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Afinação da arte de chutar tampinhas (Conto da obra Malagueta, Perus e Bacanaço), de João Antônio

by Lucas Gomes

Trata-se de uma história narrada por um cidadão pressionado a se enquadrar
socialmente, mas que, sem conseguir aceitar as regras, prefere ouvir música
e aprimorar o chute em tampinhas. A música e a dança das tampinhas no ar
representam, para o narrador, instantes de plenitude e beleza:

O gosto aumentou, eu fui entendendo as letras, apanhando as delicadezas
do ritmo que me envolvia.
[…] É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar […]. Mas
capricho porque elas merecem.
Minhas tampinhas… umas belezas.

Análogo ao narrador-protagonista do conto Busca, o chutador de tampinhas também
sem linha de conduta, sem psicologia, não é um agente e sim um armazenador de
paixões, impressões e idéias. Seu estado inadequado ao quartel, ao trabalho burocrático,
às suas pretendentes matrimoniais, à família, enfim à sociedade, o transforma
num vazio preenchido pelo mundo, o transmuta num olhar lançado sobre o espetáculo,
num instrumento de um questionamento das aparências.

Nesta narrativa alegórica, o que se tira da riqueza psicológica é dado à
ironia de uma arte de chutar tampinhas, capaz de captar a vida como um mosaico
de impressões de arte. O narrador valoriza os acontecimentos e a narração,
visto que os acontecimentos artísticos envolvendo suas tampinhas vêm do mesmo
traço da obra de arte que narra tais acontecimentos. É uma alegoria que quase
transforma a literatura em seu próprio objeto, que não cessa de contemplar seu
reflexo na água da linguagem. Cada brilho, cada nuance e prismas das tampinhas
o comovem, como a cada palavra bem colocada, cada expressão acertada.

Neste conto o autor faz uso, em determinados momentos, do flash back, recurso
comumente empregado quando a intenção é a de uma melhor apresentação das
personagens, espaço e outros elementos narrativos em tempo presente, recorrendo-se
ao passado. O protagonista-narrador, “hoje meio barrigudo”, relembra seus tempos
de infância, o período em que prestou o serviço militar e o posterior emprego
num escritório.

O protagonista vivencia uma espécie de revelação artística e, mesmo renunciando
a si mesmo, vê-se preenchido por um segredo ou uma chave. O segredo do narrador
é a sua arte que o distingue do socialmente estipulado, medíocre. Os outros
personagens não têm relevância para o narrador, ele só vê a si e em sua solidão
de artista, é irmão de Narciso. É na valorização da experiência como pressuposto
imprescindível à arte literária, que o narrador experiencia a linguagem, a partir
da metáfora da arte de chutar tampinhas.

Como todos os personagens de João Antônio, o narrador protagonista dessa narrativa
é um homem envolto pelos problemas do cotidiano e da sobrevivência, desprovido
de qualquer ornamento. Pratica protagonismo sem finalidade, realizando uma
coabitação do real e do sublime. Trata-se, portanto, de um anti-herói que se
delineia no prosaico, cujo brilho é o de um diamante bruto. João Antônio constrói
sua poesia com o desprezível da vida.

Algumas cenas descritas desconstroem qualquer fotografia do real que se queira ver
nesta narrativa e retira de uma cena prosaica uma enorme carga lírica. Ele opera o
desentranhamento do poético no prosaico, materializado no simbolismo das tampinhas.
A gênese da narrativa é a evocação do passado, a memória reconstitui o passado do
protagonista. Há uma alternância dos planos temporais; presente e passado convivem:

Hoje, meio barrigudo.
Mas já fui moleque muito bom centro-médio.
[…] Hoje, quando a melodia me chega na voz mulata do disco, volta a tristeza de menino
e os pêlos pretos do braço de arrepiam.

É em primeira pessoa que a narrativa se destaca pela sua subjetividade, que viaja no
tempo, na imaginação e nas dobras da linguagem, cujos interditos poéticos fragmentam,
ao mesmo tempo, que condensam o texto. Tudo contribui para que a sensação lírica se
materialize na construção melopéica e metafórica.

