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Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

by Lucas Gomes

Análise da obra

Publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio entre agosto e outubro de 1911 e depois em livro em 1916, Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra mais famosa de Lima Barreto, condensa em si muitas das características que consagraram seu autor como o melhor de seu tempo.

A obra focaliza fatos históricos e políticos ocorridos durante a fase de instalação da república, mais precisamente no governo de Floriano Peixoto (1891 – 1894). Seus ataques, sempre escachados, derramam-se para todos os lados significativos da sociedade que contempla, a Primeira República, ou seja, as primeiras décadas desse regime aqui no Brasil.

Assim, Lima Barreto encaixa-se no Pré-Modernismo (1902-22), pois, respeita códigos literários antigos (principalmente o Naturalismo, conforme anteriormente apontado), mas já apresenta uma linguagem nova, mais arejada em relação ao momento anterior.

O romance narrado em terceira pessoa, descreve a vida política do Brasil após a Proclamação da República, caricaturizando o nacionalismo ingênuo, fanatizante e xenófobo do Major Policarpo Quaresma, apavorado com a descaracterização da cultura e da sociedade brasileira, modelada em valores europeus.

Divertido e colorido no início, o livro se desdobra no sofrimento patético do major Quaresma, incompreendido e martirizado, convertido numa espécie de Dom Quixote nacional, otimista incurável, visionário, paladino da justiça, expressando na sua ingenuidade a doçura e o calor humano do homem do povo.

O romance anuncia no título o seu desfecho pouco alegre, apesar do enredo em que os efeitos cômicos estão aliados ao entusiasmo ingênuo do personagem central e ao seu inconformismo e obsessões. Quaresma é um tipo rico em manifestações inusitadas: seus requerimentos pedindo o tupi-guarani como língua oficial, seu jeito de receber chorando as visitas, suas pesquisas folclóricas; tudo procurando despertar o riso no leitor que, no final, presencia sua morte solitária e triste: “Com tal gente era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho, que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos algozes que eles tinham direito de matá-lo”.

Outro personagem que merece especial atenção é Ricardo Coração dos Outros, o seresteiro do subúrbio, que enriquece a narrativa em que se mostra a paixão pela cidade, os bairros distantes, as serenatas e os violões compondo um cenário pitoresco do Rio de Janeiro da época.

Estrutura da obra

A obra divide-se em três partes.

Primeira parte – Retrata o burocrata exemplar, patriota e nacionalista extremado, interessado pelas coisas do Brasil: a música, o folclore e o tupi-guarani. Esta parte está ligada à Cultura Brasileira, onde conhecemos a personagem e suas manias. Sabe tudo sobre a geografia do nosso país. Sua casa é repleta de livros que se refiram à nossa nação. O que come e bebe é tipicamente brasileiro. Até o seu jardim só possui plantas nativas. Chega a estudar violão – instrumento de má fama na época, pois era associado a malandros – com Ricardo Coração dos Outros, já que descobre que a modinha, estilo tipicamente brasileiro, era tocada com esse instrumento.

Duas são suas grandes ações. A primeira está em estudar o folclore do Brasil para incrementar uma festa de seu vizinho, General Albernaz com algum folguedo popular. Descobre então o Tangolomango, brincadeira que consistia na dança com dez crianças, até que um sujeito, com uma máscara, deveria pegar uma a uma sucessivamente. O problema é que Quaresma empolgou-se tanto com a brincadeira que terminou passando mal, por falta de ar, ou, como se dizia na época, acabou tendo um “tangolomango”. Por aí já se tem uma idéia da ironia do autor.

O clímax da falta de senso de ridículo do protagonista foi ter mandado à Câmara um requerimento, pedindo para que a língua oficial do Brasil deixasse de ser o Português, idioma emprestado e por isso incentivador de inúmeras  polêmicas entre nossos gramáticos (seu argumento, nesse aspecto, é o de que não podemos dominar um idioma que não é nosso e que, portanto, não respeita a nossa realidade. Idéias bastante interessantes, mas apenas isso, pois é ridículo imaginar que uma língua seja mudada por decreto). No seu lugar propõe o tupi.

Resultado: vira motivo de chacota até na Imprensa. Seus colegas de trabalham aumentam as constantes ironias que jogam sobre a ele. Um chega a dizer que Quaresma estava errado ao querer impor aos outros uma língua que nem ele próprio, autor do requerimento, dominava. Idéia inverídica, tanto que o protagonista, irado, não percebe que escreve um ofício em tupi. Quando o documento chega aos superiores, a conseqüência é nefasta: o protagonista é internado no hospício.

