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Natal na barca (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Fantasia e realidade voltam a se encontrar no conto Natal Na Barca, de 1958,
narrativa linear que tem como tema a força da fé, a existência de milagres, a vida e
a morte.

O início do conto “Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava
naquela barca” (p. 74) faz pensar em outra história que também se passa no Natal,
“Missa do galo”, de Machado de Assis, na qual o narrador começa afirmando “Nunca
pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta” (Assis, 1997, p. 75). É admirável como os narradores dessas
duas histórias descrevem inúmeros detalhes, mas “não se lembram” ou “não entendem”
certos fatos e atitudes, por pura conveniência.

Ainda por intermédio dessa primeira frase, pode-se perceber que o narrador do
conto é do tipo autodiegético. Além disso, os verbos e os pronomes pessoais do
primeiro parágrafo aparecem na primeira pessoa do singular. Não é feita a
caracterização da personagem que narra a história, o leitor só percebe tratar-se
de uma mulher já quase no final do conto, pela flexão do verbo na frase (…)
“era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água” (p. 77).

Os fatos narrados aconteceram no Natal, durante uma viagem de barca. O cenário é
lúgubre: “em redor tudo era silêncio e treva” (p. 74); a embarcação era
“desconfortável, tosca” (p. 74), “despojada” e “sem artifícios” (p. 74); a grade
da barca era de “madeira carcomida” (p. 74); o chão era feito de “tábuas gastas”
(p. 74), compactuando com o estado de espírito do narrador-personagem.

Existem quatro passageiros na barca: o narrador, um velho bêbado e uma mulher
com o filho doente, uma criança de quase um ano de idade. A mulher atrai a atenção
do narrador. Observe-se: “Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca.” (p. 74)
O narrador-personagem quer travar conhecimento com aquela mulher, tão logo a vê,
como fica caracterizado pelo emprego do advérbio de modo. Por quê? Por ser a única
pessoa na barca com quem poderia conversar, já que o velho bêbado “agora dormia”
(p. 74)? Por notar que aquela mulher tinha algo de especial? Ou, ainda, seria uma
vontade inexplicável, uma força de atração conduzida pelo destino? Independente
da explicação para o desejo de falar à mulher, o narrador-personagem não o faz.
E acrescenta, “Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante
não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra.” (p. 74). A conjunção coordenativa
adversativa (mas), os advérbios de tempo e de intensidade (já e quase), a
preposição (até) e o pronome indefinido adjetivo (qualquer), designam uma situação
vaga, imprecisa e provisória. Apesar da viagem estar terminando, fica criada a
expectativa de que haverá o diálogo entre as personagens, e, aparentemente, será
um diálogo importante para o narrador-personagem, ou então, não provocaria
recordações. Nesse momento da narrativa, a frase transmite uma sensação de desolação,
como se uma oportunidade importante estivesse sendo perdida pelo narrador-personagem.
Entretanto, o que tornava a mulher tão especial e por que seria um desperdício deixar
de lhe falar, são pontos obscuros para o leitor, até então.

A seguir, um trecho em focalização interna remete o leitor para uma intertextualidade.
“Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos
deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.” (p. 74) Esta imagem
faz pensar na barca conduzida por Caronte que, de acordo com a mitologia greco-romana,
era utilizada para transportar as almas para o reino dos mortos.

Antes de se apresentarem no tribunal, as almas percorriam longa
trajetória. Chegando ao Érebo, ofereciam um óbolo ao barqueiro Caronte. Era
uma moeda que seus parentes lhes haviam posto sob a língua, para pagarem a
travessia pelo Aqueronte, principal rio dos Infernos. Os insepultos, que não
levavam o óbolo, não podiam entrar na barca; ficavam chorando à margem do
Aqueronte.
Pelas águas do rio, o barqueiro Caronte apenas comanda o ritmo e indica
a direção; o trabalho de remar é realizado pelas próprias almas. (…) (Civita,
1976, p. 99)
A soturna viagem leva a barca por uma paisagem escura e morta. Sobre
o lodo das margens, salgueiros debruçam-se tristemente, como se chorassem a
própria solidão. Imersas nas trevas, almas cabisbaixas percorrem, em total
desalento, o tempo interminável.
(Civita, 1976, p. 97)

A oposição de idéias, mortos/vivos, escuridão/Natal (época em que árvores e
casas são enfeitadas com luzes), contribui para manter a ambigüidade do
texto. A importância dessa especificação da época do ano em que os fatos
ocorrem pode estar relacionada com o estado de espírito do narrador, com o
tema do conto e também com os acontecimentos descritos no desfecho. Assim,
o narrador está sozinho e, apesar de afirmar que se “sentia bem naquela
solidão” (p. 74), nota-se uma certa melancolia, talvez uma falta de esperança,
que o leitor pode perceber por suas falas e gestos, mas não tem como saber os
motivos. Sabe-se que é grande o número de indivíduos que entram em depressão no
período natalino, o que pode ser o caso do narrador-personagem.

