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Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa

by Lucas Gomes

Análise da obra

Epopéia escrita por Cláudio Manuel da Costa em 1773,
inspirado pelo poema O Uraguai, de Basílio da Gama.
Poemeto épico-clássico, à maneira de Os Lusíadas, de Camões.

Atente aos comentários de Hélio Lopes,
sobre o poema Vila Rica:

A estrutura labiríntica do Vila Rica se realiza quando
Albuquerque inicia sua viagem pelo interior de Minas, o herói está diante do
desconhecido e tudo parece se opor à conclusão da sua jornada, mas a medida que
ele vai conhecendo os segredos da terra, que em suas ações diante dos conflitos
demonstra justiça e inteligência, o desconhecido vai se revelando e o herói
acaba por encontra o lugar ideal para fundar sua cidade.

Vimos a Terra, a Natureza e os Mitos criando o labirinto. O mesmo poema, no
entanto, assim construído, vem a desnortear também o leitor pela construção de
várias narrativas que de súbito se interrompem, depois mais adiante retomam o
fio ou tomam outro aspecto como o do amor de Garcia e Aurora para, encontrado o
‘centro’, desembocar no Canto, onde apenas se acaba vendo o Itamonte, o Gênio da
Terra e Albuquerque irmanados na alegria de conquistado o alvo. Esta confusa
estrutura, essencial, no entanto, à obra, foi e continua o motivo para
considerar o Vila Rica defeituoso, ininteligível e mal composto.

O poema tem um enredo que foge aos padrões clássicos
exatamente por ter uma estrutura de rapsódia, onde três principais focos
narrativos se cruzam. Primeiro, o drama de Garcia, em segundo, a missão
pacificadora e organizadora de Albuquerque e o terceiro foco narrativo, a luta
dos revoltosos. Esse cruzamento de focos narrativos é que compõe o labirinto do
poema. Observa Hélio Lopes como a estrutura do poema parece confusa a uma
leitura menos atenta do poema:

A construção literária de Vila Rica desnorteia. Os cortes violentos dos
episódios, justificados no desenrolar da ação, depois as retomadas do fio
partido ocasionam natural perplexidade e causam no leitor a imagem de um texto
caótico. Os acontecimentos caminham entre paradas súbitas e recuperam a
linearidade sem aparente justificativa. Cria-se o desequilíbrio. A visível
instabilidade do texto deixa, evidentemente, o leitor por sua vez jogado de um a
outro ponto.

A Associação entre mitologia helênica e aspectos da selva brasileira dá um tom
de tentativa de colocação da terra bárbara na esfera da tradição clássica, uma
tentativa de valorização da terra, só que segundo os padrões clássicos vigentes:

“Quando Cláudio exila para as serranias mineiras sanguinolentos filhos da terra,
sacraliza helenicamente o território onde os indígenas haviam já descoberto, nas
pedras, a origem mítica daquela parte do mundo: o menino de pedra junto à mãe,
mas não iam além do que os olhos pareciam mostrar.”
(LOPES, Hélio. Introdução ao Poema Vila Rica. p.78- 79)

Outra figura criada por Cláudio Manuel da Costa é o Gênio da Terra, que a certa
altura é nomeado como Filiponte, Philos, do grego: amigo, Pons-tis, do latim:
ponte. Seu nome é assim composto só por elementos linguísticos greco-romanos.
Não havendo no seu nome partícula de origem tupi, não apresentará esse personagem
nenhum aspecto dúbio quanto à sua posição no poema, é um ser que trabalha pelo
sucesso da expedição de Albuquerque. Efetivamente, é a figura que terá como função
unir os desbravadores com a terra selvagem. Gênio da concórdia que auxilia decisivamente
o herói Albuquerque na tarefa de conciliar os revoltosos e de encontrar o caminho
procurado.