Segunda parte – Mostra o Major Quaresma desiludido com as incompreensões o que o faz se retirar para o campo onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no combate às saúvas. Nesta parte, dedicada à Agricultura Brasileira, vemos Quaresma refugiar-se num sítio que compra, em Curuzu, e tem por intenção provar que o solo brasileiro é o mais fértil do mundo. Dedica-se, portanto, a estudar tudo o que se refere a agricultura. Mais uma vez, distancia-se, em sua perfeição, da realidade. Torna-se defeituoso.

Terceira parte – Acentua-se a sátira política. Motivado pela Revolta da Armada, Quaresma apóia Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os interesses pessoais que movem as pessoas, desnudando o tiranete grotesco em que se convertera o “Marechal de Ferro”. Quaresma larga seus projetos agrícolas ao saber que estava ocorrendo a Revolta da Armada, quando marinheiros se rebelaram contra o presidente Floriano Peixoto. Na filosofia do protagonista, sua pátria só seria grande quando a autoridade fosse respeitada. Em defesa desse ideal, volta para a Capital, para alistar-se nas tropas de defesa do regime.

O interessante é notar a alienação em que a população mergulha diante de um tema tão preocupante como uma revolta. Recuperada do susto dos constantes tiroteios, parte da população chega a ver tudo como um festival, havendo até quem colecionasse as balas perdidas.

Enfim, a revolta é sufocada. Quaresma é transferido para a Ilha das Cobras, onde trabalhará como carcereiro. É então que presencia uma cena que lhe é chocante. Um juiz aparece por lá e distribui (esse termo é o mais adequado mesmo) as condenações aleatoriamente, sem julgamento ou qualquer outro tipo de análise. Indignado, pois acreditava que sua pátria, para ser perfeita, tem de estar sustentada em fortes ideais de justiça, escreve uma carta para o presidente, pedindo a reparação de tal erro.

Infelizmente, o herói não foi interpretado adequadamente, o que revela uma certa miopia dos governantes. Por causa de tal pedido, é preso e condenado à morte, pois foi visto como uma traição. Há nesse ponto uma ironia, pois justo o único personagem que se preocupou com o seu país foi considerado traidor, enquanto outros, que se aproveitaram no conflito para conseguir vantagens políticas, como Armando Borges, Genelício e Bustamante, saíram-se vitoriosos.

No final, tal qual Dom Quixote, Quaresma acorda, recobra a razão. Percebe que a pátria, por que sempre lutara, era uma ilusão, nunca existira. Num momento pungente, tocante, descobre que passara toda a sua vida numa inutilidade.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, na configuração dos elementos da narrativa, notamos a presença predominante da ironia e as impertinências contidas na figura central do romance, Quaresma, alegando que o tupi, por ser a língua nativa brasileira proporcionaria melhor adaptação ao nosso aparelho fonador. Além disso, segundo ele, os portugueses são os donos da língua e, para alterá-la teríamos de pedir licença a eles.

O narrador é solidário com sua personagem pois não deixa de criticar os que zombam de Quaresma. No livro, encontramos ora um Quaresma, entusiasmado, apaixonado pelo Brasil, ora um Quaresma desiludido, amargo, diante da ingratidão do país para com seus bons objetivos. Nesse ponto, o que vemos é um personagem condenado à solidão, já que seus ideais batem de frente com os interesses políticos e com o capital estrangeiro.

Desse modo, temos o personagem central vivendo três momentos na obra: valorizando as coisas da terra – a história, a geografia, a literatura, o folclore; no sítio do sossego a frustrada busca de uma solução para o problema agrário, o que faz o romance se vestir de uma profunda atualidade; finalmente, o envolvimento na Revolta da Armada, o que acaba lhe custando a vida.

Enredo

O funcionário público Policarpo Quaresma, nacionalista e patriota extremado, é conhecido por todos como major Quaresma, no Arsenal de Guerra, onde exerce a função de subsecretário. Sem muitos amigos, vive isolado com sua irmã Dona Adelaide, mantendo os mesmos hábitos há trinta anos. Seu fanatismo patriótico se reflete nos autores nacionais de sua vasta biblioteca e no modo de ver o Brasil. Para ele, tudo do país é superior, chegando até mesmo a “amputar alguns quilômetros ao Nilo” apenas para destacar a grandiosidade do Amazonas. Por isso, em casa ou na repartição, é sempre incompreendido.