Outras imagens antitéticas são empregadas na construção da narrativa. A respeito
da água do rio, “tão gelada” (p. 74), mas que “de manhã é quente” (p. 74); as
roupas da mulher, “pobres roupas puídas” e que, entretanto, “tinham muito caráter,
revestidas de uma certa dignidade.” (p. 74); o narrador-personagem que responde
“com uma outra pergunta” (p. 74); as mãos da mulher, “exaltadas” (p. 75), em
contraste com o rosto “tranqüilo” (p. 75); o filho que sofreu uma queda que “não
foi grande” (p. 75), mas “caiu de tal jeito” (p. 75) que morreu. As oposições, os
contrastes, estão presentes ao longo do texto, como também pode ser constatado
pelo uso freqüente da conjunção coordenativa adversativa “mas”, utilizada quinze
vezes neste conto.

Também existem elipses, “Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não
esperava que justamente hoje…” (p. 75), “A queda não foi grande, o muro não era
alto, mas caiu de tal jeito…” (p. 75), “Era a tal fé que removia montanhas…”
(p. 76), frases interrompidas e assinaladas pelo uso de reticências, que
possibilitam ao leitor uma maior interação com o texto.

O motivo que leva a mulher a estar na barca – que ela utiliza com freqüência,
conforme sintetizado pelo discurso iterativo, citado no parágrafo anterior,
“justamente hoje” (p. 75), dia de Natal, e, portanto, um dia especial, é a
urgência de levar o filho doente ao médico, expressa pelo conselho do farmacêutico
para que ela procurasse o especialista “hoje mesmo” (p. 75). E, então, o narrador
toca no ponto central da temática do conto, ao apresentar, em discurso direto, na
fala da personagem que está com o filho doente nos braços: –“Só sei que Deus não
vai me abandonar.” (p. 75). As palavras da mulher não dão margem à dúvida: ela
sabe, tem certeza do que afirma.

Por meio de analepses, o narrador apresenta ao leitor as tragédias pelas quais a
mulher passou: a morte do primeiro filho, o abandono pelo marido. Mas, também é
através de uma analepse que o leitor conhece o motivo da fé que a mulher tem:

Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão
desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando
feito louca, chamando por ele… Sentei num banco do jardim onde toda tarde
levava ele para brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele,
que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma
vez, não precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só
mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei
como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que
ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando
com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de
brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto… Era tal sua
alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
(Telles, 1982, p.
77)

No trecho selecionado, pode-se observar a utilização do discurso iterativo para
citar a atividade que mãe e filho compartilhavam diariamente, ou seja, a ida ao
jardim. Local de recordações do filho perdido, é para ali que a mulher se dirige
no auge do desespero. É interessante que a personagem, em sua prece, não se dirige
a Deus, mas sim ao próprio filho, que gostava de fazer mágicas; e é uma mágica que
ela pede ao menino, e não um milagre. Percebe-se, ainda, o uso do discurso
repetitivo, para reiterar a necessidade que a mãe tem de rever o filho ainda que
apenas por alguns instantes. Assim, nesse mesmo trecho, temos o emprego de duas
modalidades distintas de freqüência temporal.

A mulher passa, então, a sonhar com Deus, mas a presença divina é real, ela sente
a mão de Deus a conduzindo. E, por meio da frase final, o leitor percebe que Deus
deu à mulher o conforto que ela precisava. Tenha sido ou não um sonho, por ter
visto que o filho morto estava bem, a mulher consolou-se e passou a crer
fervorosamente.

O tema central do conto é a fé, a força que a fé verdadeira transmite àqueles que
acreditam, como o narrador constata “(…) Aí estava o segredo daquela confiança,
daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…” (p. 76). O narrador-personagem
sente-se um tanto desconfortável diante da fé que a mulher tem, apesar de ter passado
por tantos momentos ruins. Acontece, então, o grande momento de tensão do conto: o
narrador-personagem percebe que a criança que a mulher carrega nos braços está morta.
Num gesto de desânimo, deixa cair novamente o xale que cobre a cabeça do menino e
volta “o olhar para o chão” (p. 77). O narrador afirma: “O menino estava morto.”
(p. 77) Esta frase é repetida três vezes (discurso repetitivo) como se o narrador
quisesse se convencer e, também, ao leitor, de que a morte realmente ocorreu.

O narrador-personagem sente-se oprimido, “era como se estivesse mergulhada até o
pescoço naquela água.” (p. 77). Apressadamente, tenta fugir, antes que a mãe descubra,
“Era terrível demais, não queria ver.” (p. 77). Seu constrangimento com a situação
dolorosa é demonstrado nas frases “Aproximei-me, evitando encará-la. – Acho melhor
nos despedirmos aqui” (p. 77). Entretanto, a mulher “pareceu não notar meu gesto”
(observe-se o emprego do discurso modalizante, demonstrando a impressão que o
narrador-personagem tem, e não uma verdade absoluta, uma certeza).