Outra face do discurso do protagonista é o resguardo da unidade da narrativa, pois
este, mesmo vivendo num contexto objetivo, limitado, não fica impedido de adentrar
numa abstração vivida e relatada de modo singelo e direto. O teor lírico, compreendido
como exploração e a representação de uma subjetividade em conflito com a realidade
objetiva, perpassa a estrutura da narrativa. É o confronto entre a imensidão poética
da interioridade do narrador e a mesquinhez prosaica do real. A displicência com
que ele, ao final do texto, ignora e satiriza um flerte com sabidas intenções
matrimoniais, voltando-se para suas ilimitadas dimensões artísticas, revela o orgulho
do sujeito que resiste nos restos da sua inteireza.

A vida dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me provocando.
Quer casamento, com certeza. Olho para a mulher, para os modos, para o anel…
Quer casamento. Eu não. […] Dias desses, no lotação.
A tal estava a meu lado querendo prosa […] E me casar com um troço daqueles?…

O narrador protagonista tem uma alma mais vasta que o mundo: sua interioridade e os
conteúdos sociais são sentidos por ele como mais ricos, mais perfeitos, mais
acabados do que a realidade degradada com que convive.

Ao nutrir quimeras artísticas, o ensimesmado narrador inicia o seu aprendizado da
solidão com precocidade, ensaiando sonhos e estilos. A evasão encontra um canal
para se materializar: os sambas de Noel, a leitura de Contraponto e suas tampinhas;
experiências que refletem o sentimento peculiar e incompreensível:

Naquelas noites da UMPA, na pequena sede que era só um quartinho alugado com
dificuldades, a mensalidade pingada de cada um. […] Naquelas noites me surgia
uma tristeza leve, uma ternura, um não-sei-quê, que talvez dissesse Noel… Eu
estava ali em grupo, mas por dentro estava era sozinho, me isolava de tudo. Era
um sentimento novo que me pegava, me embalava, eu nunca disse a ninguém, que não
me parecia coisa máscula, dura, de homem. Não os costumes que a turma queria. Mas,
eu moleque gostava, era como se uma pessoa muito boa estivesse comigo, me
acariciando.

A ação prosaica de chutar tampinhas evidencia algo mais complexo que compõe o texto:
a humanização destas formarão a alegoria. O protagonista serve-se das tampinhas para
suas tentativas artísticas: “Sirvo-me delas para experimentos, estado rude dos meus
chutes em potencial”
e João Antônio declara “E vou caprichando […] A alquimia
literária me esgota”
. Experimentação e alquimia parecem revelar duas vidas uníssonas,
numa grande alegoria, cuja intersecção se explicita na falência do indivíduo real e
do ficcional perante a sociedade.

Para a sublimação desse conflito, o autor se agarra à literatura, tal qual o narrador,
às suas tampinhas. A narrativa é, portanto, a revelação do processo de produção do
próprio autor: tentativas várias para o chute mais bonito, desvelando esforços vários
para que o texto se construa dentro das expectativas de seu refinamento estilístico.
Tal qual o chutador de tampinhas e suas incansáveis tentativas de aperfeiçoar sua arte,
João Antônio escrevia e reescrevia cada parágrafo exaustivamente, até chegar à precisão
de sentido que buscava.

Talvez por isso as intersecções que promove, nessa narrativa, entre lirismo e crueza,
português-padrão e dialeto das ruas, não causa nenhum estranhamento; na verdade ocorre
o contrário: é possível seguir o ritmo de um texto que é fluente e natural.