Esse patriotismo leva-o a valorizar o violão, instrumento marginalizado na época, visto como sinônimo de malandragem. Atribuindo-lhe valores nacionais, decide aprender a tocá-lo com o professor Ricardo Coração dos Outros. Em busca de modinhas do folclore brasileiro, para a festa do general Albernaz, seu vizinho, lê tudo sobre o assunto, descobrindo, com grande decepção, que um bom número de nossas tradições e canções vinha do estrangeiro. Sem desanimar, decide estudar algo tipicamente nacional: os costumes tupinambás. Alguns dias depois, o compadre, Vicente Coleoni, e a afilhada, Dona Olga, são recebidos no melhor estilo Tupinambá: com choros, berros e descabelamentos. Abandonando o violão, o major volta-se para o maracá e a inúbia, instrumentos indígenas tipicamente nacionais.

Ainda nessa esteira nacionalista, propõe, em documento enviado ao Congresso Nacional, a substituição do português pelo tupi-guarani, a verdadeira língua do Brasil. Por isso, torna-se objeto de ridicularizarão, escárnio e ironia. Um ofício em tupi, enviado ao Ministro da Guerra, por engano, levá-o à suspensão e como suas manias sugerem um claro desvio comportamental, é aposentado por invalidez, depois de passar alguns meses no hospício.

Após recuperar-se da insanidade, Quaresma deixa a casa de saúde e compra o Sossego, um sítio no interior do Rio de Janeiro; está decidido a trabalhar na terra. Com Adelaide e o preto Anastácio, muda-se para o campo. A idéia de tirar da fértil terra brasileira seu sustento e felicidade anima-o. Adquire vários instrumentos e livros sobre agricultura e logo aprende a manejar a enxada. Orgulhoso da terra brasileira que, de tão boa, dispensa adubos, recebe a visita de Ricardo Coração dos Outros e da afilhada Olga, que não vê todo o progresso no campo, alardeado pelo padrinho. Nota, sim, muita pobreza e desânimo naquela gente simples.

Depois de algum tempo, o projeto agrícola de Quaresma cai por terra, derrotado por três inimigos terríveis. Primeiro, o clientelismo hipócrita dos políticos. Como Policarpo não quis compactuar com uma fraude da política local, passa a ser multado indevidamente.O segundo, foi a deficiente estrutura agrária brasileira que lhe impede de vender uma boa safra, sem tomar prejuízo. O terceiro, foi a voracidade dos imbatíveis exércitos de saúvas, que, ferozmente, devoravam sua lavoura e reservas de milho e feijão. Desanimado, estende sua dor à pobre população rural, lamentando o abandono de terras improdutivas e a falta de solidariedade do governo, protetor dos grandes latifundiários do café. Para ele, era necessária uma nova administração.

A Revolta da Armada – insurreição dos marinheiros da esquadra contra o continuísmo florianista – faz com que Quaresma abandone a batalha campestre e, como bom patriota, siga para o Rio de Janeiro. Alistando-se na frente de combate em defesa do Marechal Floriano, torna-se comandante de um destacamento, onde estuda artilharia, balística, mecânica.

Durante a visita de Floriano Peixoto ao quartel, que já o conhecia do arsenal, Policarpo fica sabendo que o marechal havia lido seu “projeto agrícola” para a nação. Diante do entusiasmo e observações oníricas do comandante, o Presidente simplesmente responde: “Você Quaresma é um visionário”.

Após quatro meses de revolta, a Armada ainda resiste bravamente. Diante da indiferença de Floriano para com seu “projeto”, Quaresma questiona-se se vale a pena deixar o sossego de casa e se arriscar, ou até morrer nas trincheiras por esse homem. Mas continua lutando e acaba ferido. Enquanto isso, sozinha, a irmã Adelaide pouco pode fazer pelo sítio do Sossego, que já demonstra sinais de completo abandono. Em uma carta à Adelaide, descreve-lhe as batalhas e fala de seu ferimento. Contudo, Quaresma se restabelece e, ao fim da revolta, que dura sete meses, é designado carcereiro da Ilha das Enxadas, prisão dos marinheiros insurgentes.

Uma madrugada é visitado por um emissário do governo que, aleatoriamente, escolhe doze prisioneiros que são levados pela escolta para fuzilamento. Indignado, escreve a Floriano, denunciando esse tipo de atrocidade cometida pelo governo. Acaba sendo preso como traidor e conduzido à Ilha das Cobras. Apesar de tanto empenho e fidelidade, Quaresma é condenado à morte. Preocupado com sua situação, Ricardo busca auxílio nas repartições e com amigos do próprio Quaresma, que nada fazem, pois temem por seus empregos. Mesmo contrariando a vontade e ambição do marido, sua afilhada, Olga, tenta ajudá-lo, buscando o apoio de Floriano, mas nada consegue. A morte será o triste fim de Policarpo Quaresma.

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