Outra figura mitológica e híbrida criada pelo autor é a ninfa Eulina, que
primeiramente comparecera no poema Fábula do Ribeirão do Carmo. Um aspecto
identificador de sua hibridez é sua aparência, ninfa, abandonada por Apolo, tem
semelhança com o mito indígena da Mãe D’água, pois encanta Garcia e o leva para
o fundo dos rios onde esconde seus tesouros. É a sereia indígena Ipupiara, nome
aportuguesado depois para Iara.

“Ouve Garcia o canto, e não atina
De onde tanto prodígio, mas de Eulina
A delicada face está patente:
Fita os olhos, e vê desde a corrente
Lançar a mão à praia a Ninfa bela,
Toma uma areia de ouro, e já com ela
Pulveriza os cabelos: neste instante,
O sonho de Albuquerque o faz avante
Passar, os braços abre, a Ninfa chama;
Ela o vê, e não teme, e já se inflama
De amor por ele: aos braços o convida,
E abrindo o seio o rio, uma luzida
Urna de fino mármore os sepulta
Recebendo-os em si: ficou oculta
A maravilha a quantos o acompanham.
Em busca de Garcia já se entranham
Pelo matos mais densos; mas perdida
A esperança de achá-lo, e recolhida
Volta ao herói a esquadra aventureira.”
(Vila Rica. Canto VII)

Essas criações mitológicas de Cláudio Manuel da Costa conferem ao poema algum
brilhantismo que tem passado despercebido à crítica. Se por um lado seus mitos
são uma transposição do ideal clássico sobre a terra bárbara, o que permite
acusá-lo de submissão cultural aos modelos da metrópole, ao colonizador, por
outro também representam uma tentativa de colocação de nossa literatura dentro
do panorama da tradição épica através da criação de mitologia própria, mas
aparentada com a grega e com um enredo original e de caráter moderno, associado
à figura de um herói que não se destaca pelo poder bélico mas por sua capacidade
administrativa.

Ora, para a época, só com essa hibridez mitológica poderia o autor aproximar do
gosto árcade do leitor europeu seu poema com sabor de “espremido licor nos
fundos cobres”(Canto X)[4] , enobrecendo a terra brasileira com uma relação
fraternal e cosmopolita com a mitologia greco-romana. Não foi Lisboa fundada por
Ulisses, nem é Adamastor um gigante de origem helênica? Sendo nossas terras
colonizadas e dominadas por Portugal seria justo que sua mitologia fosse
híbrida, fruto da associação dos povos que formaram nosso povo. As figuras
mitológicas do autor são personagens da selva, de estirpe nobre e que auxiliam,
de um modo ou de outro, o herói na sua tarefa, tendo este como principal
obstáculo não o Itamonte, mas sim a desunião entre seus compatriotas.

“Estamos, disse, em uns países novos,
Onde a polícia não tem ainda entrado,
Pode o rigor deixar desconcertado
O bom prelúdio desta grande empresa.
Convém que antes que os meios da aspereza
Se tente todo o esforço de brandura.
Não é destro cultor, o que procura
Decepar aquela árvore, que pode
Sanar, cortando um ramo, si lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano;
Para se radicar do soberano
O conceito, que pede a autoridade,
Necessária se faz uma igualdade
De razão e discurso; quem duvida,
Que de um cego furor corre impelida
A fanática idéia desta gente?
Que a todos falta um condutor prudente
Que os dirija ao acerto? Quem ignora
Que um monstruoso corpo se devora
A si mesmo, e converte em seu estrago
O que pensa e medita? Ao brando afago
Talvez venha ceder: e quando abuse
Da brandura, e obstinados se recuse
A render ao meu Rei toda a obediência,
Então porei em prática a violência;
Farei que as armas e o valor contestem
O bárbaro atentado; e que detestem
A preço do seu sangue a torpe idéia.
Disse; e deixando a todos a alma cheia
De uma nobre esperança, já passava
A saber de Garcia, nem lhe dava
Notícia dele algum dos três Pereiras.”
(Vila Rica, Canto VII)

