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Os golinhas (Crônica da obra "Entre a boca da noite e a madrugada"), de Milton Dias

by Lucas Gomes

Os golinhas

é uma crônica que faz parte do livro Entre a boca da noite a madrugada, de Mílton Dias.

O cronista conta aqui o drama da amiga: sua mãe ganhara, há 14 anos um golinha sertanejo (um pássaro típico do sertão
cearense). A senhora o tem como se fosse um filho. Quando sai para uma viagem, encarrega a filha de tomar conta do
pássaro, porém este é seqüestrado “com gaiola e tudo”. Nesta crônica, há um tentativa do cronista em manter o leitor bem
próximo a si, para isso, a todo momento, a escritura parece dialogar com o leitor hipotético. Aproxima-se da oralidade,
recorrendo ao caráter polissêmico das palavras, usando citações, intertextualidade ou coloca fragmentos de textos da
Bíblia, usa a técnica da superposição de assuntos e ao passado, ligando-os ao presente.

A expressão inicial “Não sei se vocês já viram um golinha…” (1º parágrafo) aponta bem a natureza do gênero crônica: o
texto mais se aproxima de uma conversa do que de um texto escrito de modo burilado, daí a sua aproximação da oralidade;
mas o coloquialismo não é a pura frase ouvida na conversa popular, mas uma recriação, uma elaboração de um diálogo entre
o cronista e o leitor – e o dialogismo é meio por que se inscreve o equilíbrio entre o coloquial e o literário, permitindo
que o lado espontâneo e sensível permaneça como elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo
tratados numa determinada crônica.

Na descrição do pássaro, para atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos, o cronista recorre ao caráter
polissêmico das palavras, a inusitadas alianças: “pássaro criança”; “miniatura de bico de papagaio”.

No 2º parágrafo, o termo inaugural “Sei,” retoma o diálogo fictício com o leitor; depois, a passagem “porque um tempo
destes aportou um aqui em casa…” apresenta um dos mais sagrados espaços de um cronista: “a casa” – esta, muitas vezes,
é o canteiro da memória.

No 3º parágrafo, surge o espaço doméstico, exatamente para que a “casa” do cronista se confunda com a casa de um leitor
qualquer: “a Rita lhe arranjou morada noutra gaiola”. Mais uma vez, imprime-se a oralidade: “Só vendo, como, de repente,
se entenderam bem…”; e o convívio de dois pássaros “de formação e de raça tão desigual” é recriado e, indiretamente,
parece uma lição aos homens, cuja convivência é sempre difícil, precária, belicosa.

No 4º parágrafo, quebra-se a harmonia inaugural: a presença de um ´menino´ (representante da cultura) invade o espaço dos
pássaros (representantes da natureza), estabelecendo, portanto, a desordem: a fuga dos pássaros. Por fim, um recurso comum
ao gênero crônica: a recorrência a citações ou intertextualidades, numa alusão ao Cântico dos cânticos – de Salomão.

Nos 5º parágrafo, 6º parágrafo e 7º parágrafo, o cronista recupera uma cena do passado – uma também fuga de um pássaro,
“um canário belga” – para, assim, inserir um contraste, apontando as duas faces de um mesmo fato: se agora, a fuga do pássaro
deu-lhe “a tristeza da perda”; antes, “Foi até bom”. Por fim, a casa se amplia, com a notícia de que aí vivem também outros
pássaros, como “aquele casal azul de periquito australiano”, que seguiu à risca o conselho bíblico: “Crescei e multiplicai-vos”.

Nos 8º parágrafo e 9º parágrafo, noticia-se a volta do “golinha” fujão, e surgem mais citações e alusões: fragmentos de um poema
e uma parábola bíblica.

O 10º parágrafo surpreende o leitor: o golinha, a rigor, não é o motivo central da crônica, mas tão-somente um pretexto: se
está falando de golinhas, é para contar o drama de uma amiga “e correr em seu auxílio e pedir em seu favor, que ela me merece muito”.

O discurso literário de Milton Dias possui um feixe de possibilidades. Nessa crônica, destaca-se a técnica da superposição de assuntos,
que consiste em, a princípio, apresentar um interesse textual, (nesse caso, a súbita chegada de um golinha, sua estada, sua
fuga, seu retorno) cuja função é apenas a de criar uma atmosfera propícia para receber o motivo maior do texto (o drama de uma
amiga, com a fuga do pássaro de estimação de sua mãe, dela.)

Do 11º parágrafo ao 14º parágrafo, resume o drama da amiga: a mãe desta ganhara, há 14 anos, um golinha sertanejo, “com uma
mecha branca no alto da cabeça, como marca de linhagem” (o que o torna, afetivamente, mais valioso, mais precioso, pois singular);
a senhora afeiçoou-se ao pássaro como a um filho; necessitando fazer uma viagem, deixou-o aos cuidados da filha; porém, o pássaro
foi seqüestrado, “com gaiola e tudo”.

O 12º parágrafo, assim como o 1º parágrafo, tem como marca a conversa entre o cronista e seus leitores, num tom de apelo, como
quem tem a certeza de que, realmente, possui receptores: “Pelo amor de Deus, se tiverem notícia, se desconfiarem de alguém com
cara de seqüestrador de golinha, denunciem, venha depressa avisar.” Reforça o apelo com a intensidade emotiva: “Vocês não podem
calcular a falta que faz um golinha numa casa”. Com tal procedimento justifica toda a passagem que trata da chegada, da fuga e
do retorno do golinha inicial.