Então, acontece o clímax surpreendente. A mãe “afastou o xale que cobria a cabeça
do filho” (p. 77). Ao invés do desespero aguardado pelo leitor, tem-se uma mulher
feliz, sorridente, pelo fato da criança estar bem e sem febre. Ela mostra o menino:
“A criança abrira os olhos – aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente.
(…) Fiquei olhando sem conseguir falar.” (p. 77).

O fato inexplicável que ocorre na barca, o menino que está morto e, no instante
seguinte, está vivo e sem febre, teria sido um milagre? Milagres podem acontecer
para quem realmente tem fé? Haveria época mais propícia para se alcançar um milagre
do que o Natal? Aquela mulher e aquela criança poderiam estar na barca apenas para
ensinar algo ao narrador-personagem, fazendo com que ele, narrador, passasse a
acreditar (devemos lembrar que a mulher afirma “Sou professora” – p. 76). Podiam ter
sido enviados por Deus para reacender a chama da fé do narrador, o que, de qualquer
maneira, também seria um milagre, e, aparentemente, acontece.

“Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia.”
(p. 77). Essa descrição da mulher – com o emprego de uma antítese – é compatível com
a da imagem de uma santa, ou da mãe de Jesus. Durante toda a narrativa a mãe da
criança é caracterizada por meio do olhar do narrador: é uma “mulher jovem e pálida”
(p. 74); “tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes” (p. 74); suas
roupas, “pobres roupas puídas, tinham muito caráter, revestidas de uma certa
dignidade”(p. 74); “o queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce”
(p. 75); tinha “olhos vivíssimos” e “mãos enérgicas” (p. 76). Essa mulher, que diz
ser de Lucena, cidade da Paraíba, usa um “longo manto escuro” (p. 74). O manto é o
hábito de certas freiras e, geralmente, as santas são representadas utilizando-o.
Mas, não é uma veste comum de uma mulher pobre, de zona rural, do nordeste do Brasil,
talvez ela pudesse estar com um chapéu de palha ou um lenço de cabeça. Tudo pode
acontecer no Natal. Temos uma jovem mulher, com ar altivo e digno, olhar doce e rosto
resplandecente, trajando um manto e portando um menino nos braços, a imagem desenhada
pelo narrador provavelmente remeterá o leitor à imagem da Virgem Maria.

As informações que o leitor recebe a respeito da mulher são fornecidas, em sua maioria,
pela própria personagem, por meio dos diálogos estabelecidos com o narrador-personagem.
Assim, o leitor sabe que ela é professora, pobre, mora em Lucena, perdeu um filho de
quatro anos de idade no ano anterior, foi abandonada pelo marido há seis meses e, agora,
está levando o filho único ao médico. E, apesar de todas as tragédias por que passou,
mantém a calma, não sente revolta, está confiante. Afirma para o narrador: “Só sei que
Deus não vai me abandonar.” (p. 75) e “–Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.” (p.
76).

O comportamento e as palavras da mulher sugerem certa semelhança com duas passagens
bíblicas. A primeira, a história de Jó, homem “sincero e reto, que temia a Deus e
fugia do mal” (Dalbosco, 1980, p. 580) e que possuía muitos bens materiais e dez
filhos.

“…este homem era grande entre todos os filhos do oriente”(Dalbosco, 1980, p. 580).
Entretanto, Satanás afirma que Jó só teme e respeita a Deus por ter sido sempre
protegido e abençoado por Ele. “Mas estende tu um pouco a tua mão, toca em tudo o
que ele possui e verás se ele te não amaldiçoa no teu rosto.” (Dalbosco, 1980, p.
580). Então, Deus permite que Satanás faça o que quiser para colocar a fé de Jó à
prova. Jó perde todos os seus bens, todos os seus filhos morrem e ele próprio tem
o corpo coberto de chagas que provocam dores horríveis. Ainda assim, Jó não se
revolta contra Deus, nem perde a fé: “o Senhor o deu, o Senhor o tirou, como foi do
agrado do Senhor, assim sucedeu: bendito seja o nome do Senhor.” (Dalbosco, 1980,
p. 580) e, ainda, “… se nós recebemos os bens da mão de Deus porque não havemos
de receber também os males?” (Dalbosco, 1980, p. 581).

Finalmente, Deus recompensa Jó por sua perseverança na fé e lhe dá o dobro de tudo
o que ele antes possuía. E Jó “morreu velho e cheio de dias” (Dalbosco, 1980, p.
609).

A outra referência bíblica é a passagem da agonia de Jesus na cruz, quando ele
exclama: “Eli, Eli lemá sabacthaní?”, ou seja, “Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?” (Dalbosco, 1980, p. 1094). Nas afirmações da mulher da barca, ela
sabe que Deus nunca a abandonou, nem vai abandonar. Assim como o narrador se
surpreende com a serenidade da mulher, mesmo depois de tantas perdas, o leitor
também será levado à reflexão sobre a fé, com a leitura do conto.

Em Natal na Barca, assim como em vários outros contos, percebe-se que
Lygia tem como noção constituinte de literatura o componente emocional, quer
dizer, a história deve comover o leitor. E essa meta, também é alcançada pelo
narrador de Lygia Fagundes Telles.

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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