A terra a ser desbravada guarda segredos que somente os mais venturosos têm
condições de revelar, de conhecer. No Vila Rica, o motivo histórico, a
fundação da cidade, parece um mero pretexto para o conhecimento da nova terra.
Nesse sentido soam proféticas os versos finais do poema:

“Enfim serás cantada, Vila Rica,
Teu nome impresso nas memórias fica.
Terás a glória de ter dado o berço
A quem te faz girar pelo universo.”
(Canto X, v.199-202)

Comparece ainda no poema um personagem mitológico legitimamente indígena, o
Curupira, que tem os pés virados pra trás. Apresentado pelo poeta como “deus
destes tesouros”, conforme nota 58 do poema. Este personagem falava aos
desbravadores da expedição de Albuquerque que Itamonte era figura monstruosa
e horrível, buscava assim dissuadi-los de sua empreitada. Com a conquista do
Itamonte desfaz-se o encanto do Curupira. O personagem da mitologia indígena
é um personagem a tentar impedir o domínio e o conhecimento da terra por parte
do herói.

“Já desde quando no projeto vinhas
De encontrar as preciosas esmeraldas,
Eu te esperava deste monte às faldas.
O Deus destes tesouros impedia
Até aqui descobrí-los, e fingia
Meu rosto aso homens tão escuro e feio
Por que infundisse em todos o receio.”
(Vila Rica. Canto VIII, v.189-195)

O poema épico de Cláudio Manuel da Costa parece que apresenta uma matéria mítica
que suplanta à matéria da narrativa histórica e, de tal modo, que se não atentarmos
para ela e ficarmos somente avaliando esse poema em função de características
como distância histórica do fato narrado, importância do fato narrado, características
do herói, ou ainda, se ficarmos a comparar a linguagem da epopéia no autor com
os seus versos da lírica, teremos que compactuar com a posição daqueles críticos
que consideram tal obra menor, de importância apenas documental.

Podemos também dizer que o poeta perdeu uma boa oportunidade de construir um
poema épico sobre os bandeirantes ao transformar o episódio de Borba Gato, p.ex.,em
algo menor dentro da estrutura do poema.

Vejamos os versos do episódio no Canto VI em que o poeta exalta
os bandeirantes paulistas. Notemos como o poeta, após enumerar os nomes dos
bandeirantes, diz que se as ninfas do Tejo exaltam a viagem de Vasco da Gama
(referência indireta aos Lusíadas), o poeta diz que dos paulistas honrará
a fama, embora o Vila Rica não tenha se efetivado como um poema sobre
as Bandeiras. Parece que em algum momento da composição do poema o autor pensou
em torná-lo obra representativa, na literatura, das expedições bandeirantes,
porém o poema apresenta como herói Albuquerque, enviado da corte portuguesa,
e não um aventureiro paulista em busca de riquezas. Não é a corrida do ouro
o seu mote, mas a fundação da cidade natal do poeta. Os bandeirantes, no poema,
preenchem o episódio de Borba Gato e participam auxiliando Albuquerque na conquista
das Minas.

“Levados de fervor, que o peito encerra
Vê os Paulistas, animosa gente,
Que ao Rei procuram o metal luzente
Co’as próprias mãos enriquecer o erário.
Arzão é este, é este, o temerário,
Que da Casca os sertões tentou primeiro:
Vê qual despreza o nobre aventureiro,
Os laços e as traições, que lhe prepara
Do cruento gentio a fome avara.

A exemplo de um contempla iguais a todos,
E distintos ao rei por vários modos
Vê os Pires, Camargos e Pedrosos,
Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos,
Lemos, Toledos, Paes, Guerras, Furtados,
E os outros, que primeiro assinalados
Se fizeram no arrojo das conquistas,
Ó grandes sempre, ó imortais Paulistas!
Embora vós, ninfas do Tejo, embora
Cante do Lusitano a voz sonora
Os claros feitos do seu grande Gama;
Dos meus Paulistas honrarei a fama.
Eles a fome e sede vão sofrendo,
Rotos e nus os corpos vem trazendo,
Na enfermidade a cura lhes falece,
E a miséria por tudo se conhece.”
(Vila Rica, Canto VI)

Notemos como o poeta usa os pronomes pessoais “meus” e “seu”
ao contrapor os bandeirantes paulistas com Vascoda Gama. São versos como esses
que confirmam explicitamente o sentimento nativista que já se fazia sentir no
imaginário do poeta.

