme eles surgem à cabeça da personagem – técnica que recebe o nome de fluxo de consciência. Assim, a literatura introspectiva e intimista de Clarice Lispector fixa-se na crise do próprio indivíduo. Tal forma de narrar é um convite para que o leitor se atire nessa atmosfera que busca, acima de tudo, a compreensão do ser humano.

A inquietação, marca da personagem e da linguagem da obra, é percebida logo no início da narrativa, no momento em que a narradora está começando a escrever. Ela bate várias vezes a mesma tecla da máquina, o que, de certa forma, revela o estado inquietante de espírito. Esse primeiro contato demonstra preocupação e incerteza diante daquilo que ela quer contar e cujo sentido não se esgota exclusivamente nas palavras, mas depende do que não está sendo dito, daquilo que está escrito nas entrelinhas, daquilo que é indizível.

Os romances e contos de Clarice Lispector percorrem essas quatro etapas:

1) a personagem é disposta numa determinada situação cotidiana;

2) prepara-se um evento que é pressentido discretamente;

3) ocorre o evento , que “ilumina” a vida;

4) ocorre o desfecho, onde se considera a situação da vida da personagem , após o evento.

A Paixão Segundo G. H. faz a prospecção “do mundo exterior, como quem macera a afetividade e afia a atenção, para colher amostras, numa tentativa de absorver o mundo pelo “eu”. A partir desse romance não há mais os recursos habituais do romance psicológico. Não há etapas de um drama, cada personagem envolve todo o drama. Logo, não há começo definido, nem tempo, nem um epílogo, há uma contínua densidade na experiência existencial e o reconhecimento de uma verdade que despoja o “eu” das ilusões cotidianas e o entrega a um novo sentido da realidade” (Bosi).

É um mergulho no interior do narrador-personagem, e não há propriamente história. G.H. busca, em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar A obra nem começa, nem termina: ela continua.

…estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quem ficar como que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio ‘lo que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior A isso prefiro chamar desorganização pois não quero não me confirmar no que vivi — na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.

G. H., em seu apartamento, no último andar de um prédio de 13 pavimentos, flagra-se de repente a tomar o café da manhã automaticamente. Isso a assusta: emerge nela o desvario do quotidiano alienado, robotizado. Resolve visitar o bas-fond de seu apartamento: o quarto da empregada, que se demitira.

Havia seis meses que não entrava ali. Ao penetrá-lo, ela mergulha em seu próprio vazio interior. Aflita, procura alguma coisa para fazer, mas não há nada. E eis que surge uma barata, saindo de um armário. Nesse momento, deflagra-se na personagem a consciência da solidão (tanto dela, quanto da barata). O nojo pelo inseto desafia-a assustadoramente: é preciso que ela se aproxime da barata, toque na barata e até (será possível?) prove o sabor da barata. Para regressar ao seu estado de um ser primitivo, selvagem — e por isso mais feliz — G. H. deve passar pela experiência de experimentar o gosto do inseto. Através da “provação” (que é a sua náusea física e existencial), G. H. estaria fazendo uma reviravolta em seu mundo condicionado e asséptico, alienado e imune. Transcrevemos, a seguir, o momento dessa reviravolta, dessa epifania (momento privilegiado de revelação, que ilumina a vida da personagem ou, no sentido
religioso, da presença de uma entidade sagrada, que transmite uma mensagem ou aponta um caminho).

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha boca, e então comecei a cuspir a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto  me parecia quase adocicado como o de certas pétalas de flor gosto de mim mesma eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda. “… porque não és nem frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca , era Apocalipse segundo São João, e a frase que devia se referir a outras coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo da memória, servindo para o insípido do que eu comera e eu cuspia.

O que era difícil, pois a coisa neutra é extremamente enérgica, eu cuspia e ela continuava eu.

Só parei na minha fúria quando compreendi com surpresa que estava desfazendo tudo o que laboriosamente havia feito quando compreendi que estava me renegando. E que, ai de mim, eu não estava à altura senão de minha própria vida.

Parei espantada, e meus olhos se encheram de lágrimas que só ardiam e não corriam. Acho que eu não me julgava sequer digna de que lágrimas corressem, faltava-me a primeira piedade por mim, a que permite chorar, e nas pupilas eu retinha em ardor as lágrimas que me salgavam e que eu não merecia que escorressem.

Mas, mesmo não escorrendo, as lágrimas de tal modo me serviam de companheiras e de tal modo me banhavam de comiseração, que fui abaixando uma cabeça consolada, E, como quem volta de uma viagem, voltei a me sentar quieta na cama.

Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca de barata. E que assim me aproximaria do… divino? do que é real? O divino para mim é o real.

 ……………………………………………………………………………………………………………………………..

Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão.

O que estou sentindo agora é uma alegria. Através da barata viva estou entendendo que também eu sou o que é vivo. Ser vivo é um estágio muito alto, é alguma coisa que só agora alcancei. É um tal alto equilíbrio instável que sei que não vou poder ficar sabendo desse equilíbrio por muito tempo a graça da paixão é curta.

A paixão de G. H. pode ser, biblicamente, interpretada como sofrimento, aludindo à Paixão de Cristo, narrada por Mateus, Marcos, Lucas e João.

É comum a aproximação da obra de Clarice à corrente filosófica existencialista, especialmente do existencialismo literário-filosófico de Jean Paul Sanre (1905-1981).

A náusea, aqui tomada como forma emocional violenta da angústia, é o momento que antecede a revelação, a epifania, e resulta sempre da dolorosa sensação da fragilidade da condição humana.

Enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana e só realizaria o meu destino especifïcamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano.

……………………………………………………………………………… 

O mundo independia de mim esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro… 

A Paixão Segundo G. H. é uma obra de profunda ressonância existencialista, e ao mesmo tempo portadora de um permanente exercício de esvaziamento ontológico, portanto, se lida detidamente, pode ser considerada uma obra de iluminação e de radical ajuizamento crítico sobre a condição humana.

Posts Relacionados