Leia a crônica na íntegra:

OS GOLINHAS

Não sei se vocês já viram um golinha – mas é a coisa mais bonita, mais frágil e mais inquieta deste mundo, um pássaro criança,
pequeno, alegre, de bons costumes, caseiro, comunicativo, cantador. Pode viver o tempo que viver, não passa daquele tamanho de
beija-flor. A plumagem é cinza, o papo branco, com uma gola preta e o bico amarelo é ver miniatura de bico de papagaio.

Sei, porque um tempo destes aportou um aqui em casa, veio por conta própria, sozinho, espontaneamente e ele mesmo se ofereceu
para ficar, entrou na gaiola de uma das graúnas, que era a que tinha as grades mais abertas, passou entre os arames sem nenhuma
dificuldade, feito menino vadio que fura pano de circo. Sem dúvida estava acostumado à vida doméstica e sendo, como ficou entendido,
de fácil convivência, não criou problema com a anfitriã, não se comportou mal, nem aborreceu.

Achou-se então que não devia ficar junto de pássaro tão diferente, e a Rita lhe arranjou morada numa outra gaiola, onde já vivia
um papa-capim, que é do mesmo tamanho. Só vendo, como, de repente, se entenderam bem, pareciam amigos que se aguardavam há muito
tempo, festejaram-se, cantavam juntos todo dia de manhã, e à noite dormiam encostados um ao outro, num comovente exemplo de
solidariedade e de apoio mútuo. E ensaiavam duetos que nunca davam certo, porque, tendo voz desigual e vindo de escola, de
formação e de raça tão diferentes, desafinavam tanto que parecia discussão.

A vida ia correndo assim muito bem, para eles e para nós quando, numa manhã do mês passado, um menino derribou a gaiola e a porta
se abriu e os dois, certamente assustados, partiram imediatamente. Não houve tempo para nada, desapareceram como o cabrito montês
do Cântico dos Cânticos.

Nós sofreemos nossa boa humilhação, além da tristeza da perda. Não vê que a gente vivia se gabando que esta casa é tão acolhedora
que até os pássaros se dão bem, pedem para ficar e são incapazes duma tentativa de fuga! Era esta a tradição, tirante, é claro, o
caso daquele nosso canário belga, que tinha péssimos antecedentes, já vinha de muitas gaiolas, se servia muito mal, estragava a
comida, derramava a bebida, sujava tudo, brigava, era uma verdadeira vocação de baderneiro.

Um dia, não sei que gazua ele tinha no bico, deu um jeito no ferrolhinho de arame e bateu asas. Foi até bom. Que este canário era
um mau exemplo, má companhia, egoísta, tão desequilibrado, que se chegava a suspeitar de alguma perturbação emocional! Tivesse
psiquiatra de passarinho, a gente teria mandado consultá-lo.

Os outros que estão conosco há muito tempo se dão otimamente, engordam, vivem felizes, alguns até constituíram família, como
aquele casal azul de periquito australiano, que já tem uma descendência biblicamente numerosa.

Pois uma tarde destas, inesperadamente, o Golinha voltou sozinho. Ô papa-capim se mandou duma vez, não deu a menor notícia e
desta atitude não nos ficou nenhuma mágoa. Aqui aprendemos todos a lição do poeta Carlos de Queirós: “Quem não nos quer é que
nos deixa. E quem não nos quer bem, deixa-los ir.”

A família se rejubilou com a volta do Filho Pródigo, que logo retomou os antigos hábitos, passou a ocupar a mesma gaiola e a
cantar como dantes. A gente não sabe interpretar o canto dos pássaros, vai ver, quando o pobre está soltando aquele trinado de
saudade é convocando o companheiro e o advertindo dos percalços de viver por conta própria, aventurando de galho em galho, sem
a mão protetora da Rita, que é doida por criança, por planta e por bicho.

Eu falava a uma amiga da alegria que nos tinha causado a recuperação do Golinha, quando a pobre, à proporção que me ouvia, ia
se emocionando, até às lágrimas. É que, enquanto eu contava as glórias da nossa vitoriosa experiência com esta amável família
de minipássaros, ela estava vivendo um drama ligado à mesma distinta alígera família. E é por isto que eu estou aqui falando
de golinhas, é para contar o seu caso e correr em seu auxílio e pedir em seu favor, que ela me merece muito.

Foi assim: a senhora mãe desta minha amiga, que é também gente da minha grande estima, ganhou, faz coisa de quatorze anos, das
mãos do genro, um golinha nascido em Sobral, com uma fina mecha branca no alto da cabeça, como marca de linhagem.

Aí, depressa se afeiçoou ao passarinho (é extremamente fácil querer bem a eles) e o tratava como quem cuida de filho pequeno:
conhecia seus dengues e cacoetes, suas tristezas e exaltações, e, quando ele adoecia, ela mesma diagnosticava e medicava como
convinha.

Agora, a senhora mãe viajou e deixou o seu golinha de estimação na casa daquela dita filha. E eu sou testemunha de como a
hospedeira cuidava bem do hóspede, com zelo especial, até com ternura – e não lhe deixava faltar alimento, nem água da melhor
e recolhia a gaiola na hora regulamentar – fazia tudo de acordo com as recomendações.

Pois uma desgraça aconteceu: seqüestraram o golinha, com gaiola e tudo. Ah bandidos, corja, malta de salteadores e de
malfeitores! E aquela a quem o pássaro fora confiado está gravemente inquieta, preocupada com a sorte do seu tutelado, se
pegando com tudo quanto é santo para descobrir o seu paradeiro.

Pelo amor de Deus, se tiverem notícia, se desconfiarem de alguém com cara de seqüestrador de golinha, denunciem, venham depressa
avisar. Vocês não podem calcular a falta que faz um golinha numa casa.

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