Parece que existe um jogo nessa obra entre o real e o imaginário,
de modo que as principais ações são mediadas pelo mágico, haja visto entre tantos
exemplos que podemos citar, como o momento em que os revoltosos são assombrados
por terríveis figuras na noite, ou a revelação de Filiponte na gruta perante
Albuquerque, ou ainda o episódio em que Eulina leva Garcia para o fundo das
águas, mas pretendo destacar nesse sentido o episódio em que Argasso mata Aurora.
Julgando ver no lugar de sua amada, que fora, aliás, motivo de disputa entre
o índio e Garcia, uma fera, e estando em caçada, flechando o animal visto, descobre
após, tratar-se de sua amada. Não podemos deixar de comparar esse episódio com
o da morte de Lindóia em O Uraguai.

“Terifea a ocasião julga oportuna,
Põe os olhos no Céu, alta coluna
Levanta, e firma em terra; já sobre ela
se ergue e murmura e nota cada estrela
Com o dedo, depois desce e riscando
Muitas vezes em roda, vai tocando
A coluna, que treme e que se move:
Tolda-se em sombra o ar, troveja e chove:
E o tronco de entre a nuvem que o cobrira,
Sai figurando um tigre, que respira
Fogo e veneno pelos olhos; passa
Com ele ao monte, e o guia onde a caça
Se tenta e busca; aqui dormia Aurora;
Dormia; e junto aos pés branda e sonora
Fontesinha o repouso convidava;
O peito em grande parte debruçava
Sobre uma penha, e ao gesto brando e lindo
De encosto o mole braço está servindo,
Chega a Maga cruel, põe-lhe diante
A fera, que conduz, e ao mesmo instante
Se oculta em parte, onde o sucesso veja:
O cuidado de a ver, ou fosse a inveja
Aquele sítio encaminhava os passos
Do destemido Argasso; entre embaraços
De mal distintos ramos já descobre
O mosqueado tigre, ao braço nobre
O crê despojo, e de matá-lo espera,
Firme o pé desde longe aponta a fera,
E atrás puxando o braço a seta envia,
Que vai cravar no monstro a ponta fria.

Corre gritando, ó Césa, e vê passado
De Aurora o peito; em vão busca assombrado
O tigre, que não há: já desfalece
A pouco e pouco a bela: a mágoa cresce
No mísero homicida, clama e grita,
Atroa aos Céus, e contra os Céus se irrita,
Nem mais a vida, que estimara, preza;
Arroja o arco, e à infeliz beleza
Consagra de seu corpo o último resto.”
(Vila Rica, Canto VI)

Nesse momento vemos como os segredos mágicos da terra são tais que apresentam
mal fado até aos nativos, desde que imprudentes. Argasso fora enganado pelo
sentido da visão.

Tal engano de Argasso ocorre devido
à magia da feiticeira Terifea, que assim procede atendendo ao pedido da também
pretendente ao amor de Argasso, Eulinda, que oferece à feiticeira duas crianças
para que a bruxa faça com estas um ritual de antropofagia que lhe apraz. Esse
motivo parece ser de uma lenda indígena que, como aponta Hélio Lopes inclusive,
aparece em Macunaíma, de Mário de Andrade. Nesse episódio vemos como a matéria
mítica do poema fornece elementos que definem a estrutura do poema. E de tal
modo há no enredo um conjunto de mitos criados pelo poeta ou de mitos retirados
do fabulário nativo, que o poema parece mais uma épica em forma de rapsódia
do que o poema que apenas canta a fundação de uma cidade. Propositadamente ou
circunstancialmente, não vem muito ao caso, o poema de apresenta algumas características
que transgridem o modelo.

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