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Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago

by Lucas Gomes

Ensaio sobre a lucidez

, de José Saramago, é um romance
construído sobre dois pilares: a revisão do conceito de cegueira
introduzido nos romances anteriores e um olhar questionador sobre a democracia
no mundo contemporâneo. Nesta obra as críticas de Saramago vão
muito além de metáforas e insinuações. Neste romance,
o escritor português faz uma censura aberta ao sistema capitalista e aos
governos contemporâneos que, em nome de uma tão aclamada democracia,
cometem atos arbitrários, ilegítimos e anti-democráticos.

O principal objetivo de Saramago no Ensaio sobre a lucidez foi questionar
a democracia, tema que, para ele, parece intangível no mundo atual, como
declarou para vários jornais na época do lançamento de
seu livro: “no mundo tudo se discute, tudo é objeto de debate,
mas a democracia surge como pura, inatingível, intocável”,
disse o escritor, destacando que “é o poder econômico que
realmente governa, usando a democracia a seu favor”.

O livro Ensaio sobre a lucidez remete-se, não só no
título, mas também na trama, à célebre obra Ensaio
sobre a cegueira
, de 1995, que rendeu ao escritor
português o único Prêmio Nobel de Literatura a um autor de
língua portuguesa. Neste romance, Saramago coloca toda a população
de um país imaginário (o
mesmo do romance de 2004) acometida de uma cegueira branca, com exceção
de uma única mulher, a esposa do médico oftalmologista que examinou
em seu consultório o primeiro homem a cegar. A mulher do médico
– como a personagem é conhecida, já que, assim como os outros
personagens e a cidade em que as histórias se passam, não receberam
nomes próprios – é a única testemunha ocular dos horrores
de uma sociedade tomada pelo caos, sem ordem ou regra, sem governo, que retrocede
a um modo de vida tribal.

A primeira parte consiste numa fábula política sobre as consequências
de uma revolta popular que não se dá por meio da violência,
mas por uma maciça votação em branco que solapa a legitimidade
de um regime. Em vez de se interrogar sobre os motivos que terão os eleitores
para votar em branco, o governo decide desencadear uma vasta operação
policial para descobrir o foco que está a minar a sua base política
e, assim, eliminá-lo. Sua ação vai desde a prisão
de cidadãos e do uso de um detector de mentiras até o estado de
sítio. A resposta pública à ação do governo
se resume a uma passeata, em que toda a população assume ter votado
em branco. Tal ato gera uma medida ainda mais drástica por parte do governo,
que acaba por transferir a capital do país para outro local, deixando
a cidade sem policiamento e sem condições de abastecimento. Uma
explosão no metrô, a mando do ministro do interior, causa muitas
mortes e, embora a maior parte da população creia que tenha sido
um ato de algum grupo terrorista, dois pequenos jornais locais rejeitam essa
versão, exigindo uma investigação minuciosa.

Subitamente, porém, a história sofre uma guinada. Na busca por
um bode expiatório, o governo esbarra numa das personagens centrais de
Ensaio sobre a cegueira: a única mulher que mantivera a visão
em meio ao inferno narrado naquele livro, como já citamos acima. A partir
daí, o romance evolui em um intenso diálogo intratextual com o
primeiro “Ensaio”.

Deste modo, Ensaio sobre a lucidez não só dá
continuidade aos eventos que ocorrem em Ensaio sobre a cegueira, como
também lhe pede por empréstimo as personagens. Em meio à
tensão que se instala após as eleições, o primeiro
cego surge no romance como um delator, escrevendo ao presidente da república
uma carta em que acusa a mulher do médico de estar associada aos prováveis
inimigos do governo. Na carta, ele se refere ao fato de ela ter sido a única
pessoa imune à cegueira branca que assolara o país quatro anos
antes, relatando, inclusive, o assassinato do chefe do outro grupo de cegos.
Tal ato gera uma investigação liderada por um comissário
de polícia, que se põe a inquirir e a vigiar as personagens oriundas
do romance anterior.

Ao colocar em seu universo ficcional temas como o terrorismo de Estado, o autoritarismo,
a sociedade do espetáculo, o engodo da democracia representativa e a
falência do poder político diante do poder financeiro mundial,
Saramago questiona seriamente o regime democrático. O cerco à
mulher do médico, a manipulação da imprensa no intuito
de apontá-la como mentora de uma nova cegueira, a dos votos em branco,
a sua morte ao final do romance, assassinada, são um retrato claro dos
bastidores da política e remetem a procedimentos comuns a regimes ditatoriais
e a situações em que, geralmente, o governo diz agir em nome da
democracia contra um ato que considera ameaça ao regime:

(…) o voto em branco é uma manifestação de cegueira
tão destrutiva como a outra. Ou de lucidez, disse o ministro da justiça,
Quê, perguntou o ministro do interior, que julgou ter ouvido mal, Disse
que o voto em branco poderia ser apreciado como uma manifestação
de lucidez por parte de quem o usou, Como se atreve, em pleno conselho do governo,
a pronunciar tamanha barbaridade antidemocrática, deveria ter vergonha,
nem parece ministro da justiça, explodiu o da defesa, Pergunto-me se
alguma vez terei sido tão ministro da justiça, ou de justiça
como neste momento.
(ESL, 172)

Em Ensaio sobre a lucidez, Saramago cria um universo ficcional em
que a rejeição total de todas as propostas eleitorais é
o ponto de partida para uma especulação sobre o sistema político
e a veracidade do seu caráter democrático. Pode-se, então
dizer, que ao contrário da cegueira descrita no primeiro Ensaio, que
remete para indagações de caráter ontológico, a
cegueira de Ensaio sobre a lucidez é de uma outra natureza.
Está associada à acomodação diante de um sistema
político que em sua concepção deveria ser do povo e para
o povo e que, no entanto, tem se tornado, ao longo da história, um jogo
de interesses ditado pelo capitalismo.

No romance, os votos em branco não constituem uma objeção
ao sistema em si, mas ao que de podre existe nele, à falta de opções,
à absurda semelhança de atitudes em indivíduos e partidos
que se anunciam diferentes; um lampejo de visão, resquício, talvez,
da reflexão gerada pela primeira cegueira, que acaba por ser obliterado
pelo poder. A morte da mulher do médico, no final, assim como o silenciar
dos uivos do cão das lágrimas, com um tiro, remete para um apelo
do autor, discretamente contido na epígrafe. Diz Saramago: “No
fundo, o uivo é a presença do cidadão na vida da sociedade,
na vida do país, fora dessa rotina cinzenta em que, mais ou menos, estamos.
Quando eu digo “uivemos”, estou a pretender dizer “digamos,
reclamemos, protestemos
”. Uivar é dar demonstração
de compreensão dos fatos. Enunciar-se é dar demonstração
de lucidez.

Créditos: Profª. Dra. Shirley de Souza Gomes Carreira,
Unigranrio

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