Nessa tessitura do estilo, pela alegoria, é possível visualizar um protagonista que,
na contramão da sociedade, chuta tampinhas buscando engenho e arte em consonância com
o autor que se utiliza da mesma arte para a construção de um estilo peculiar, que
assume um ritmo não como medida, mas como visão de mundo. Nessa narrativa, como em
todas as outras, acontece a estrutura binária do espaço, que não é apenas linear,
horizontal, sintagmática, mas vertical e paradigmática. É por um “platonismo
inconsciente”, que ela opõe a aparência e a realidade, assim como se apresenta a
estruturação do espaço nesse texto: o cenário que se relaciona às tampinhas se
abre e se divide em dois planos sobrepostos, no qual um esconde e revela o outro.
Aqui, o prazer muito vivo das descrições do espaço, todo tomado pelas tampinhas,
assinala uma revelação, que é a da escritura. Dessa forma, o texto dedicado a esse
espaço se abre num outro texto, sua própria descrição, a revelação de sua essência,
que é de ser linguagem. É um sistema de imagens que se desdobram sobre si mesmas:

Esta minha cidade a que minha vila pertence, guarda homens e mulheres que, à
pressa, correm para viver, pra baixo e pra cima, semanas bravas.
Sábados à tarde e domingos inteirinhos — cidade se despovoa. Todos correm para os
lados, para os longes da cidade. São horas, então, do meu “plac-plac”. Fica outra
a minha cidade! Não posso falar dos meus sapatos de saltos de couro… Nas minhas
andanças é que sei! Só eles constatam, em solidão, que somente há crianças, há
pássaros e há árvores pelas tardes de sábados e domingos, nesta minha cidade.

Há aqui um intercâmbio de qualidades entre a natureza e o homem, que absorto num
estado momentâneo do meio ambiente artificial influenciado pela natureza, acaba por
modificá-la. Esse clima instável de multidão e solidão é o mesmo que se percebe nos
temas impressionistas, cujo espectador em movimento, ao mesmo tempo que é afetado
pelas várias perspectivas, também revela novos panoramas do espaço, como os sons
dos seus sapatos desvelando a solidão, constando crianças, pássaros e árvores. A
gíria assinala o estilo na linguagem popular, é o aspecto poético da linguagem
falada. Sob tal perspectiva, João Antônio se mostra primoroso em escolher a gíria
para ampliar as possibilidades expressivas e intensificar os traços afetivos que
deseja imprimir em seu texto.

A identificação dos dois artistas é gradativa e crescente; um protagonista solitário e
universal vai se evidenciando num tom pessoal, versátil, irônico, rico em rimas e imagens,
refletindo sua experiência noelina. Tal identificação é magistralmente construída por João
Antônio:

Mas não sei. A voz mulata do disco me fala de coisas sutis e corriqueiras.
De vez em quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Ciúme, queixa. Sutis
e corriqueiras. Ou a cadência dos versos que exaltam um céu cinzento, uma luva,
um carro de praça… Se ouço um samba de Noel…
Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito – O Feitio de oração ou as
minhas tampinhas.

Nessa construção, como em toda narrativa, em que tema e estilo se fundem
inexoravelmente, desvela-se um narrador que fala da música que o encanta, num texto
que canta. Todos os recursos empreendidos pelo escritor convergem para um lirismo
que embala palavras, para uma surpresa estética causada pela narração de uma
experiência prosaica que se dilui em poesia. A repetição da expressão “sutis e
corriqueiras” encerra uma espécie de refrão, que revela a temática comum entre a
literatura de João Antônio e os sambas de Noel. Essa narrativa é, enfim, uma
alegoria do processo de criação que se encontra com a música, escala genuína da
poesia.

Nesse texto, percebemos, mais explicitamente, que o choque entre princípio da
realidade e o princípio do prazer vivido pelos personagens da obra em questão é
implacável.

Narrador e escritor buscam sua liberdade longe das atividades e expressões
socialmente úteis, pois pressentem que a felicidade não é um valor cultural, mas
está na livre gratificação dos impulsos artísticos. Assim, a visão lírica do mundo
do primeiro se materializa em poesia nas mãos do segundo.

Texto proveniente de:
Jane Christina Pereira
– Doutoranda em Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Luciana Cristina Corrêa – Pós-Graduada em Letras da Universidade Estadual
Paulista (UNESP)

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